ARTIGO ORIGINAL

Processo de trabalho na Estratégia de Saúde da Família: (des)articulação das relações entre gestores, trabalhadores de saúde e usuários

 

Monica Oliveira Rios, M.Sc.*, Maria Angela Alves do Nascimento, D.Sc.**

 

*Docente de Enfermagem na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), **Professora Titular Pleno da Universidade Estadual de Feira de Santana/BA

 

Recebido 12 de junho de 2017; aceito 15 de junho de 2018

Endereço para correspondência: Monica Oliveira Rios, Universidade do Estado da Bahia. 

Rua Silveira Martins, Cabula 41150-000 Salvador BA, E-mail: mony_fsa@yahoo.com.br; Maria Angela Alves do Nascimento: angelauefs@yahoo.com.br

 

Resumo

Introdução: O processo de trabalho em saúde é estruturado a partir dos seus agentes que possuem saberes e práticas já estruturados e o controle sobre o objeto de sua ação. Objetivo: Analisar o processo de trabalho da equipe Saúde da Família para a resolubilidade da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Material e métodos: Abordagem qualitativa, crítica analítica; utilizaram-se como técnicas de coleta de dados a entrevista semiestruturada e a observação sistemática. Os campos de estudo foram às unidades de saúde da família de Feira de Santana/BA. Os participantes foram usuários e trabalhadores de saúde da ESF, totalizando 17 pessoas. O método para análise dos dados foi a Análise de Conteúdo Temática. Resultados: Foram discutidas as concepções sobre o processo de trabalho na ESF, com foco em sua prática e objetivos, ressaltando as relações concebidas entre gestores dos SUS, trabalhadores de saúde e usuários da ESF na Produção do Cuidado em busca da resolubilidade das ações de saúde, frente às necessidades dos usuários. Conclusão: Na abordagem do estudo, o processo de trabalho nas USF estudadas tem desempenhado ações que obedecem aos programas ministeriais, mantendo uma organização nas atividades rotineiras do serviço, porém limitando o acesso dos demais usuários que não se enquadram nas especificidades de cada programa.

Palavras-chave: processo de trabalho, estratégia de saúde da família, relações.

 

Abstract

Work process in the Family Health Strategy: (dis)articulation of the relationships between managers, health workers and users

Introduction: The health work process is structured from its agents who have already structured knowledge and practices and control over the object of their action. Objective: To analyze the work process of the Family Health team for the resolubility of the Family Health Strategy (FHS). Methods: Qualitative approach, analytical critique; Semi-structured interview and systematic observation were used as data collection techniques. The fields of study were the health units of the family of Feira de Santana/BA Brazil. The participants were 17 users and health workers of the FHS. The data analysis method was Thematic Content Analysis. Results: The conceptions about the work process in the FHS were discussed, with a focus on their practice and objectives, highlighting the relationships conceived between SUS managers, health workers and FHS users in Care Production in search of the resolubility of health actions, in front of the needs of users. Conclusion: The work process in the USF studied has performed actions that obey the ministerial programs, maintaining an organization in the routine activities of the service, but limiting the access of the other users that do not fit the specificities of each program.

Key-words: work process, family health strategy, relationships.

 

Resumen

Proceso de trabajo en la Estrategia de Salud de la Familia: (des)articulación de las relaciones entre gestores, trabajadores de salud y usuarios

