ARTIGO
ORIGINAL
Inserção
da terapia ocupacional na assistência às mulheres que sofrem violência
doméstica
Marcia Karolayne Garcia de Quadros*, Ângela Maria Bittencourt
Fernandes da Silva*, Karina Lois Pereira**, Wiliam
César Alves Machado, D.Sc.**,
Teresa Tonini, D.Sc.**, Nébia Maria Almeida de Figueiredo, D.Sc.**
*Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRJ), **Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Recebido em 25 de
junho de 2017; aceito em 18 de setembro de 2017.
Endereço
para correspondência:
Wiliam César Alves Machado, Rua Silva Jardim, 5, 25805-160 Três Rios RJ,
E-mail: wilmachado@uol.com.br, Marcia Karolayne
Garcia de Quadros: marciaquadros@live.com; Ângela Maria Bittencourt Fernandes
da Silva: angela.silva@ifrj.edu.br; Karina Lois
Pereira: karinaloispereira@gmail.com; Teresa Tonini:
ttonini@terra.com.br; Nébia Maria Almeida de
Figueiredo: nebia43@gmail.com
Estudo extraído da
pesquisa intitulada “Empoderamento da mulher vítima
de violência familiar: expectativas de acolhimento e cuidado de Terapia
Ocupacional”. Desenvolvido através de investigação acadêmica institucional patrocinada
pelo CNPq
Resumo
Objetivo: Analisar a inserção
do terapeuta ocupacional na assistência às mulheres em situação de violência,
baseada em seus relatos na rede de serviços específicos da zona oeste do
Município do Rio de Janeiro. Método:
Estudo observacional, descritivo, abordagem mista, realizado com 39 mulheres,
vítimas de violência doméstica. Coleta de dados através de entrevistas
realizadas em unidade do Centro de Referência de Assistência Social, no
decorrer das oficinas de sensibilização da Terapia Ocupacional. Dados
qualitativos categorizados a luz da análise de conteúdo e quantitativos
submetidos ao software Iramuteq. Resultados: Identificou-se que 85% das mulheres permanecem casadas,
92% com escolaridade suficiente para apresentar denúncias, mas não fazem por
temer represálias. 74% informam ter sofrido mais de seis episódios de
violência, com características que variam de ameaças, fraturas, estupro,
queimadura, inclusive na presença dos filhos. Conclusão: Constatou-se que a violência doméstica persiste, não
obstante a legislação que a pune. Percebeu-se também o crescente surgimento de
políticas públicas voltadas para o acolhimento no âmbito da saúde, legal,
social, como espaços propícios ao implemento de
atividades próprias da terapia ocupacional, que ofereçam recursos e
instrumentais para o empoderamento das mulheres
vítimas desses maus tratos.
Palavras-chave: terapia
ocupacional, acolhimento, violência doméstica, status ocupacional, empoderamento.
Abstract
Insertion of occupational therapy for assistance to women suffering
domestic violence
Objective: To analyze
the insertion of the occupational therapist in the assistance to women in
situation of violence, based on their reports in the
network of specific services of the western zone of the Municipality of Rio de
Janeiro. Methods: Observational and
descriptive study, mixed approach, performed with 39 women, victims of domestic
violence. Data collection through interviews conducted in a unit of the
Reference Center for Social Assistance, during the Occupational Therapy
awareness workshops. Qualitative data categorized in light of content and
quantitative analysis submitted to Iramuteq software.
Results: It was identified that 85%
of the women remain married, 92% with sufficient schooling to present
complaints, but they do not complain for fear of reprisals. 74% report having
suffered more than six episodes of violence, with characteristics ranging from
threats, fractures, rape, burn, even in the presence of their children. Conclusion: It was verified that
domestic violence persists, despite the legislation that punishes it. We noted
also the growing emergence of public policies aimed at welcoming health, legal
and social, as spaces conducive to the implementation of occupational therapy
activities, which offer resources and instruments for the empowerment of women
victims of these mistreatments.
Key-words: occupational
therapy, user embracement, domestic violence, occupation, power.
