REVISÃO
Vulnerabilidade
individual ao HIV/Aids nas relações sorodiscordantes
Fernanda da Mata
Vasconcelos Silva,M.Sc.*,
Tatiane Gomes Guedes, D.Sc.*
*Enfermeira,
Universidade Federal de Pernambuco
Recebido em 3 de junho de 2017; aceito em 4 de outubro de 2017.
Endereço
para correspondência:
Fernanda da Mata Vasconcelos Silva, Av. Prof. Moraes Rego, 1235, Cidade
Universitária, 50670-901 Recife PE, E-mail: nandadamata34@gmail.com, Tatiane
Gomes Guedes: tatigguedes@yahoo.com.br
Resumo
Objetivo: Identificar
evidências científicas acerca dos elementos de vulnerabilidade individual de
casais sorodiscordantes. Método: Revisão integrativa de Literatura realizada em junho 2016
nas bases da Lilacs, Cinahl,
SciVerse Scopus,
PubMed Central, BDENF e na Science Direct por meio do cruzamento dos descritores (DeCS): "HIV", "Sexualidade",
"Comportamento sexual", "Parceiros sexuais" e
"Vulnerabilidade em Saúde" para responder a questão norteadora:
"O que os estudos evidenciam como componentes da vulnerabilidade
individual de casais que vivem em relação de sorodiscordância
ao HIV?". Resultados: A amostra
final foi constituída de quatro artigos. Emergiu da análise de conteúdo a
modalidade temática "Vulnerabilidade individual ao HIV”, e três subtemas
articulados com o tema central: Divergência de gêneros na utilização
sistemática do preservativo e na negociação de práticas de sexo seguro; Terapia
Antirretroviral como fator de proteção ao HIV/Aids;
Crenças e fatores culturais que interferem na vida afetivo-sexual de casais sorodiscordantes. Conclusão:
Do ponto de vista sociocultural, a Aids pouco mudou. A
construção social de percebê-la como doença restrita a “grupos de risco”
reflete o descompasso que existe entre as ações preventivas promovidas pela
gestão em saúde e a realidade cotidiana do casal.
Palavras-chave: HIV, sexualidade,
comportamento sexual, parceiros sexuais, vulnerabilidade em saúde.
Abstract
Individual vulnerability to HIV/Aids in serodiscordant
relations
Objective: To identify
scientific evidence on the elements of individual vulnerability of serodiscordant couples. Method:
Integrative literature review conducted in June 2016 at the bases of Lilacs, Cinahl, SciVerse Scopus, PubMed
Central, BDENF and Science Direct through the cross-reference of the
descriptors (DeCS): "HIV",
"Sexuality", "Sexual behavior "," Sexual partners
"and" Health vulnerability " to answer the guiding question:
"What studies do they evidence as components of the individual
vulnerability of couples living in HIV serodiscordant
relationship?" Results: The
final sample consisted of four articles. The thematic modality "Individual
vulnerability to HIV ", and three sub-themes
articulated with the central theme: Gender divergence in the systematic use of
preservation and negotiation of safe sex practices; Antiretroviral Therapy as a
Protecting Factor for HIV/Aids; Beliefs and cultural factors that interfere in
the affective-sexual life of serodiscordant couples
emerged from the content analysis. Conclusion:
From the sociocultural point of view, Aids has changed little. The social
construction of perceiving it, in current times, as disease restricted to
"risk groups" reflects the mismatch between preventive actions
promoted by health management and the daily reality of the couple.
Key-words: HIV,
sexuality, sexual behavior, sexual partners, health vulnerability.
Resumen
Vulnerabilidad individual al VIH/Sida en las
relaciones serodiscordantes
Objetivo: Identificar evidencias científicas acerca de los
elementos de vulnerabilidad individual de las parejas serodiscordantes.