Introducción: El proceso de trabajo en salud está estructurado a partir de sus agentes que poseen saberes y prácticas ya estructurados y el control sobre el objeto de su acción. Objetivo: Analizar el proceso de trabajo del equipo Salud de la Familia para la resolución de la Estrategia de Salud de la Familia (ESF). Material y métodos: Enfoque cualitativo, crítica analítica; se utilizaron como técnicas de recolección de datos la entrevista semiestructurada y la observación sistemática. Los campos de estudio fueron las unidades de salud de la familia de Feira de Santana/BA. Los participantes fueron usuarios y trabajadores de salud de la ESF, totalizando 17 personas. El método para analizar los datos fue el Análisis de Contenido Temático. Resultados: Se discutieron las concepciones sobre el proceso de trabajo en la ESF, con foco en su práctica y objetivos, resaltando las relaciones concebidas entre gestores de los SUS, trabajadores de salud y usuarios de la ESF en la Producción del Cuidado en busca de la resolución de las acciones de salud, ante las necesidades de los usuarios. Conclusión: En el abordaje del estudio, el proceso de trabajo en las USF estudiadas ha desempeñado acciones que obedecen a los programas ministeriales, manteniendo una organización en las actividades rutinarias del servicio, pero limitando el acceso de los demás usuarios que no se encuadran en las especificidades de cada programa.

Palabras-clave: proceso de trabajo, estrategia de salud de la familia, relaciones.

 

Introdução

 

O processo de trabalho em saúde é estruturado a partir dos seus agentes que possuem saberes e práticas já estruturadas e o controle sobre o objeto de sua ação [1]. Entretanto, concretamente, no campo da saúde notamos que existe uma hegemonia do trabalho médico, construída historicamente em relação às outras profissões, de forma que o processo de trabalho em saúde vai se organizando e se constituindo a partir da prática médica, e na divisão parcelar, cabendo à medicina o poder de cura acima das demais profissões.

Ainda assim, salientamos que, onde prevalece o modelo médico hegemônico, o trabalho em saúde vai se adequando a partir dessas relações de poder atreladas ao saber médico e, consequentemente, reproduz a divisão técnica e social do trabalho a partir da fragmentação do objeto de trabalho, cabendo todo processo de trabalho da Produção do Cuidado reservado à medicina, em detrimento às outras profissões.

Daí, assumirmos que o processo de trabalho em saúde pode ser concebido como a coprodução constituída por um coletivo (equipe), cujo objetivo das atividades é o usuário e não a doença, o núcleo central da racionalidade que norteia as ações e conhecimentos científicos dos profissionais nos serviços de saúde [2]. Para tanto destacamos que o foco no usuário requer uma relação mútua entre os dois sujeitos (usuários-trabalhadores) com interação e corresponsabilização pela Produção do Cuidado.

Nas experiências apresentadas pelo cuidado enquanto tecnologia [3] destacamostrês aspectos importantes: o primeiro se refere à democratização do processo de trabalho na organização dos serviços de saúde, com a participação dos usuários e dos diferentes trabalhadores de saúde nas decisões sobre a gestão do cuidado; o segundo diz respeito à renovação das práticas de saúde, na perspectiva da atenção com oferta de novas práticas terapêuticas; e o terceiro se volta à valorização do cuidado como tecnologia complexa da saúde. Assim, a junção de tais aspectos na Produção do Cuidado da ESF deve somar, enquanto evolui ao processo de reformulação e reorientação das práticas de Atenção Básica para atender as demandas essenciais e trazer resolubilidade aos serviços de saúde.

Neste sentido, é preciso repensar o processo de trabalho em saúde, em busca de uma Produção do Cuidado que apresente postura de ações e serviços, que não apenas delibere procedimentos e consultas, mas que desenvolva práticas interdisciplinares que fortaleçam a integralidade, em busca do vínculo, responsabilização e autonomia nas relações usuário-trabalhadores de saúde, conduzindo assim a resolubilidade das necessidades de saúde dos usuários a partir da Produção do Cuidado na Estratégia de Saúde da Família.

Diante do exposto, neste estudo temos como objetivo analisar o processo de trabalho da equipe Saúde da Família para a resolubilidade da Estratégia de Saúde da Família, fazendo ressalva ao processo de trabalho da equipe de enfermagem neste contexto frente aos limites de desafios das demandas de saúde dos usuários.

 

Material e métodos

 

Estudo de abordagem qualitativa, na perspectiva crítica analítica, se configurando a modalidade mais apropriada para este estudo frente às relações estabelecidas entre os sujeitos da pesquisa, já que a questão da saúde relaciona uma complexa interação entre aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais da condição humana.

