REVISÃO
Botulismo
em humanos: revisão clínico-epidemiológica de estudos brasileiros
Felipe Nascimento
Serra*, Luciano Garcia Lourenção, D.Sc.**
*Médico,
Residente em Medicina Nuclear da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
**Enfermeiro, Professor Titular-Livre da Escola de Enfermagem da Universidade
Federal do Rio Grande (EEnf/FURG)
Recebido em 12 de
dezembro de 2017; aceito em 19 de novembro de 2018.
Endereço
para correspondência:
Luciano Garcia Lourenção, Universidade Federal do Rio
Grande, Escola de Enfermagem, Rua General Osório, s/nº, 4º piso, Centro,
Campus da Saúde, 96201-900 Rio Grande RS, E-mail: luciano.famerp@gmail.com;
Felipe Nascimento Serra: felipeserra_fns@yahoo.com.br
Resumo
Objetivo: Discutir aspectos
clínicos e epidemiológicos do botulismo no Brasil. Métodos: Trata-se de revisão bibliográfica, de caráter descritivo,
qualitativo, desenvolvido a partir de artigos científicos disponíveis na
Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), nas bases de dados Bireme
(Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde) e Scielo (Scientific Eletronic
Library OnLine). Os
descritores utilizados foram: botulismo, botulismo em humanos e botulismo
alimentar. Resultados: Foram
selecionadas e analisadas 12 publicações. As publicações enfocaram a descrição
de casos e surtos da doença ocorridos em diferentes regiões do país; descrição
dos achados de investigações laboratoriais e de casos registrados no território
nacional, em períodos especificados; revisão bibliográfica sobre botulismo de
origem alimentar. Conclusão: O Brasil
apresenta importantes surtos de botulismo, principalmente nas regiões Sudeste e
Nordeste do país. O conhecimento adequado do quadro clínico-epidemiológico da
doença pelos profissionais de saúde é fundamental para reduzir as sequelas e a
mortalidade da doença.
Palavras-chave: botulismo, clostridium botulinum,
epidemiologia.
Abstract
Botulism in humans: clinical and epidemiological review of Brazilian
studies
Objective: To discuss
clinical and epidemiological aspects of botulism in Brazil. Methods: This is a literature review,
descriptive, qualitative character, developed from articles available in the
Virtual Health Library (VHL), through the Bireme (Centro Latinoamericano
and the Caribbean health sciences information) and Scielo
(Scientific Electronic Library Online) databases. The descriptors used were:
botulism, botulism in humans and food botulism. Results: Twelve publications were selected and analyzed. The
publications focused on the description of cases and outbreaks of the disease
which occurred in different regions of the country; description of the findings
of laboratory investigations and cases registered in the national territory, in
specified periods; literature review on food-borne botulism. Conclusion: Brazil presents important
botulism outbreaks, mainly in the Southeast and Northeast regions of country.
The adequate knowledge of clinical-epidemiological disease for health
professionals is critical to reduce the sequelae and
mortality of the disease.
Key-words: botulism, clostridium botulinum,
epidemiology.
Resumen
Botulismo en
humanos: revisión clínico-epidemiológica de estudios brasileños
Objetivo: Discutir aspectos
clínicos y epidemiológicos del
botulismo en Brasil. Métodos: Se trata de una revisión
bibliográfica, de carácter descriptivo, cualitativo, desarrollado a
partir de artículos científicos disponibles en Biblioteca Virtual en Salud (BVS), en bases de datos Bireme (Centro Latinoamericano y del Caribe de Información en Ciencias de la Salud) y Scielo (Scientific Eletronic Library OnLine).
Los descriptores utilizados fueron:
botulismo, botulismo en humanos y botulismo alimentario. Resultados:
Se seleccionaron y analizaron
12 publicaciones. Las publicaciones enfocaron la descripción
de casos y brotes de la enfermedad
ocurridos en diferentes regiones del país; descripción de hallazgos de investigaciones de laboratorio y
de casos registrados en territorio
nacional, en períodos especificados; revisión bibliográfica sobre botulismo de origen alimentario. Conclusión:
Brasil presenta importantes brotes de botulismo, principalmente en regiones Sudeste y Nordeste del país. El conocimiento
adecuado del
cuadro clínico-epidemiológico de la
enfermedad por los profesionales de salud es
fundamental para reducir secuelas
y mortalidad de la enfermedad.