Método: Revisión
integrativa de literatura realizada en junio de 2016 en las bases de Lilacs, Cinahl, SciVerse
Scopus, Pubmed Central, Bdenf y en la
Science Direct a través del
cruce de los descriptores (DeCS): “VIH”, “Sexualidad”, “Conducta sexual” “Parejas sexuales”, “Vulnerabilidad en Salud” para responder a la
pregunta orientadora: “¿Qué es lo
que estudios evidencian
como componentes de la vulnerabilidad
individual de parejas que viven
en una relación serodiscordante al VIH?” Resultados: La muestra final fue constituida de cuatro artículos. Surgió del análisis
de contenido la modalidad temática “Vulnerabilidad
individual al VIH”, y tres subtemas articulados con el tema central: Divergencia de géneros en la utilización sistemática del preservativo y en la negociación de prácticas de sexo seguro; Terapia Antirretroviral como factor de protección al VIH; Creencias y factores culturales que interfieren en la vida afectivo-sexual
de las parejas serodiscordantes. Conclusión: Desde el
punto de vista sociocultural el
sida poco ha cambiado. La construcción
social de percibirla como enfermedad
restringida a "grupos de riesgo" refleja el
desajuste que existe entre las acciones
preventivas promovidas por la gestión
en salud y la realidad cotidiana de la pareja.
Palabras-clave: VIH, sexualidad, conducta sexual, parejas sexuales, vulnerabilidad en salud.
Para compreender os
fatores de vulnerabilidade a que uma pessoa está exposta é oportuno interpretar
de que maneira ela se percebe no mundo. O termo vulnerável remete a
suscetibilidade das pessoas a problemas e danos à saúde [1]. Os sentidos e
significados atribuídos a fatos cotidianos predizem a maneira de agir de cada
indivíduo e, por conseguinte, determinam quão
vulnerável ele se encontra para determinadas situações [2].
A realidade das
pessoas que convivem com o vírus do HIV (PHVA) atualmente é bem diferente
daquela descrita há trinta anos, momento de descoberta da patologia. A
potencialidade da medicação antirretroviral impactou diretamente na melhoria da
qualidade de vida e no aumento da sobrevida da população infectada [3,4]. Uma
das questões, trazidas pela nova realidade, diz respeito aos casais sorodiscordantes, que apresentam aspectos peculiares e que
demandam uma atenção diferenciada dos profissionais de saúde [5]. As relações sorodiscordantes são descritas na literatura científica
para designar casais, hetero ou homoafetivos,
que apresentam sorologias distintas ao HIV, ou seja, um dos parceiros convive
com o vírus e o outro não [6].
Neste estudo,
compreendeu-se como casal, a união entre pessoas de uma relação que permeia
trocas afetivo-sexuais, com intenção de permanecerem juntos por determinado
tempo. Os casais sorodiscordantes apresentam aspectos
intrínsecos inerentes à manutenção da vivência sexual de forma segura, o que
acarreta para a saúde pública um novo desafio na prevenção da transmissão da Aids.
A compreensão da
sexualidade de indivíduos com HIV ainda é restrita por parte dos serviços de
saúde especializada [7]. Mais atenta à prevenção da transmissão sexual do
vírus, no uso contínuo do preservativo e no uso correto da medicação
antirretroviral, a assistência à saúde é direcionada principalmente para o
parceiro soropositivo.
Ao analisar as
publicações disponíveis na literatura, no momento inicial deste estudo,
evidenciou-se que a maioria objetiva compreender os fatores associados à
prática sexual insegura e avaliar as intervenções que visam alterar tal
comportamento; no entanto, uma parcela mínima de publicações dedica-se a
desvendar os sentidos e significados atribuídos aos relacionamentos amorosos
que determinam as experiências afetivo-sexuais experimentadas pelas PHVA e
quais as adaptações cotidianas precisaram ser feitas para manutenção de uma
vida sexual segura. Percebe-se, então, um descompasso entre a quantidade de
informações disponibilizadas e a não realização de medidas efetivas de
prevenção da patologia.