O campo de estudo foram as Unidades de Saúde da Família (USF) do município de Feira de Santana/BA, e os critérios de inclusão das USF para participação na pesquisa foram: USF com equipes completas, ou seja, uma equipe mínima com um (1) médico, uma (1) enfermeira, dois (2) técnicos de enfermagem, um (1) cirurgião dentista e quatro (4) agentes comunitários de saúde; USF com sede própria e no mínimo com um (1) ano de funcionamento; e USF que participaram do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB).

Após autorização do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP)/UEFS para iniciar a pesquisa selecionamos as USF, totalizando-se cinco unidades, três delas sediadas na zona urbana e duas na zona rural. Os participantes deste estudo estão divididos em dois grupos:

O grupo I: Trabalhadores de saúde da Estratégia de Saúde da Família (médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, cirurgião – dentista, auxiliar de saúde bucal, agente comunitário de saúde).

O grupo II: usuários dos serviços de saúde da Estratégia de Saúde da Família.

Dentre os critérios de inclusão para delimitação dos participantes do estudo utilizamos os seguintes critérios: a) trabalhadores ter no mínimo um (1) ano de experiência na unidade saúde da família a ser pesquisada; b) usuários cadastrados nas USF e maiores de 18 anos, que frequentaram a unidade pesquisada, no mínimo, por duas vezes no último semestre.

Portanto, neste estudo, a partir de determinado número de participantes, as falas chegaram à exaustão pela sua repetitividade, e assim foram delimitados 17 participantes, respectivamente Grupo I (nove trabalhadores de saúde identificados com os números 1, 2, 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16) e o grupo II (oito usuários representados pelos números 3, 4, 5 ,6, 7, 8, 9 e 17), atendendo – se a disponibilidade naquele momento de cada participante do estudo. Os participantes do estudo são representados da seguinte forma: entrevistado 1, entende – se E 1 e assim sucessivamente.

Dentre as técnicas/instrumentos de coleta de dados, utilizamos duas técnicas adequadas ao estudo: a entrevista semiestruturada e a observação sistemática. Por conseguinte escolhemos como método a Análise de Conteúdo Temática, para buscarmos o aprofundamento dos dados coletados a partir das entrevistas e observações. Por representar um estudo envolvendo seres humanos, esta pesquisa se baseia na Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde [4]. Dessa forma, respeitamos os princípios éticos e morais com os participantes da pesquisa, apesar de compreendermos que toda pesquisa com seres humanos além dos seus benefícios também apresentam riscos. Esta produção contempla parte dos resultados da dissertação de mestrado com protocolo de aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) CAAE 31669414.9.0000.0053, parecer consubstanciado no. 733.003 e data da relatoria 16 de junho de 2014.

 

Resultados e discussão

 

Discutiremos as diversas concepções sobre o processo de trabalho na ESF, com foco em sua prática e relações com a gestão na Produção do Cuidado em busca da resolubilidade das ações de saúde, frente às necessidades dos usuários. Faremos também uma abordagem e discussão sobre o processo de trabalho da enfermagem na ESF e alguns desafios enfrentados pelos trabalhadores de saúde em suas relações trabalhistas.

No Brasil, o sistema de saúde com sua rede de atenção são constituídos por um trabalho coletivo institucional, que se desenvolve com características do trabalho profissional e também da divisão parcelar ou pormenorizado do trabalho e da lógica taylorista de organização e gestão do trabalho [5]. Frente a esta lógica, ainda, o setor saúde vem apresentando a racionalidade do trabalho, com características tais como as atividades cada vez mais especializadas, e a alienação dos trabalhadores, os quais são ou não estimulados à reflexão para pensar em saúde numa visão também social.

 

As práticas na ESF: atividades grupais e assistenciais focalizadas

 

As práticas desenvolvidas na ESF, segundo os trabalhadores de saúde, são focalizadas em procedimentos, atividades educativas e grupais e assistenciais.