Resumen
Inserción de la terapia ocupacional en la asistencia
a las mujeres que sufren violencia doméstica
Objetivo: Analizar
la inserción
del terapeuta ocupacional en
la asistencia a las mujeres en
situación de violencia, basada en sus relatos en la red
de servicios específicos de la
zona oeste del Municipio de
Río de Janeiro. Método:
Estudio observacional, descriptivo,
enfoque mixto, realizado con
39 mujeres, víctimas de violencia doméstica. Recolección
de datos a través de entrevistas realizadas en unidad del Centro de Referencia de Asistencia
Social, en el transcurso de
los talleres de sensibilización de la Terapia
Ocupacional. Datos cualitativos
categorizados a la luz del análisis de contenido y datos cuantitativos sometidos al software Iramuteq.
Resultados: Se identificó
que el 85% de las mujeres permanecen
casadas, el 92% con escolaridad suficiente para presentar denuncias, pero no hacen por temor a represalias. El
74% de las mujeres que han sufrido más de seis episodios de violencia, con características que varían de
amenazas, fracturas, violación, quemadura, incluso en presencia de los hijos. Conclusión: Se constató que la violencia
doméstica persiste, a pesar de la legislación
que la castiga. Se percibió
también el
creciente surgimiento de
políticas públicas orientadas hacia la acogida en
el ámbito de la salud, legal, social, como espacios propicios al implemento
de actividades propias de la terapia ocupacional, que ofrezcan
recursos e instrumentales para el
empoderamiento de las mujeres víctimas de esos malos tratos.
Palabras-clave: terapia
ocupacional, acogimiento, violencia
doméstica, empleo, empoderamiento.
A violência contra a
mulher é um problema mundial, de cunho social, histórico e cultural, presente
na humanidade desde seus primórdios. Historicamente, por força do patriarcado,
a mulher ficou subordinada ao poder masculino, tendo basicamente a função de
procriação, de manutenção do lar e de educação dos filhos, numa época em que o
valor era a força física [1]. Com o passar do tempo, foram sendo criados e
produzidos instrumentos que dispensaram a necessidade da força física,
especialmente no mercado de trabalho, todavia essas desigualdades entre os
sexos em vez de diminuírem foram cada vez mais acentuadas [2,3].
De acordo com a
Organização Mundial de Saúde (OMS) [4], características individuais,
familiares, culturais e sociais fazem parte de um complexo conjunto de fatores
predisponentes para que a mulher torne-se vítima de violência doméstica. Na
mesma sintonia, o Ministério da Saúde (MS) sintetizou algumas formas de
violência, entre elas destacam-se: a doméstica, a intrafamiliar e a física. A
violência doméstica é concebida como todo o tipo de violência que inclui
membros do grupo, sem função parental, que convivam no espaço doméstico. A
intrafamiliar refere-se a toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a
integridade física, psicológica, a liberdade e o direito pleno de um membro da
família. A física ocorre quando uma pessoa, que está em posição de poder em
relação à outra pessoa, causa ou tenta causar dano não acidental, por meio do
uso da força física ou de algum tipo de arma que possa provocar ou não lesões
externas, internas ou ambas [5].
Atualmente, também é
considerada violência a aplicação de castigo, repetido
não severo, cujos atos de violência física, se caracterizam por: tapas,
empurrões, socos, mordidas, chutes, queimaduras, cortes e estrangulamentos,
lesões por armas ou objetos, obrigar a tomar medicamentos desnecessários ou
inadequados (tais como álcool, drogas ou outras substâncias, inclusive alimentos),
tirar de casa à força, arrastar, arrancar a roupa, abandonar em lugares
desconhecidos e omitir cuidados e proteção [1,2,6].
A violência conjugal
ou de gênero tem sido entendida como violência contra a mulher cometida pelo
parceiro no contexto de uma relação afetiva e sexual, independentemente de ser
relação estável legalizada, podendo ocorrer tanto no espaço doméstico quanto no
urbano, abarcando a agressão física, sexual, emocional ou psicológica,
inclusive deixando marcas visíveis e invisíveis [7].
A violência de gênero
“envolve ações ou circunstâncias que submetem unidirecionalmente,
físicas e/ou emocionalmente, visível e/ou invisivelmente as pessoas em função
de seu sexo” [8:74], pois a maior vítima é a mulher. Segundo dados estatísticos
na América Latina, a violência doméstica incide entre 25% e 50% das mulheres.
No Brasil, 23% das mulheres brasileiras estão sujeitas à violência doméstica; a
cada 4 minutos, uma mulher é agredida em seu próprio lar por uma pessoa com
quem mantém relação de afeto; 70% dos crimes contra a mulher acontecem dentro
de casa e o agressor é o próprio marido ou companheiro; mais de 40% das violências
resultam em lesões corporais graves decorrentes de socos, tapas, chutes,
queimaduras, espancamentos e estrangulamentos.