Ao considerar a
necessária adaptação dos serviços de saúde especializada em HIV/Aids - sob a percepção de que o contexto individual
determina a forma pelas quais a prevenção do HIV e a prática sexual segura
serão realizadas, torna-se necessário implantar ações de educação em saúde
voltadas para sensibilizar a equipe multiprofissional para os desafios da sorodiscordância. Devido à escassez de artigos sobre a
temática, julgou-se imprescindível a realização deste estudo que teve por
objetivo identificar as evidências científicas sobre elementos da
vulnerabilidade individual de casais sorodiscordantes.
A
revisão integrativa
da literatura, utilizada neste estudo como método de pesquisa,
permite a busca,
a avaliação crítica e a síntese das
publicações disponíveis acerca da temática
investigada, trazendo em seu desfecho, o estado atual do tema e a
identificação
de lacunas a serem preenchidas por pesquisas futuras. Para utilizar-se
deste
método, precisam-se percorrer seis etapas, a fim de aumentar a
relevância do
conjunto de conhecimento sobre o fenômeno estudado e contribuir
de forma
efetiva para melhoria da prática clínica baseada em
evidências [8].
O tema
“Vulnerabilidade individual ao HIV nas relações sorodiscordantes”
e a questão condutora do estudo "O que os estudos evidenciam como
componentes da vulnerabilidade individual de casais que vivem em relação de sorodiscordância ao HIV?", emergiram através da
vivência das pesquisadoras na área da saúde sexual e reprodutiva voltadas às
pessoas que convivem com o vírus. Outro fator motivador foi a vulnerabilidade a
que estão expostos os integrantes destas relações e a invisibilidade da sorodiscordância, perante um universo tão explorado como o
da epidemia da Aids.
O levantamento das
publicações ocorreu em junho de 2016. Para a seleção dos artigos, utilizaram-se
os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS):
"HIV", "Sexualidade", "Comportamento sexual",
"Parceiros sexuais" e "Vulnerabilidade em
saúde", com suas respectivas traduções padronizadas no Medical Subject Heading (MESH):
"HIV", "Sexuality", "Sexual behavior", “Sexual partners"
e "Health Vulnerability" e em Espanhol:
"VIH", "Sexualidad", "Conducta sexual", "Parejas
sexuales" e "Vulnerabilidad
em salud". Um total de 1.951 artigos foram
encontrados nas bases de dados da Literatura Latino Americana e do Caribe em
Ciências da Saúde (LILACS), na Cumulative Index to Nursing and
Allied Health Literature
(CINAHL), no Banco de dados da SciVerse
Scopus (Elsevier), na
Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos (PubMed
Central), na Base de Dados da Enfermagem (BDENF) e na Science Direct (Elsevier), conforme
descrito no Quadro 1.
Quadro
1 - Estratégia de busca utilizada nas bases e
banco de dados (Pubmed, Cinahl,
Scopus, Lilacs, BDENF e
Science). Recife/PE, 2016.
Para seleção dos
artigos, consideramos os seguintes critérios de inclusão: abordar a sorodiscordância ao HIV no título ou no resumo, apresentar
fatores relacionados à vulnerabilidade de indivíduos com Aids
e dos parceiros sexuais, estar publicado na íntegra e disponível nos idiomas
português, inglês ou espanhol, ser artigo de pesquisa. Em detrimento da
especificidade do tema, não utilizamos recorte temporal para a busca. Trabalhos
no formato de tese, dissertação, livro ou capítulo de livro, editorial, matéria
de jornal, revisão integrativa ou sistemática da literatura, carta ao editor,
estudo reflexivo e relato de experiência, além de estudos que não respondessem
à pergunta norteadora foram excluídos da pesquisa.
Para definição das informações a serem
extraídas dos estudos selecionados e categorização dos estudos utilizou-se
busca por pares, com o objetivo de fornecer credibilidade ao conteúdo da
análise. Os descritores foram confrontados de forma pareada e depois em
sequências combinadas com prioridade para os descritores “HIV” e
“Vulnerabilidade em saúde”, a fim de padronizar os cruzamentos nas bases de
dados. Das 1.951 publicações identificadas, foram excluídas 1.882, por não
atenderem aos critérios de inclusão/exclusão. Uma leitura criteriosa do texto
completo dos 69 artigos restantes foi realizada para identificar se os mesmos
respondiam a questão de pesquisa. Destarte, a amostra final foi constituída de 4 artigos originais de pesquisa (Quadro 2).