 

A gente tem a parte da prevenção que são os grupos, de hipertensos, diabéticos, gestantes; tem a sala de espera, tem a promoção mesmo que é aferição de TA, vacina, curativo, visita domiciliar, notificação, [...] consulta do médico, consulta de odontologia [...] (E2, Grupo I).

 

As falas dos usuários fazem referência à atuação nas USF com uma Equipe de Saúde da Família (EqSF) multidisciplinar, no desenvolvimento das ações programáticas.

 

Tem a área de vacina, o clinico, tem também é, a enfermeira chefe que faz preventivo, toda quarta e tem também pré-natal tem e tem reunião, sempre tem reunião as coisas que elas faz, marca, tem programação elas faz programação também comemorativo (E4, Grupo II).

 

Vimos nas agendas de atendimento dos trabalhadores de saúde, que as atividades eram predominantemente as consultas definidas pelos Programas Ministeriais e poucos horários para atividades educativas. As raras atividades educativas desenvolvidas eram coordenadas e executadas apenas pelos trabalhadores de saúde do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF).

A justificativa dada à ausência da atuação da EqSF foi “a falta de tempo”. Apenas em duas equipes observamos o agendamento prévio de reunião comunitária registrada nas agendas de marcação dos atendimentos. Nas demais, as equipes e grupos da comunidade afirmaram haver reuniões, porém não é referida a frequência nem tem um cronograma de reuniões por falta de registro ou material de divulgação.

Outrossim, o comprometimento da resolubilidade na ESF muitas vezes é ocasionado pelo exercício hegemônico de uma clínica centrada no ato prescritivo e na produção de procedimentos, em ação substitutiva da prática que valoriza a clínica como o exercício ampliado de múltiplos trabalhadores numa situação entre si e com os usuários [6]. Portanto, tal modalidade de atendimento nos serviços da Atenção Básica da rede SUS, pode ter sua resolubilidade comprometida devido a um frágil vínculo com a comunidade e ações/práticas pontuais e fragmentadas, inclusive as da Enfermagem, diante da exigência do quantitativo da sua produtividade.

A enfermeira é uma profissional com formação acadêmica permeada de tensões entre o teórico e o prático e o ideal e a realidade, o que contribui na dificuldade em delinear seu campo de atuação [7]. Portanto, convive com o universo profissional a partir dos determinantes que podem gerar estímulos à prática autônoma em seu exercício ou restringi-la.

No entanto, a quantidade de atribuições delegadas às enfermeiras vem dificultando o cumprimento da Produção do Cuidado, uma vez que uma prática produtivista inviabiliza momentos de reflexão sobre o cotidiano e suas ações [8].

No desenvolvimento dessas atividades clínicas assumidas pelas enfermeiras estão também as atividades de caráter gerencial e administrativo, como também as capacitações e supervisões dos ACS e auxiliares de enfermagem.

 

Processo de trabalho da enfermagem na ESF: dos desafios às relações trabalhistas

 

Partindo para as práticas da Enfermagem, os trabalhadores e usuários convergem quanto à supervalorização das práticas assistenciais, focadas nas ações programáticas, dirigidas à criança, mulher, homem e idoso, e aos procedimentos outros, conforme explicitado a seguir:

 

[...] curativo, faz as consultas, né, que faz consultas de pré-natal, preventivo, hipertensão, criança, gestante, puérpera, planejamento familiar, aí na consulta faz a visita domiciliar, faz a prevenção, faz a parte da vigilância epidemiológica, que a gente faz as notificações, das buscas ativas (E2, Grupo I).

 

Dá injeção, as vacinas completas, tanto de idosos quanto das crianças, é, faz curativo, afere a pressão, e atende emergências quando chega assim rápido pra mandar pra outro posto, pra outra unidade de saúde né (E5, Grupo II).

 

Ainda assim, os trabalhadores de saúde complementam que as ações de enfermagem na ESF também se concentram em práticas gerenciais, no atendimento às demandas administrativas de gerenciamento da ESF e de supervisão da EqSF.