Fenômeno social de
abrangência mundial, a violência doméstica contra mulheres ocorre com
frequência em sociedades machistas, como no Iran [9,10], no Iraque e Yemem [11], na Arabia Saudita
[12] e no Nepal [13]. Porém, a violência doméstica contra mulheres também está
presente e com mais evidência do tolerável em países “desenvolvidos” como os
Estados Unidos da América [14], na Austrália [15,16], na Nova Zelândia [17], e
na Espanha [18]. Da mesma forma, ocorre com frequência em todo o Brasil [19],
desde a Região Nordeste, mais especificamente em Pernambuco [20], na Bahia [7],
na Paraíba [1], passando pelo Distrito Federal [6], até chegar ao Sul, nos
Estados do Rio Grande do Sul [21] e de Santa Catarina [22].
Considerando a
terapia ocupacional (TO) como a ciência da ocupação humana, atuando nas suas
principais áreas de desempenho, como as atividades diárias, trabalho, lazer e
participação social, ela pode contribuir para minimizar processos de
desequilíbrio e doença das pessoas, particularmente aquelas envolvidas em
quadros depressivos, como mulheres vítimas de agressão domiciliar. Sobretudo,
porque é por meio do estudo da ocupação humana que o terapeuta ocupacional
intervém nesses processos [23]. É uma profissão do âmbito da saúde, cuja área
do conhecimento centra-se na análise e aplicação terapêutica de atividades:
aplicadas de maneiras diretas ou indiretas, físicas ou mentais, ativas ou
passivas, preventivas, corretivas ou adaptativas, abrangendo todas as fases da
vida de um indivíduo [24].
Diante da atual
incidência de atos violentos contra mulheres, praticados pelos seus
companheiros dentro de casa, o objetivo deste estudo é analisar a inserção do
terapeuta ocupacional na assistência às mulheres em situação de violência,
baseada em seus relatos na rede de serviços específicos da zona oeste do
Município do Rio de Janeiro.
Trata-se de estudo
observacional, descritivo, abordagem mista, extraído de pesquisa institucional
intitulada “Empoderamento da mulher vítima de
violência familiar: expectativas de acolhimento e cuidado de Terapia
Ocupacional” do CNPq, realizado em 2014, com 39 mulheres vítimas de violência
doméstica.
Cenário
O estudo foi
realizado no Centro de Referencia de Assistência Social Oswaldo Antonio Ferreira, localizado no entorno do Instituto
Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), campus Realengo, se tornou um equipamento
propício para desenvolver essa pesquisa, pela sua função frente à família e à
mulher vítima de violência familiar.
Implicações
éticas
O desenvolvimento do
estudo atendeu as normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa
envolvendo seres humanos e animais, parecer CAAE n° 19759713.8.0000.5268,
protocolo aprovado em 12/08/2013 pelo CEP do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.
Participantes
Participaram do
estudo 39 mulheres cadastradas no CRAS, que aceitaram frequentar as oficinas
que foram realizadas as quintas-feiras pela manhã, inicialmente no IFRJ e no
CRAS Oswaldo, com duração de 90 minutos.
Critérios
de inclusão
O critério de
inclusão das participantes deste estudo foi de mulheres acima de 18 anos,
independente de credo e etnia, cadastradas e usuárias
do CRAS de Realengo, que concordaram em participar da pesquisa, e figuravam
frequentadoras das oficinas.
Coleta
de dados e instrumentos e pesquisa
Para coleta de dados
optou-se pelas oficinas de sensibilização, ferramenta importante, pois se
tornou instrumento de intervenção homogêneo que comporta inúmeras invenções.
Nos espaços de oficinas foram envolvidos profissionais de diversas origens –
Psicologia, Terapia Ocupacional, Enfermagem, Serviço Social – que não seguiram
uma corrente teórica específica, mas, geralmente estavam
compromissados a propiciar as usuárias uma gama de experimentações sociais e, a
partir daí, criar possibilidades diversificadas de ser e de estar-no-mundo.