Quadro
2 – Publicações encontradas nas bases e banco de
dados (Pubmed, Cinahl, Scopus, Lilacs, BDENF e Science)
em junho de 2016. Recife/PE, 2016.
A coleta de dados,
realizada por meio de um instrumento validado proposto por Ursi
[9] e adaptado para este estudo, contemplou os seguintes itens: Identificação
do artigo, características metodológicas, idioma, nível de evidência
científica, objetivos e principais desfechos/resultados.
Para avaliação do
rigor metodológico, utilizamos um instrumento adaptado do Critical
Appraisal Skills Programme (CASP) que classifica os artigos em dois níveis:
Nível A (boa qualidade metodológica e viés reduzido) e Nível B (Qualidade
metodológica satisfatória, porém com risco de viés aumentado) [10].
Na avaliação do nível
de evidência, os estudos são hierarquizados de acordo com o grau de confiança e
qualidade metodológica dos mesmos. A qualidade das evidências é classificada em
seis níveis: 1) metanálise de múltiplos estudos
controlados; 2) estudo individual com delineamento experimental; 3) estudo com
delineamento quase experimental a exemplo de estudo sem randomização com grupo
único pré e pós-teste, séries temporais ou
caso-controle; 4) estudo com delineamento não-experimental
como pesquisa descritiva correlacional e qualitativa
ou estudos de caso; 5) relatório de casos ou dado obtido de forma sistemática,
de qualidade verificável ou dados de avaliação de programas; 6) opinião de
autoridades respeitáveis baseada na competência clínica ou opinião de comitês
de especialistas, as quais incluem interpretações de informações não baseadas em
pesquisas [11].
Para a inspeção das
publicações, priorizou-se a criticidade na leitura dos artigos através da
técnica de Análise de Conteúdo que orienta dividir de forma resumida os
conteúdos encontrados em categorias [12]. Emergiu desta análise, a modalidade
temática "Vulnerabilidade Individual ao HIV", e três subtemas
articulados com o tema central: I – Divergência de gêneros na utilização
sistemática do preservativo e na negociação de práticas de sexo seguro; II –
Terapia Antirretroviral como fator de proteção ao HIV/Aids;
III – Crenças e fatores culturais que interferem na vida afetivo-sexual de
casais sorodiscordantes.
Cabe ressaltar que este artigo é parte de uma
dissertação de mestrado, intitulada “O ser-com-o-outro na condição sorodiscordante: uma abordagem fenomenológica da
vulnerabilidade individual ao HIV/Aids. Recife”
desenvolvida no Programa de Pós-graduação de Enfermagem da Universidade Federal
de Pernambuco.
A base da Lilacs agregou 1.325 artigos do total das publicações
selecionadas (1951). Artigos duplicados foram considerados apenas uma vez de
acordo com a seguinte ordem hierárquica: Lilacs
(67,9%), Bdenf (8,9%), Cinahl
(8,8%), Pubmed (5,5%), Scopus
(4,5%) E Science (4,4%). Após a aplicação dos critérios de inclusão/ exclusão,
dez abordavam a sorodiscordância em seu título ou
resumo, porém apenas quatro respondiam a pergunta de pesquisa, revelando assim
uma enorme lacuna no conhecimento científico.
Os artigos
selecionados apresentaram boa qualidade metodológica, viés reduzido,
classificados, portanto, no nível A. Na avaliação do Nível de Evidência, todos
os artigos classificaram-se no nível 5, que incluem
estudos descritivos e qualitativos.
Publicados em
português entre 2005 e2012, dois artigos constavam na Revista da Escola de
Enfermagem da USP, um na Revista Latino Americana de Enfermagem e o outro no
Caderno de Saúde Pública do Rio de Janeiro.