 

No meu processo de enfermeira no caso, a gente faz a supervisão né, dos ACS, faz a supervisão do ACS, da técnica de enfermagem a supervisão da unidade como todo, a gente faz a gerência, desde o controle de material, controle da sala de vacina, da unidade toda né, [...] (E2, Grupo I).

 

A todo o momento da nossa observação acompanhamos o trabalho desenvolvido pelas equipes de enfermagem das USF participantes do estudo. Destacamos, primeiramente, a prática de agendamentos dos usuários às ações e/ou serviços de saúde demandados. O agendamento fica sob responsabilidade do setor da recepção das unidades, sem seguirem o estabelecimento de prioridades, dentro de um grau agravos/riscos de cada usuário, restringindo o atendimento a grupos focalizados e fragilizando o vínculo com a comunidade.

Nas atividades agendadas para as enfermeiras apenas os usuários inseridos nos Programas do Ministério da Saúde. A respeito da consulta de enfermagem, observamos no consultório de enfermagem diversos impressos e cópias de ofícios sobre a mesa. Na oportunidade ficou explícita uma aparente preocupação das enfermeiras quanto às questões gerenciais da unidade; os técnicos de enfermagem se ocupavam com a realização de procedimentos. Naquele período de coleta, só presenciamos as atividades assistenciais e/ou gestão da USF. Não vimos nenhuma prática educativa como educação em saúde, educação permanente em saúde, “capacitações” direcionadas à EqSF ou usuários da ESF.

A realidade da prática de saúde na ESF é caracterizada por ações programáticas com uma demanda organizada. Apesar de algumas críticas, concordamos, em parte, com Almeida et al. [9] em que as ações programáticas podem aperfeiçoar as atividades das equipes, uma vez que possibilitam programar ou planejar suas intervenções. Porém, para os autores, a demanda organizada e focalizada em grupos de risco limita o acesso dos demais usuários ao serviço e contribui para formação das filas durante a madrugada.

Outrossim, o trabalho de enfermagem, realizado pela equipe de enfermagem é assumido desde a recepção, ou seja, marcação, devido à ausência ou falta de auxiliares administrativos; à ausência de técnicos habilitados à distribuição de medicamentos nas farmácias das unidades.

O Conselho Regional de Enfermagem da Bahia Coren/BA [10], tendo em vista as evidências de que os trabalhadores de enfermagem estão sendo instados a assumirem a guarda e dispensação de medicamentos no âmbito da Atenção Básica e nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), reiteram o parecer técnico publicado no dia 9 de julho de 2013 (nº 016/2013), respaldando-os a recusar tal prática, uma vez que aqueles não possuem competência técnica e legal para realizar dispensação e/ou supervisão de unidades farmacêuticas, considerando as normas e as determinações legais vigentes.

Do mesmo modo, discutindo sobre a relação das EqSF e os gestores, durante a observação no serviço, verificou-se momentos pontuais de supervisão e reuniões mensais com as supervisoras quando os trabalhadores mantêm contato como representante da gestão. As supervisoras são consideradas o elo ou o apoio da gestão para com as equipes de saúde da ESF.

Todavia, vemos a importância das reuniões mensais, tendo em vista as discussões e os relatos das demais equipes, ou melhor, das enfermeiras das equipes. Momento utilizado para o repasse das informações e cobranças da gestão para as equipes de saúde. Entretanto, percebemos que tais reuniões, muitas vezes, têm pouca resolubilidade, pois os problemas identificados dificilmente são resolvidos.

Diferentemente das demais falas aqui destacadas até então, a E14 caracteriza a relação entre gestores e equipe de caráter avaliativo negativo.