Os dados foram
gerados por depoimentos individuais espontâneos, audiogravados,
imagens do documentário acadêmico os quais foram produzidos, pelos fragmentos
das entrevistas, das imagens das oficinas de simulação, pela produção de
material didático utilizado nas oficinas, pelas reportagens divulgadas na
imprensa e algumas notas do Diário de Campo. Nessa ocasião as mulheres tiveram
a oportunidade de verbalizar sua história de vida, as estratégicas utilizadas
para diminuir as agressões e os cuidados com os filhos.
As oficinas
envolveram temas como educação, jogos, história, noção de pessoa, corporeidade,
religião, mitos e ritos, entre outros. Essa proposta implicou no pensamento e
na mudança de atitude das mulheres que foram mutuamente influenciadas à medida
que o trabalho se desenvolveu, enquanto foram potencializadas suas capacidades
intuitivas, inventivas, afetivas por meio da criação e da representação dos
fatos vividos ou narrados nos filmes e nos documentários apresentados nas
oficinas, ou até mesmo encenados por elas.
Tiveram como base o
encontro de vidas, promovendo o exercício da cidadania, a expressão de
liberdade e a convivência das diferenças por meio preferencialmente da
verbalização de suas histórias de vida e do enfrentamento da violência por
parte da mulher, que se realiza por três caminhos [25]:
Espaço de Criação:
possui como principal característica a utilização da atividade artística como
espaço que propicia a experimentação constante (desenho, pintura e colagem);
Espaço de Atividades
Manuais: utilização do espaço para a realização de atividades
manuais, em que seria necessário um determinado grau de habilidade e onde são
construídos produtos úteis à sociedade;
Espaço de Promoção de
Interação: neste estudo, teve como objetivo a promoção de interação de
convivência entre as mulheres, seus familiares e a sociedade como um todo
(verbalização e simulação).
Procedimentos
de análise
Optou-se
pela análise
de conteúdo [26], para realizar a análise qualitativa dos
dados que revela o
processo hermenêutico, estabelecendo toda e quaisquer
compreensão e
interpretação de manifestação
linguística. A técnica visa à inferência por
meio
da identificação e descrição objetiva e
sistemática de características
específicas nas mensagens, a fim de tornar replicáveis e
validar os
conhecimentos de dados de um contexto, consistindo em leitura
aprofundada de
cada resposta e decodificação de cada uma para se obter
a ideia sobre o todo.
A técnica de análise
de conteúdo seguiu as seguintes etapas:
Pré-análise - escolha de documentos, elaboração de
objetivos, hipóteses e indicadores (etapas: leitura flutuante, organização do
corpus, formulação de hipóteses e objetivos, elaboração de indicadores e
preparação do material). Este corpus foi preparado de acordo com as exigências
do Iramuteq [27] versão 7.2, codificado de acordo com
as variáveis e digitado em bloco de notas.
Exploração
do material
– codificação, recorte, contagem, classificação e enumeração. Para estar em
conformidade como Iramuteq 7.2 procedeu-se as
seguintes decodificações das variáveis: Sujeito participante da oficina (s_1,
um sujeito), idade (id_1 = 18 a 28 anos e id_2 = 29 a 38 anos), e escolaridade
(esc_1, ensino fundamental completo).
Os temas abordados na
análise textual foram:
Tratamento
dos resultados
– nesta etapa ocorre à dedução de maneira lógica,
descrição e análise das diferentes classes encontradas pelo software,
estabelecendo de maneira consciente a correspondência entre as estruturas
semânticas ou linguísticas e as estruturas psicológicas, sociológicas,
ambientais e físicas. Fazendo sempre a correlação com os contextos de violência
doméstica.
Interpretação – realização de
inferências a partir de análise estatística, quadro teórico e objetivos
propostos, com possibilidade de descoberta de novas dimensões teóricas, a qual
possibilita retornar ao referencial teórico, buscando embasar a análise dando
sentido a interpretação.
Dentro da análise de
conteúdo desta pesquisa, apresenta-se a matriz lexical e sua categorização.
Nesta operação os elementos da matriz lexical foram separados ou reagrupados em
razão dos caracteres comuns destes elementos por critérios semânticos, léxicos,
sintáticos ou expressivos.
Buscando preservar
anonimato e sigilo na identificação das participantes, optou-se pela utilização
da letra (P), seguida da ordem numérica das mesmas (1 a 39), após recortes de
suas falas, conforme descrições nas Classes 1, 2 e 3.