O quadro 3 apresenta a síntese dos artigos selecionados para a
amostra e destaca as situações de vulnerabilidade individual ao HIV/Aids que
foram apresentadas.
Quadro
3 – Síntese dos resultados encontrados nos
artigos selecionados. Recife-PE, 2016.
Divergência
de gêneros na utilização sistemática do preservativo
Na prevenção sexual
ao HIV, entre parceiros sorodiscordantes, acredita-se
haver uma maior motivação do casal para o uso do preservativo, que visa à
proteção do cônjuge soronegativo [13]; porém, muitas vezes, ocorrem
divergências de aceitação quanto ao uso sistemático do preservativo entre
homens e mulheres.
Ancoradas em questões
de gênero, as vivências da masculinidade são pautadas em ideias voltadas à
heterossexualidade e dominação. A socialização de tais ideias faz associação
direta à virilidade, à ideia de que é natural ao homem “correr riscos”, a força
e o poder imposta nas decisões conjugais e o achar que controle das
consequências de seus atos sexuais é tarefa de apenas um dos parceiros que
assumem uma postura de submissão [15-16].
A alteração do prazer
sexual é elencada como principal barreira masculina a manutenção do sexo seguro
[5,13-14].
Após a soroconversão ao HIV, estudos referem que muitas mulheres
aboliram ou restringiram as próprias práticas sexuais, mesmo que o desejo ainda
persista [5]. A vergonha em compartilhar da sorologia com o parceiro, o medo da
transmissibilidade do vírus e o prazer limitado ao uso contínuo do preservativo
durante as relações sexuais são citados como fatores que justificam esta
prática.
A reduzida capacidade
feminina em negociar práticas de sexo seguro está ancorada nas crenças da
soberania hegemônica masculina construída e sustentada pela sociedade ao longo
das décadas. Esta negociação implica em riscos ao seu relacionamento, que vão
desde a resistência masculina ao uso do preservativo até incompreensões do
parceiro quanto ao seu sentimento de afetividade e fidelidade. Assim, na
tentativa de aumentar a união do casal ocorre uma aceitação do não uso de
proteção no papel de “prova de amor”, fato que os expõem à condição de
vulnerabilidade ao vírus do HIV/Aids.
Os profissionais de
saúde precisam ampliar seu olhar para a vulnerabilidade de parceiras de homens
soropositivos resistentes ao uso de preservativo em todas as relações sexuais
[13-14]. O acolhimento e a sensibilização destas mulheres, a partir do
desenvolvimento de ações educativas voltadas à prevenção e empoderamento
de técnicas de negociação com o parceiro de sexo seguro, configuram uma
importante ferramenta para a ruptura da cadeia de transmissão sexual ao HIV/Aids.
Terapia
antirretroviral como fator de proteção ao HIV/Aids
A eficácia do
tratamento antirretroviral e o aumento na expectativa de vida de pessoas que
vivem com o HIV em uma relação em sorodiscordância
apresentam-se enquanto nova tendência epidemiológica no rastreamento do HIV
[6].
A terapia antiretroviral consegue deixar o vírus do HIV na sua forma
indetectável e a eficácia no nível de prevenção do contágio é similar a do
preservativo quando usado de modo adequado, por conferir um fator de proteção
de 96% ao parceiro soronegativo [3]. Tal fato pode configurar um fator de
vulnerabilidade a depender do contexto de inserção.
A crença da não
transmissibilidade sexual do HIV, associada com a repetição de resultados de
testes sorológicos sequenciais realizados pelo integrante soronegativo da
relação, corrobora a decisão do casal em não adotar estratégias preventivas ao
HIV na vida cotidiana [14]. Cabe ao profissional de saúde explicar, durante a
consulta de escuta integrada, que a diminuição do risco de transmissão
secundária ao tratamento antirretroviral com carga viral indetectável existe,
porém não é nula. Além de haver a necessidade de orientar quanto à replicação
do vírus no trato genital que pode acontecer em índices elevados, mesmo diante
da não detecção de carga viral sanguínea [14]. Neste contexto, é preciso
reforçar o uso de medidas preventivas durante as relações sexuais, visto ser
fundamental na luta contra a epidemia.