 

[...] mas se você errar um pouquinho a Secretaria descobrir um erro você é a pior pessoa do mundo, então as técnicas se sentem triste às vezes, porque sempre fazem perfeito, mas se erra um pouquinho você já é prejudicado, um exemplo disso é o teste do pezinho, que a gente sempre manda certo, manda certo, mas se você erra uma coisa que está escrito, no escrito, já é prejudicado, já diz que você vai pagar aquilo, que vai pagar o filtro, que vai ser prejudicado por isso, que vai ser descontado do salário [...] (E14, Grupo I).

 

Uma situação que, muitas vezes, se confunde com situações de assédio moral e cobranças desnecessárias às equipes. Tais situações permeiam, com frequência, a relação entre gestor e trabalhador, que frequentemente levam, muitas vezes, medo e retração por parte do trabalhador para não perder seu emprego, diante de sua frágil segurança de contrato por cooperativas, culminando da precarização do seu trabalho.

Na realidade, tal contexto poderia ser visto como violência no trabalho, definida como incidentes em que o trabalhador sofre abuso, ameaça ou ataque em circunstâncias relacionadas ao seu trabalho [11]. Além disso, alguns trabalhadores de saúde sofrem com a sobrecarga de atividades, visto o acúmulo de atividades, principalmente as gerenciais, por conta da falta de profissionais.

O conceito desta sobrecarga de trabalho se refere à percepção de demandas excessivas para a pessoa e ao sentimento de ter um peso a carregar em consequência destas demandas [12]. Neste sentido, as demandas de saúde dos usuários na ESF contemplam necessariamente uma equipe mínima de profissionais para conter todas as atividades ou serviços ofertados. Mas, na rede pública de saúde é comum a fatídica realidade de carência profissional devido à contratação insuficiente de trabalhadores para o cumprimento legal do exercício profissional, em conformidade com a demanda e com a oferta.

A realidade sobre a sobrecarga de usuários em que a ESF vem sendo exposta impõe dificuldades na capacidade de comportar e garantir o acesso a todos que demandam dos seus serviços de saúde [9]. O Ministério da Saúde recomenda uma carga populacional de 3.000 pessoas cadastradas por área de abrangência [13]. Porém, observamos que o limite de pessoas recomendado pelo Ministério da Saúde não vem sendo atendido na ESF, principalmente nas regiões mais distantes, exemplo das unidades de zona rural, onde não se encontram outras opções de atendimento disponível.

A sobrecarga de trabalho em consequência do quantitativo insuficiente de profissionais para atender a demanda de saúde da comunidade, ou por acúmulo de novas atividades tem convergências nas falas dos trabalhadores de saúde.

 

[...] um dos primeiros pontos é a quantidade de famílias que a gente acompanha, a gente está assim sobrecarregada, tem famílias para duas equipes [...] a gente só tem uma técnica na vacina e uma na triagem, que fica farmácia, triagem, curativo (E10, Grupo I).

 

Naquele período que fizemos a observação notamos realmente a quantidade insuficiente de trabalhadores de enfermagem nas três unidades; duas delas com trabalhadores de atestado médico e férias trabalhistas, sem substitutas para o desempenho da sua prática.

A outra USF havia um déficit de contratação de trabalhadores de enfermagem, o que levou a uma das técnicas de enfermagem à justaposição de atividades, ocasionando dificuldades, como, por exemplo, na atuação nas salas de vacina e curativo, pois uma só trabalhadora não poderia circular em ambiente contaminado pela realização de procedimentos como curativos e retiradas de ponto, e retornar para sala de vacina, tendo que deixar de atuar, devido à necessidade de fechar uma dessas salas por um turno, ou a enfermeira ter que suspender seu atendimento em determinado Programa para realizar as vacinações.

Presenciamos então, diante do exposto, uma situação de justaposição e/ou sobrecarga de atividades para os trabalhadores de saúde, principalmente os da enfermagem. De fato, são vistas algumas dificuldades devido ao número excessivo de famílias cadastradas, a contratação insuficiente de profissionais e as novas demandas de atividades da gestão municipal de saúde o que contribui para o acúmulo de atividades para a EqSF que, por sua vez, frente aos frágeis vínculos empregatícios, omite sua insatisfação e não questiona o problema, assumindo assim todas as atividades e as executando muitas vezes, de forma inapropriada.

