ARTIGO
ORIGINAL
(Des)
conhecimento sobre a prática da violência obstétrica
Nirliane Ribeiro Barbosa, M.Sc.*, Thamyres
Queiroz de Lima**, Luciana de Amorim Barros, M.Sc.***,
Cleide Ferreira de Amorim Cotta****
*Enfermeira
pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Docente Adjunta na Universidade
Federal de Alagoas, **Enfermeira pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL),
Campus Arapiraca, Pós-Graduada em Saúde Pública, ***Enfermeira pelo Centro de
Estudos Superiores de Maceió, Docente Assistente na Universidade Federal de
Alagoas, ****Enfermeira Obstetra do Hospital Beneficente Nossa Senhora do Bom Conselho
Recebido em 13 de
dezembro de 2017; aceito em 22 de agosto de 2018.
Endereço
de correspondência:
Nirliane Ribeiro Barbosa, Rua Alan Kardec, 430 Santa
Esmeralda 57312-220 Arapiraca AL, E-mail: nirliane@hotmail.com; Thamyres Queiroz de Lima: thamyresq@hotmail.com; Luciana de
Amorim Barros: lukota_amorim@hotmail.com; Cleide Ferreira de Amorim Cotta: cleidecotta@uol.com.br
Resumo
O objetivo deste
estudo foi conhecer a percepção dos profissionais de saúde sobre violência
obstétrica. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória e de caráter
descritivo nas maternidades do município de Arapiraca/AL. A coleta de dados foi
realizada com 30 profissionais de saúde de ensino superior (entre enfermeiros,
fisioterapeutas, médicos e assistentes sociais), mediante assinatura do Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido, baseada em um roteiro de entrevista
semiestruturada, adaptada de Aguiar e D'Oliveira. Para a análise dos dados, foi
realizada a técnica de análise de conteúdo de Bardin.
A partir da análise das falas decorrentes das entrevistas emergiu a categoria,
a saber: O (des) conhecimento sobre a prática da
violência obstétrica. É evidente que a violência obstétrica é um termo ainda
pouco conhecido entre os profissionais de saúde, no entanto muitos
entrevistados puderam perceber durante sua jornada de trabalho maus tratos
contra a parturiente. Diante disto é preciso divulgar a temática violência
obstétrica entre profissionais de saúde, realizando educação continuada dentro
dos serviços de saúde, além de incorporar na legislação brasileira as medidas
cabíveis para tais atos.
Palavras-chave: violência contra a
mulher, obstetrícia, pessoal de saúde, Enfermagem.
Abstract
(Dis)knowledge on the practice of obstetric
violence
The objective of this study was to know the perception of health
professionals on obstetric violence. This is a qualitative, exploratory and
descriptive study in the maternities of the city of Arapiraca/AL,
Brazil. Data collection was performed with 30 higher education health
professionals (among nurses, physical therapists, physicians and social
workers), by signing the Informed Consent Term, based on a semi-structured
interview script, adapted from Aguiar and D'Oliveira. For the data analysis, the Bardin
content analysis technique was performed. From the analysis of the speeches
resulting from the interviews, the category emerged, namely: The (dis)
knowledge about the practice of obstetric violence. It is evident that
obstetric violence is a term still little known among health professionals,
however many interviewees were able to perceive during their working day
mistreatment against the parturient. Faced with this, it is necessary to
publicize the issue of obstetric violence among health professionals, carrying
out continuing education within the health services, and incorporate into
Brazilian legislation the appropriate measures for such acts.
Key-words: violence
against women, obstetrics, health personnel, Nursing.
Resumen
(Des)conocimiento
sobre la práctica de la violencia obstétrica
El objetivo de este estudio fue conocer
la percepción
de los profesionales de salud sobre violencia obstétrica.
Se trata de una investigación cualitativa,
exploratoria y de carácter descriptivo
en las maternidades del municipio
de Arapiraca/AL. La recolección de datos fue realizada con 30 profesionales de salud de enseñanza superior
(entre enfermeros, fisioterapeutas, médicos y asistentes sociales), mediante la firma del Término de Consentimiento Libre y Esclarecido, basada
en un guión
de entrevista semiestructurada, adaptada de Aguiar y
De Oliveira. Para el análisis de los datos, se realizó la técnica de análisis de contenido de Bardin. A partir del análisis
de los discursos resultantes de las
entrevistas surgió la categoría, a saber: O (des) conocimiento sobre la práctica de la violencia obstétrica. Es evidente
que la violencia obstétrica
es un término aún poco conocido entre los profesionales de la salud, pero muchos entrevistados pudieron percibir durante su jornada de trabajo malos tratos contra la parturienta. Ante esto es necesario divulgar la temática violencia obstétrica
entre profesionales de salud,
realizando una educación continuada dentro de los servicios de salud, además de incorporar en la legislación
brasileña las medidas apropiadas para tales actos.