Palabras-clave: botulismo, clostridium botulinum, epidemiología.
O botulismo é uma toxinfecção causada pelo bacilo Clostridium botulinum, adquirido por ingestão de alimentos
contaminados, com exteriorização neurológica seletiva. É uma doença de
ocorrência súbita em surtos imprevistos, evolução dramática e elevada
letalidade [1].
Os primeiros conhecimentos
sobre a doença datam do século XVI. As primeiras descrições científicas
ocorreram na Alemanha do século XVIII e se referem a surtos em ingestão de
alimento partilhado (no caso, a salsicha) na Europa Central [1-2].
Concernente à
etiologia, o botulismo é uma enfermidade resultante da ação de uma potente
neurotoxina - a toxina botulínica – de origem proteica, produzida pelo Clostridium botulinum,
que causa o bloqueio da neurotransmissão em sinapses
colinérgicas, levando à paralisia simétrica descendente [1-3].
A doença possui
distribuição mundial e acomete pessoas em casos isolados ou causa surtos
familiares. É considerado um problema de saúde pública devido à sua gravidade e
alta letalidade [4-5]. O Center for Diasease Control and Prevention (CDC)
classifica o botulismo em quatro categorias: 1) botulismo por intoxicação
alimentar; 2) botulismo infantil; 3) botulismo por lesão e (4) botulismo
indeterminado ou por colonização intestinal em adultos. Este último é menos
comum, sendo semelhante ao botulismo infantil, mas atingindo crianças maiores
de um ano de idade e adultos [6].
O botulismo alimentar
ocorre pela ingestão da toxina pré-formada, enquanto que nos outros três tipos
a enfermidade ocorre pela infecção, pela multiplicação e pela produção de
toxinas por microrganismos clostridiais em feridas ou
no sistema digestório [4-6]. Dentre os tipos de alimentos propícios ao
desenvolvimento do C. botulinum,
destacam-se os alimentos em conserva (caseiros ou comerciais), como vegetais e
frutas, carne e derivados, pescado e frutos do mar e leite e derivados [1].
Não se trata de uma
doença transmissível, seja diretamente, seja indiretamente. Além disso, não há
predileção estacional ou geográfica. Os surtos são fortuitos, explosivos, de
curta duração e apresenta casos simultâneos e relacionados (geralmente devido à
ingestão de alimento comum) [1].
Considerando que o
botulismo é uma doença rara, de notificação compulsória e de difícil
diagnóstico pelos profissionais de saúde que, em sua maioria, carecem de
conhecimentos sólidos sobre a doença, propõe-se realizar uma revisão da
literatura sobre os aspectos clínicos e epidemiológicos do botulismo em humanos
no Brasil.
Ante o exposto, este
estudo objetivou identificar as publicações sobre casos de botulismo no Brasil
e discutir aspectos clínicos e epidemiológicos da doença, fazendo algumas
reflexões acerca do material bibliográfico disponível sobre esta temática.
Realizou-se revisão
bibliográfica sobre botulismo em humanos no Brasil, com análise de conteúdo do
assunto enfocado. A fonte de busca das informações científicas foi a Biblioteca
Virtual em Saúde (BVS), por meio da Bireme (Centro
Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde) e Scielo (Scientific Eletronic
Library OnLine). Os
descritores utilizados foram: botulismo, botulismo em humanos e botulismo
alimentar.
Após o levantamento
bibliográfico realizou-se o ordenamento e a análise da bibliografia científica
selecionada, de modo a avaliar e discutir os principais aspectos apresentados
nos estudos, com relação à doença. Foram considerados os aspectos clínicos,
epidemiológicos e a distribuição das publicações, segundo estado de origem, o
período de publicação e, em cada publicação, a fonte e título, o foco de estudo
e as principais conclusões.