E os dados
quantitativos obtidos por depoimento espontâneo acerca de seus aspectos
socioeconômicos, seus valores e crenças, analisados com base na estatística
descritiva, gerada pelo software Iramuteq.
Software
IRAMUTEQ (Interface
de R pour les Analyses Multidimensionelles de Textes et de Questionnaire)
foi desenvolvido em 2009, originalmente no idioma francês.
Nas análises lexicais
clássicas, o programa identifica e reformata as unidades de texto, transformando
Unidades de Contexto Iniciais (UCI) em Unidades de Contexto Elementares (UCE); identifica
a quantidade de palavras, frequência média e número de hapax
(palavras com frequência um); pesquisa o vocabulário e reduz das palavras com base
em suas raízes (lematização); cria dicionário de formas reduzidas, identifica formas
ativas e suplementares [27,28].
Na
análise de especificidades,
é possível associar diretamente os textos do banco de
dados com variáveis descritoras
dos seus produtores; é possível analisar a
produção textual em função das
variáveis
de caracterização. Trata-se de uma análise de
contrastes, na qual o corpus é dividido
em função de uma variável escolhida pelo
pesquisador. O método da Classificação
Hierárquica Descendente (CHD) [28] classifica os segmentos de
texto em função dos
seus respectivos vocabulários, e o conjunto deles é
repartido com base na frequência
das formas reduzidas (palavras já lematizadas). Esta
análise visa obter classes
de UCE que, ao mesmo tempo, apresentam vocabulário semelhante
entre si, e vocabulário
diferente das UCE das outras classes.
Dados
quantitativos
Em relação ao estado
civil, 69% estão casadas ou vivem com seus companheiros a mais de sete anos,
somente três estão solteiras, seis refizeram suas vidas com outros
companheiros. Apesar das agressões 85% (33) mulheres permanecem casadas, o que
demonstra que a valorização do casamento formal, aliado à castidade feminina,
aparece como possível fator influenciador na associação entre violência
conjugal, pois elas continuam morando com seus agressores em suas casas.
No que diz respeito à
religião, Deus foi pouco referenciado por elas, apesar de 21 relatarem ser
evangélicas, 11 católicas, 4 espíritas e 3 ateias.
Tabela
I - Escolaridade, etnia e profissão. Mulheres,
Centro de Referência de Assistência Social, Rio de Janeiro/RJ, Brasil.
Tabela
II –
Agressor, percepção e
incidência da agressão.
Mulheres, Centro de Referência de Assistência Social, Rio de Janeiro/RJ,
Brasil.
Tabela
III
– Tipo e dimensão das lesões sofridas.
Mulheres, Centro de Referência de Assistência Social, Rio de Janeiro/RJ,
Brasil.
Fonte: Os autores
Dados
qualitativos
Como se tratou de
oficina aberta, a condução da obtenção dos dados se baseou nos seguintes eixos
temáticos: agressão (como e quando ocorrem), reconciliação (comportamento do
agressor após o ato), tensão (momentos e passos que alteram humor podendo levar
ao ato agressivo) e futuro (o que a mulher projeta para si, na perspectiva de
sair da agressão). A partir desse eixo e na própria dinâmica da entrevista, as
perguntas foram elaboradas no sentido de identificar os aspectos percebidos e
vividos pela mulher frente à violência doméstica. Além dessas informações,
foram coletados dados clínicos em relação às agressões.
A análise foi
executada a partir de um corpus
único, em que foram relacionadas todas as entrevistas, constituído por 39
Unidades de Contexto Iniciais (UCI), com 225 segmentos de textos analisados,
relacionando 1.566 formas nominais, 5.944 ocorrências, com 1.555 formas ativas,
sendo classificados 180 segmentos de textos dos 225, totalizando 80% de todas
as palavras verbalizadas pelas participantes.
Apoiados no método da
Classificação Hierárquica Descendente (CHD) [28], ao unir as palavras e suas
hierarquias, optou-se pela criação das três classes, a primeira vinculada à
palavra marido, que gerou a sentença Relação
de gêneros e violência contra a mulher (classe 1);
a segunda não expressando a ausência de
punição frente a agressão (classe 2); e por fim a terceira referente a filhos significando danos a família (classe 3).