Palabras-clave: violencia
contra la mujer, obstetricia, personal de salud, Enfermería.
Na década de 80, com
a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, emergiu a expressão
humanização na área da saúde e posteriormente com a implementação
do Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento em 2002, pelo Ministério
da Saúde, passa a ser exigida na assistência do pré-natal, parto e puerpério.
Para efetivação deste princípio de humanização é essencial o acolhimento da
mulher e do recém-nascido, enfocando a adoção de valores de autonomia e
protagonismo, estimulando a corresponsabilidade entre os agentes atuantes no
parto [1].
Em seguida, nesta
mesma perspectiva de assistência humanizada na gravidez, parto e puerpério, foi
implementada a estratégia Rede Cegonha, definida pela
Portaria Nº 1.459 em 24 de junho de 2011, visando à sistematização e
institucionalização de uma rede de cuidados estabelecendo metas relacionadas às
ações de atenção à saúde, dentre estas se encontram as taxas de: acompanhante, episiotomia, parto normal em posição verticalizada, contato
imediato pele a pele efetivo, cesariana, e de parturientes que receberam método
não farmacológico para alívio de dor [2]. A apresentação destes indicadores nas
maternidades vinculadas a estratégia Rede Cegonha no município de Arapiraca/AL
revela uma melhora da assistência
a parturiente ao longo do ano de 2014; contudo, os indicadores sobre taxa de
cesariana foram aquém das metas preconizadas para estas maternidades [3]. A
partir desta realidade infere-se que a assistência à mulher no exercício de sua
saúde sexual e reprodutiva está inadequada.
Embora o tema seja
considerado “recente”, o sofrimento das mulheres com a assistência ao parto é
registrado em diferentes momentos históricos, ainda que sob
denominações diversas, encontrando respostas em distintos contextos, e
comumente tendo um impacto importante na mudança das práticas de cuidado no
ciclo gravídico-puerperal [4].
violência nas maternidades, cometidas por profissionais de
saúde, especialmente da categoria enfermagem. O enfermeiro é habilitado a
realizar assistência à gestante, parturiente e puérpera, acompanhando a
evolução do trabalho de parto e execução do parto sem distócia,
segundo a Lei do Exercício Profissional da Enfermagem (Lei N° 7.498/86) [8].
Segundo pesquisa realizada, em 2010, pela Fundação Perseu Abramo:
“Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”, uma em cada
quatro mulheres brasileiras sofre violência no parto [9].
No Brasil há lacunas
sobre legislação específica para violência obstétrica. Em contrapartida, a Assembléia Nacional da República Bolivariana da Venezuela
aprovou em 2007 a Lei Orgânica sobre o Direito das Mulheres a uma Vida Livre da
Violência, que tipifica, entre as 19 formas de
violência contra a mulher, a violência obstétrica. Esta pode ser definida como:
“a
apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres por profissional de
saúde, que se expressa em um tratamento desumanizador, em um abuso de medicalização
e patologização dos processos naturais, trazendo
consigo perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos
e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres
[10].”
Considerando-se,
ainda, que frequentemente as mulheres escolhem ter o parto cesáreo por medo das
atitudes dos profissionais durante a assistência ao trabalho de parto, por já
ter presenciado ou ouvido de alguém relatos de violência. Isso nos faz refletir
por que ainda acontece este tipo de violência nas maternidades, será por
desconhecimento dos profissionais sobre a legislação? Por não perceberem a
intensidade de palavras e atitudes dirigidas às usuárias? Ou a sobrecarga de
trabalho? Diante disso tem-se como objetivo da pesquisa conhecer a percepção
dos profissionais de saúde sobre violência obstétrica.
Trata-se de uma
pesquisa qualitativa, exploratória e de caráter descritivo, realizado em duas
maternidades vinculadas a estratégia Rede Cegonha do Município de Arapiraca/AL.
Foram convidados 43 profissionais de saúde de ensino superior, destes 30
aceitaram participar (quatorze enfermeiros, oito fisioterapeutas, cinco médicos
e três assistentes sociais). Foram incluídos na pesquisa todos os profissionais
de saúde de ensino superior que apresentaram vínculo empregatício nas
maternidades estudadas no período da entrevista; encontraram-se no momento da
pesquisa atuando na assistência ao parto e/ou fazendo parte do processo de
acolhimento das mulheres atendidas nas maternidades. Foram critérios de
exclusão da pesquisa todos os profissionais que não estiveram presentes na
instituição no período da pesquisa devido licença ou afastamento; não se
disponibilizaram participar da pesquisa.