O resultado
preliminar da busca resultou em 38 estudos para a triagem, dos quais 13 foram
selecionados, com base no critério de adequação do título ao tema investigado e
à exclusão de ocorrências duplicadas. Realizou-se a inspeção destes 13 estudos,
por meio da leitura dos resumos, o que resultou na exclusão de 01 artigo, por
apresentar dados sobre surtos de botulismo em bovinos.
Assim, 12 estudos
foram elegíveis para a análise, os quais foram lidos na íntegra e incluídos
neste estudo. O procedimento de triagem, inspeção e elegibilidade dos artigos
para análise é representado graficamente abaixo por meio da Figura 1.
Todas as publicações
eram artigos científicos, sendo 11 (91,7%) artigos originais e 1 (8,3%) artigo de revisão. O período das publicações variou
de 1997 a 2014, 5 (41,7%) das publicações ocorreram entre 2007 e 2010.
Em relação às regiões
do país, os estudos analisados foram realizados nas regiões sudeste (5 – 41,7%)
e nordeste (2 – 16,7%) do Brasil, ou tiveram abrangência nacional (3 – 25,0%).
A Tabela I apresenta
a distribuição das publicações segundo título/fonte, local do estudo, número de
casos, objetivos e conclusões. As publicações enfocaram a descrição de casos e
surtos da doença ocorridos em diferentes regiões do país; descrição dos achados
de investigações laboratoriais e de casos registrados no território nacional,
em períodos especificados; revisão bibliográfica sobre botulismo de origem
alimentar.
As conclusões dos
estudos analisados apontam que há maior risco de contaminação em alimentos
preparados artesanalmente; endemicidade na região
central do Brasil; fragilidade na integração entre a vigilância sanitária e a
vigilância epidemiológica, dificultando o processo de investigação; existência
de subnotificação de casos; importância do transporte e da preservação das
amostras em caixas herméticas e refrigeradas, para garantir resultados
laboratoriais adequados; necessidade de ações de educação em saúde para
consumidores, manipuladores e proprietários de estabelecimentos comerciais
acerca da higiene na preparação, cocção e consumo de alimentos.
Tabela
I - Distribuição das publicações segundo
título/fonte, local do estudo, número de casos, objetivos e conclusões. (ver
PDF em anexo).
O botulismo em
humanos é uma doença grave, transmitida por alimentos e de baixa ocorrência no
Brasil, de acordo com Garcia e Duarte [4], devendo ser considerada emergência
médica e de saúde pública, em que um único caso é considerado surto devido à
sua elevada letalidade.
O maior perigo de
contaminação está nos alimentos preparados de forma artesanal, especialmente em
conservas caseiras, que são impropriamente manipuladas ou que sofreram
tratamento térmico insuficiente para destruir os esporos botulínicos [5].
Clinicamente, a
doença, em suas quatro categorias, é essencialmente o mesmo. Há uma porta de
entrada (oral ou por ferida) para o agente etiológico, cuja exotoxina causa
agressão neurotóxica ao sistema nervoso,
conduzindo-se, subsequentemente, ao período de estado (de 10 a 15 dias), do
qual se compreendem dois desfechos: o óbito, por diferentes causas; ou a
regressão do quadro, levando à cura [1].
Os primeiros sintomas
são, geralmente, náuseas, vômitos, dor abdominal, diarreia e constipação. Os
sinais neurológicos se instalam com manifestações de cefaleia, prejuízos
visuais como diplopia, pupila dilatada, ptose palpebral, nistagmo,
oftalmoplegia, disfagia, disartria,
boca, garganta e língua secas; paralisia descendente e fraqueza muscular
progressiva, que se inicia pela região cervical, estendendo-se aos membros
superiores, tórax e membros inferiores; dilatação gástrica, íleo paralisado,
retenção urinária, distonia, fatiga generalizada, perda do controle muscular e
comprometimento respiratório, sendo essa última a principal causa de óbitos. O
indivíduo permanece consciente [1,7-8].
Nos casos de
botulismo alimentar, o período de incubação é variável, sendo mais comum entre
12 e 36 horas [7], podendo ser em menor prazo, apresentando-se em apenas 2 horas,
conforme a quantidade e tipo de toxina ingerida - podendo levar ao óbito em
menos de 24 horas. Somente uma pequena porcentagem de toxina ingerida é
absorvida pela mucosa intestinal, sendo o restante eliminado nas fezes. Uma vez
absorvida, a toxina é transportada via hematogênica
até neurônios sensíveis [2-3].