Crenças
e fatores culturais que interferem na vida afetivo-sexual de casais sorodiscordantes
Os mitos e as
questões culturais podem influenciar na adoção de medidas de prevenção ao HIV
de forma imperceptível para os integrantes de uma relação [13-14]. Alguns
ideais podem ter sido construídos no início da epidemia quando havia uma forte
associação da mesma a práticas homossexuais [6]. Assim, a heterossexualidade
compulsória e monogâmica é vista como padrão normal de sexualidade saudável,
por aparentemente conferir ao casal um maior fator de proteção [16].
A mesma reflexão
ocorre nas práticas de sexo vaginal, consideradas “menos perigosas” em
detrimento às práticas anais, pois, já que as últimas não estão dentro de um
padrão socialmente aceitável, deixam o indivíduo em maior condição de
vulnerabilidade [13-14,16].
Alguns mitos
ultrapassam a concepção de gênero e sexualidade. Com mulheres recatadas,
passivas e religiosas pode-se não usar o preservativo durante as relações
sexuais, pois o risco de infecção pelo HIV é maior nas relações com mulheres
ousadas e de atitudes ativas, consideradas pelos homens como “fáceis”, atos nos
quais é, obrigatório para eles, então, o uso do preservativo [16].
Atrelado a estas
questões, está no imaginário popular a ideia que o
portador do vírus do HIV possui uma aparência de enfermo, emagrecido, pálido,
facilmente identificável na hora de escolher o parceiro para relacionar-se
[16]. O avanço da medicina permitiu que a qualidade de vida, saúde e vitalidade
do portador do HIV melhorasse consideravelmente [4]. Dessa forma, usar a imagem
corporal para predizer a necessidade de adoção de sexo seguro configura, na
realidade, um grande fator de vulnerabilidade individual ao HIV.
É evidente, assim,
que as questões relacionadas à vulnerabilidade ao HIV se dão em diversas outras
áreas e não apenas na adoção de preservativo de forma permanente nas relações
sexuais. A incorporação destes conhecimentos nas ações planejadas de saúde
possibilita a desconstrução da visão errônea que o indivíduo tem sobre alguns
aspectos da doença e favorece a manutenção do sexo seguro nas relações.
Desde o anúncio da
terapia antirretroviral - tratamento de escolha para o HIV - houve sucessão de
avanços na área de saúde voltada para a busca da cura da epidemia, melhoria da
qualidade da terapia medicamentosa, avanços nos testes sorológicos e de tratamentos
secundários, assim como implantação de ações de promoção à
saúde, direcionadas para as pessoas que convivem com o vírus.
Do ponto de vista
sociocultural, contudo, a Aids pouco mudou. É muito
forte, ainda, a construção social de percebê-la no papel de doença restrita a
“grupos de risco”, fato que configura uma barreira impeditiva da manutenção de
sexo seguro entre os indivíduos, principalmente entre os casais sorodiscordantes.
Fatores a exemplo da
resistência masculina ao uso do preservativo, pouca capacidade feminina em
negociar práticas de sexo seguro, o uso da terapia antirretroviral enquanto
fator de proteção e a influência de crenças e fatores culturais na vida
afetivo-sexual de casais sorodiscordantes foram
evidenciados neste estudo, apresentando um descompasso entre as ações
preventivas promovidas pela gestão em saúde e a realidade cotidiana do casal.
Diante do exposto,
pode-se referenciar a Educação em Saúde como uma ferramenta potencial de
prevenção, promoção, assistência e acompanhamento de casais sorodiscordantes.
É necessário, pois, uma visão ampliada dos profissionais de saúde, de forma a
propiciar um cuidado integral, que valorize os aspectos da vulnerabilidade
individual, aqui apresentados, e contribua com a qualidade de vida dessa
população específica.