Classe 1 – Relação de gêneros e violência
contra a mulher
Esses aspectos podem
ser observados nas seguintes falas:
“[...]
meu marido dizia que iria me matar se tivesse qualquer reação. Eu tinha que
ficar quieta no quarto, pois meu marido, dizia que ia botar fogo na casa”(P -05);
“[...]
sofrendo agressões verbais na frente de qualquer pessoa. Ele me agredia
verbalmente, além de me dar socos na cara, quebrar meus dentes, levar vários
pontos na boca, além de ser arrastada pelos cabelos na rua”(P
- 25);
“Apanhava
todos os dias. Sofria todos os tipos de agressão física e psicológica. Ele me
ameaçava, dizendo que iria me matar. Ele falava, marido manda em casa. Mulher
esperta obedece”(P - 35);
“Ele me trancou no quarto e me agrediu muito.
Disse que se eu tentasse de novo iria me matar [...] tenho muito medo dele
[...] Ele pode me matar” (P - 25);
Classe 2 – Ausência de punição frente a agressão
Esse fato pode ser
observado nas falas abaixo:
“Meu
marido tentou me sufocar apertando meu pescoço, chorei, implorei a ele para
parar, mas ele não me escutava” (P – 22);
“Trancou-me
no quarto, se tentasse fugir ele iria me agredir muito mais. Se tentar colocar
na Maria da Penha, ele aumentaria a violência e me mataria” (P - 28);
“Ele
pegou a faca apontou para meu pescoço, tremi de medo, chorei copiosamente, ele
não se importava [...] falou se me levar para delegacia, você vai ver as
consequências quando chegar em casa” (P - 38).
“Ele
tem arma em casa. Me agarrou, me colocou de bruços na
cama, passou o braço sob meu pescoço, deitou em cima de mim e me teve a força
[...]ele fraturou a minha coluna, fiquei com o corpo cheio de manchas roxas” (P
- 39);
Podem-se ver algumas
lesões físicas com sequelas, tais como:
“Fui
queimada com ferro passar roupa, porque não quis ter relações sexuais com ele”
(P - 05);
“Meu
marido me acusou de ter amantes. Fiquei muito acuada pelas ameaças dele, fui
orientada a ir na delegacia de mulheres. Tive que
passar no IML por causar das lesões físicas. Demorou um mês para ele receber
intimação, mais um mês para chegar o dia para ele ir prestar esclarecimentos.
Como não foi flagrante, ele não teve punição. Ele falou que ele não vai mudar”
(P - 31).
Classe 3 – Danos a
família
As mulheres
violentadas pensam nos filhos e se mostram envergonhadas pela exposição, como
pode ser observado nas falas abaixo:
“Fiquei
com marcas no corpo inteiro, meus filhos assistiram tudo. Tive muito medo,
vergonha e tristeza” (P - 05);
“Voltei
por causa dos filhos. Ele disse que iria mudar, mas não mudou nada [...] ficou
mais violento e não respeitava nem os filhos” (P - 32);
“Meus
filhos assistiram tudo, Deus sabe, eu nunca trai,
apanhava por bobagens. Ele maltratava os meus filhos, quando comecei a ser
agredida, resolvi não denunciar, mas quando ele chegou a agredir nossos filhos
tive que denunciar meu marido” (P - 35);
“Quando
pequeno ele viu seu pai bater na mãe agora ele me bate, repetindo toda a
história. Meu marido sofreu bastante na infância e se transformou em um pai
agressivo para seus filhos” (P - 37);
“Ele
foi criado vendo o pai e a mãe bebendo. Meu marido sofreu abusos, hoje diz
estar arrependido, mas estou vendo uma geração, passando para outra. Estou
vendo que meu filho também vai bater na sua mulher. Isso é muito ruim”. (P -
39).
A leitura da Tabela I
confirma que (92%) das mulheres participantes deste estudo dispõe de nível de
escolaridade para denunciar seus agressores, porém, não agem nesse sentido por
temer novas agressões e maiores implicações que afetem mais a vida e saúde dos
seus filhos. Quanto à etnia, a Tabela I destaca que as participantes se
declaram predominantemente pardas, corroborando o estudo realizado no Distrito
Federal [6]. No concernente às atividades laborativas, observou-se
predominância do lar e diaristas (72%) ou 28 mulheres, seguida de
desempregadas, balconistas e apenas uma profissional liberal, muito próximos ao
identificado noutros estudos realizados no Brasil [1,7,20].