No Brasil, a faixa
etária predominante foi dos 20 aos 39 anos, com 50% do total de casos
registrados em indivíduos do sexo masculino [9].
A região central do
país apresenta maior endemicidade da doença, em
virtude de possuir menores centros de industrialização e, portanto, apresentar
a característica cultural de preparo de conservas caseiras [10].
No estado de São
Paulo, onde há o maior número de casos notificados, a maioria dos casos
confirmados de botulismo alimentar foi associada a produtos industrializados e
a preparados no comércio de alimentos, cuja produção em âmbito comercial e de
distribuição em grandes quantidades gera situação potencial de risco para
surtos de maiores proporções [11].
Ao reportarem o
terceiro registro de caso de botulismo alimentar associado a assados produzidos
em estabelecimento comercial em São Vicente/SP, Filho et al. [12] destacam o ambiente comercial de preparo de alimentos
como propiciador de surtos da doença.
O conhecimento dos
principais alimentos envolvidos em toxinfecções
alimentares pode gerar subsídios aos órgãos de saúde pública, que poderão
inclui-los em programas de monitoramento, visando à promoção da qualidade e
segurança alimentar [13].
De acordo com a
literatura, os surtos de botulismo devem ocorrer com frequência bem maior do
que é diagnosticado ou notificado, de sorte a corroborar a tese de necessidade
de aprimoramento do trabalho de informação e/ou educação aos consumidores e
manipuladores de conservas caseiras e alimentos em geral [14].
A subnotificação é
consequência de déficits de conhecimentos dos profissionais de saúde sobre o
botulismo e outras doenças e agravos de notificação compulsória [15].
Figueiredo et al. [8] endossam essa assertiva ao
afirmar que, nos casos relatados no estado da Bahia, foi clara a ausência do
diagnóstico médico da doença. Além disso, a falta de integração entre a
vigilância sanitária e a vigilância epidemiológica dificultou o processo de
investigação.
A hipótese
diagnóstica de botulismo alimentar deve considerar a clínica e a epidemiologia,
suspeitando-se quando houver compatibilidade da história de ingestão de
alimentos suspeitos com o quadro clínico de náuseas, vômitos, dor abdominal,
diarreia e constipação, além dos sinais neurológicos.
Concernente ao
diagnóstico laboratorial, o bioensaio é um método
eficiente para determinar a presença da toxina. A coleta de amostras deve ser
concomitante à manifestação sintomática e antes da administração de quaisquer
drogas que possam interferir nos resultados laboratoriais. É importante que o
transporte e preservação das amostras sejam feitos em caixas herméticas e
refrigeradas [16].
Sabe-se que erros ou
atrasos no diagnóstico resultam em demora na administração do soro antibotulínico e, consequentemente, no aumento da
mortalidade [17]. Portanto, o diagnóstico laboratorial de botulismo é
importante não só para a elucidação dos casos, mas também para a organização
das medidas de controle sanitário [18].
Além disso, a
estrutura adequada nos hospitais que recebem os pacientes com botulismo pode
ser fator determinante na redução da taxa de mortalidade [17].
No intento de se prevenir
a ocorrência de novos surtos, destaca-se a necessidade de ações de educação em
saúde para consumidores, manipuladores e proprietários de estabelecimentos
comerciais acerca da higiene na preparação, cocção e consumo de alimentos [12].
Além disso, emerge com igual importância a capacitação de profissionais de
saúde [14], cujo escopo é propiciar o conhecimento acerca das doenças de
notificação compulsória e do quadro clínico de botulismo para ser realizada sua
suspeição enquanto hipótese diagnóstica.
Na análise da
bibliografia sobre botulismo no Brasil, observou-se
que há registros de surtos da doença, principalmente nas regiões sudeste e
nordeste do país. A realização de ações educativas pode contribuir para reduzir
a incidência da doença. Da mesma forma, o conhecimento adequado do quadro
clínico-epidemiológico da doença pelos profissionais de saúde é fundamental
para reduzir as sequelas e a mortalidade da doença.