Outrossim, geralmente as EqSF tem sob sua responsabilidade quase o dobro do número de famílias preconizado pelo Ministério de Saúde, e além da grande demanda interna de atividades, a sobrecarga de trabalho se agrava quando há frequentes solicitações de atividades outras pela gestão municipal [14]. Assim, os trabalhadores de saúde deixam de lado o que tinha sido programado para priorizar a demanda da gestão, envolvendo nesse processo os agentes comunitários e a enfermeira.

Para os trabalhadores de saúde esta realidade é um reflexo de desvalorização e insatisfação salarial relacionada ao trabalho desenvolvido na ESF.

 

[...] a gente não tem quase reconhecimento como profissional, não tem [...] da relação de emprego que a gente, aquela parte mesmo de num foi concursado, porque não foi concursado, porque não abre concurso, então aquela parte de politicagem pelo meio, de tirar uma pessoa que já está qualificada e bota outro que nem conhece o trabalho ainda coloca no lugar, a estabilidade nossa (E11, grupo I).

 

Começar com a questão do nosso salário, né,[...] então a gente já começa ai com a insatisfação salarial realmente [...], tem várias capacitações impondo pra a gente está realizando novas práticas, né, com novos programas, mas é uma coisa que a gente busca tempo, busca espaço na nossa agenda e a gente não tem [...] (E12, Grupo I).

 

Os problemas relacionados às questões de desvalorização profissional, incluindo baixos salários, sobrecarga de atividades e cobranças desnecessárias por parte da gestão, implicam diretamente no desempenho dos trabalhadores de saúde. Essa insatisfação da EqSF foi por nós percebida, comprometendo inclusive a resolubilidade da Produção do Cuidado na ESF, visto que suas demandas, por diversas vezes não são atendidas. Enfim, a desmotivação profissional dos trabalhadores de saúde limita a busca por melhorias no serviço e o atendimento integralmente às necessidades dos usuários.

No Brasil, o trabalho precário na Produção do Cuidado refere-se à desproteção social; isto é, situações em que os trabalhadores não têm direitos e benefícios assegurados pelas legislações trabalhistas, como licença maternidade, férias anuais, décimo terceiro salário, aposentadoria, baixos salários e as precárias condições de trabalho dos profissionais do serviço público, geradores de desmotivação, desresponsabilização na execução das atividades – por exemplo, não-cumprimento da carga horária – e abandono do trabalho [15].

Mesmo assim, apesar de todos os percalços atrelados às questões de valorização profissional, percebemos que a essência do vínculo entre trabalhadores de saúde e comunidade se mantém, aparentemente harmonizando as relações entre eles.

 

Conclusão

 

Em síntese, o processo de trabalho das EqSF a respeito da Produção do Cuidado em saúde, nas USF pesquisadas é caracterizada por ações programadas por grupos vulneráveis, pré-estabelecidos pelo Ministério da Saúde, atividades com foco nos procedimentos e tecnologias leve-duras e duras, e multidisciplinar, complementada pela atuação do NASF, porém sem interdisciplinaridade. A enfermagem mantém um vínculo entre equipe e comunidade; e uma relação distanciada, sem vínculo, entre gestores e usuários, com uma gestão de caráter punitivo frente às relações de trabalhadores e os próprios gestores e relação de confiança e vínculo entre trabalhadores e usuários.

O propósito do processo de trabalho na ESF requer tanto das equipes de saúde (trabalhadores) como dos demais participantes do processo, gestores e usuários, o compromisso com a resolubilidade na Produção do Cuidado, imbuído de autonomia, saber técnico e encorajamento para o enfrentamento das dificuldades, criando assim suas perspectivas para a redução da gigante demanda reprimida ou demanda de atenção à saúde da comunidade não resolvida pela ESF.

 

Referencias

 

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