Interessante a constatação relacionada à questão de gênero, na qual o
homem se mostra dono do poder e da mulher, fica bem representada pela
totalidade de 72% das participantes viverem em dependência financeira de seu
cônjuge, para se manter e aos filhos, em conformidade com resultados de estudo
com 264 estudantes de graduação de universidade brasileira [29].
Ao observar os
resultados apontados pela Tabela II, constata-se que 79% das participantes
deste estudo informaram que as agressões sofridas foram praticadas por seus
parceiros e familiares, enquanto outras 9
participantes relataram ter partido de conhecidos e outros, como estudo
realizado na Austrália em famílias de imigrantes [15].
Ainda de acordo com a
Tabela II, quando se indagou sobre quando a vítima percebeu as características
agressivas do companheiro, 93% das mulheres relataram que custaram a perceber
que seu marido poderia vir a agredi-las, mas com o passar dos anos,
identificaram as atitudes agressivas, mas não relataram nada por sentirem
vergonha e medo para pedir auxílio, similar aos achados de
estudo realizado em São Carlos/SP [30]. Ademais, 3
participantes não admitiram que o que ocorria com elas era um tipo de
violência, justificando as atitudes do companheiro, frente às ações, tal qual o
identificado em estudo realizado em dois estados brasileiros [31].
Em relação à
quantidade de vezes que foram agredidas, de acordo com a Tabela II, 29 mulheres
relataram que sofreram mais de seis agressões físicas, 6
participantes foram agredidas de três a seis vezes, outras 3 informaram um ou
dois episódios e 1 mulher se negou a quantificar as agressões.
Quanto ao tipo de
agressão, como observado na Tabela III, 80% das participantes identificaram
como principal tipo a física, ou de comprometimento físico e psicológico,
outras 17% relataram como psicológica e 3% atribuíram ao componente econômico,
dados compatíveis aos identificados em estudo em Salvador/BA [7]. Do
quantitativo das agressões, registrado na Tabela III, 22 mulheres relataram
lesões moderadas (fratura de fêmur, ulnar,
quirodáctilo e dentes) outras 16 informaram graves (queimaduras de segundo
grau) e 1 gravíssima (lesão na coluna, por
enforcamento), bastante comuns em sociedades tradicionalmente machistas
[10-12].
Como pode ser
observado nos resultados qualitativos da classe 1, seu
corpus está diretamente associado às classes 2 e 3. Os vocábulos mais
frequentes e significativos destes segmentos de textos são: olhar, agredir,
empurrar, carinhoso, bater, elencadas por ordem de significância. Os conteúdos
apreendidos revelam o impacto da relação de gênero, a masculinidade e a
feminilidade que ocorre em corpos biológicos masculinos ou femininos que estão
imersos num social que transforma e são transformados por estas pessoas, por
isso as sociais, inclusive as relações afetivas, com registros de subalternidade
feminina e de violência conjugal no Brasil persistem desde o período colonial
[1,6].
A propósito da
similaridade com outros países e culturas, cabe destacar que a violência contra
mulheres na Costa Rica [32] começa no período de namoro, momento em que os
homens ditam as regras que regiam a casa e a mulher respeitava suas imposições.
No momento em que ela assume responsabilidades, que não estavam nos moldes
preestabelecidos pela sociedade, ocorre uma explosão em que cada um usa as suas
armas, ele, os músculos, e ela, as lágrimas. Assim sendo, o homem passou a se
apropriar do direito de constranger a mulher, distorcendo papéis socialmente
impostos, levando-a a crer que certas desobediências mereciam repressão por sua
parte. Desta forma, eles ao se sentirem “ofendidos” pelo mau desempenho e
funcionamento das tarefas domésticas começaram a aplicar uma lei privada criada
por eles e para eles, nada obstante o ordenamento jurídico vigente, ao qual todos estavam submetidos [31].
Importante destacar
que unívoco e opressor é o discurso e a relação de poder atribuída ao
masculino, não sendo o macho, biologicamente falando, o seu único interlocutor,
dessa maneira, quando da elaboração da Lei Maria da Penha, o que ocorreu foi
que o Estado reconheceu a hipossuficiência da figura feminina nas relações
domésticas e familiares, mas não alterou a consciência masculina sobre seu
poder e direito sobre a mulher [22,31].
Ao tratar de
violência doméstica, não se pode petrificar a ideia de que os homens são sempre
os agressores e a mulher sempre a ofendida, sendo cabível esclarecer, neste
sentido, que o tratamento diferenciado previsto na Lei Maria da Penha ofertado
à figura feminina não remete à generalidade de sua vitimização, mas sim, à
necessidade, por sua vulnerabilidade histórica, de proteção especial por parte
do Estado.
De acordo com
recortes destacados na Classe 2, uma das
características dessa violência é tornar-se rotineira e crônica, uma vez que
ela obedece a escalada, formada por ameaças e agressões dirigidas a mulher ou
aos filhos [30]. Ao tomar a decisão de denunciar, ela expõe o caráter privado
da família e seu universo doméstico, cenários onde ocorrem episódios de
violência, como último recurso, em defesa da integridade dos filhos, em primeiro
plano.
Dentre os sentimentos
que levam as mulheres a denunciar seu companheiro, normalmente encontra-se
vinculado à exaustão das situações de agressão, especialmente a vergonha diante
dos filhos, ou medo de que a situação se agrave mais, tais como ameaça de morte
ou isolamento [21].
A violência contra a
mulher, mesmo atualmente, aparece ainda recoberta pelo manto da invisibilidade
política, pela incerteza quanto a punições, pela vergonha dos detalhes da
denúncia, pela falta de acesso às informações jurídicas, pelo descaso das
autoridades, pela ausência de políticas públicas e pela pouca legitimidade
social que lhe é atribuída [31].
Em meio a isso tudo,
pode-se observar nas colocações das participantes deste estudo que existe uma
mistura de sentimentos que envolvem essa mulher que sofre com a violência
doméstica: medo, culpa, pena, amor, vergonha,
insegurança.
No concernente aos
recortes destacados na Classe 3, observou-se que as
relações familiares são permeadas por relações de poder, nas quais tanto as
mulheres como as crianças têm de obedecer aos homens, tidos como autoridades
máximas no núcleo familiar. Assim sendo, o poder dele foi socialmente
legitimado, seja no papel de esposo, seja no papel de pai. Essa imposição normativa
construída pelas relações familiares é permeada pelo medo, pela angústia, pelo
respeito e pela dor podendo intervir caso pense que certas atitudes ou ações
possam desencadear conflitos [22].
A maioria dos casos
de violência contra crianças e adolescentes encontra-se marcada por relações
interpessoais hierárquicas, pois a maioria dos pais quando utilizam da punição
como medida disciplinar contra seus próprios filhos consiste em atitudes para
resolver seus conflitos [19,22].
Nesse sentido, o
homem conta com uma autoridade outorgada e cristalizada na estrutura familiar,
na qual se têm a naturalização do direito de punir a mulher e os filhos, ambos
considerados de eterna propriedade masculina, autoridade essas que afasta as
possibilidades de intervenções de poder por parte de outras figuras de
autoridade. Desta forma, a família que era considerada espaço sagrado, acima do
poder do Estado, e desvinculada das transformações políticas e econômicas, ela
é de propriedade do homem [20].
O maior risco
familiar é a repetição da história da agressão do homem em relação a sua mulher
e filhos [14,19,22], uma relação constituída pelos
modelos ultrapassados de relações familiares, vivenciados pelos filhos, no
decorrer de seu crescimento, vivenciando reações de agressões, de intimidação,
onde falta a afetividade, o amor e o compromisso com o outro.
O estudo mostra como
a violência doméstica contra a mulher está presente no mundo, tanto nas
sociedades tradicionalmente machistas quanto naquelas em que vigoram leis e normas democráticas,
caracterizadas pela igualdade de direitos de homens e mulheres. Violência cada
vez mais divulgada, contestada e combatida, inclusive, através de políticas
públicas voltadas para o acolhimento das mulheres, oferta de atendimentos e
cuidados multiprofissionais.
Nesse sentido, a
atuação do terapeuta ocupacional surge como relevante nesse contexto,
considerando ser esse profissional habilitado para o
planejamento, execução e avaliação de estratégias ocupacionais capazes
de mudar o foco do sofrimento e baixa estima das mulheres vítimas da violência
doméstica, transformando-as em estímulos para que acreditem nos seus próprios
potenciais de autonomia e empoderamento.
Este estudo não
pretende esgotar o seu objeto, cabendo outras investigações científicas para
dar conta de interpretar e apontar saídas para fenômeno social perverso,
contribuindo para a extinção de barbáries ainda presentes no terceiro milênio.