O projeto de pesquisa
foi autorizado pelos locais do estudo, bem como aprovado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas, segundo o parecer N° 1.350.370.
A aceitação dos sujeitos para participação do estudo foi mediante assinatura do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A coleta de dados foi realizada no
período de dezembro de 2015 a fevereiro de 2016, nos próprios locais de estudo,
de segunda à sexta-feira, no período da tarde, entre um atendimento e outro, em
momentos de descanso ou de menor demanda, mediante roteiro de entrevista
semiestruturada, adaptada de entrevista realizada no estudo de Aguiar e
D'Oliveira [5]. Este roteiro continha 10 questões discursivas que indagavam
sobre: idade, profissão, tempo de trabalho, número de instituições que trabalha, número de filhos, tipo de parto(s), conhecimento
sobre termo violência obstétrica e quem pode cometê-la, presença de algum tipo
de maus tratos contra a mulher durante sua jornada de trabalho, conhecimento de
alguma lei que protege a mulher contra qualquer tipo de violência, conhecimento
sobre quais são os meios de denunciar a violência obstétrica.
Houve uma grande
dificuldade na captação dos profissionais pela demanda das maternidades,
acarretando a justificativa de algumas recusas. Todas as entrevistas foram
gravadas, guardadas em arquivo digital, para posterior transcrição e análise
dos dados. Para a análise dos dados, foi utilizada a técnica de análise de
conteúdo de Bardin. Este método utiliza três fases
básicas: pré-análise, exploração do material e o
tratamento dos resultados obtidos e interpretação [12]. Os profissionais de
saúde foram identificados por um número, de 1 a 30, que correspondeu à ordem
das entrevistas, para assegurar a identidade dos mesmos.
Foram convidados 43
profissionais de saúde de nível superior em ambos os locais de estudo para
participar da pesquisa, 30 aceitaram, sendo quatorze enfermeiros, oito
fisioterapeutas, cinco médicos e três assistentes sociais. Quanto ao sexo houve
uma prevalência do feminino, vinte e quatro (80%), e seis (20%) do sexo
masculino (um enfermeiro e cinco médicos). Entre essas, 17 possuem filhos.
Quanto a faixa etária a maioria possui de 31 a 40 anos de idade, sendo a menor
idade encontrada foi 24 anos e a maior 66 anos. Quando
questionados sobre o número de instituições em que trabalham, a maioria
trabalha em uma, contudo um profissional trabalha em seis instituições. Os
dados mostram que os profissionais, no geral, são relativamente novos na
instituição estudada, pois a maior parte trabalha de um a cinco anos, contudo
já possuem certa experiência na área de atuação, obtendo-se uma média de 10,3
anos de conclusão da graduação.
A partir da análise
das falas decorrentes das entrevistas emergiu a categoria: O (des) conhecimento sobre a prática da violência obstétrica.
O (des)conhecimento sobre a prática
da violência obstétrica
A maioria dos
entrevistados respondeu que conheciam o termo violência obstétrica (90%),
apesar de a Fisioterapia ser a categoria profissional que mais teve dificuldade
para explicar este conceito. Alguns referiram que não conheciam porque eles não
estão ligados diretamente ao parto, e entendem que eles não têm a “obrigação”
de saber. Contudo, quando começavam a definir, constatou-se que alguns não conheciam
a dimensão desta prática. Associam mais ao parto normal ou somente ao uso de
métodos invasivos no momento do parto.
[...]
É... esses tipos de parto, um parto que... muito invasivo né?! Que invés de fazerem uma cesárea eles
optam por fazerem essa violência, né?! Que é parto fórceps, é... episiotomia, né?! isso é violência obstétrica. (Profissional 3)
Dentre os
entrevistados apenas uma enfermeira citou que a violência obstétrica compreende
tanto o período gestacional, quanto trabalho de parto, parto e aborto.
Conheço.
Assim, é... violência obstétrica é uma, uma violência
que ela é acometida a mulher nesse período né?! de
gestação, no período de trabalho de parto, no período de parto, até no período
da gestação né?! ou é... um
abortamento ou outra condição que seja relacionada [...] (Profissional 10)
Quase metade dos
profissionais entrevistados (14) referiu ser a violência obstétrica praticada
por profissionais ligados diretamente ao parto, como técnico de enfermagem,
enfermeiro, médico ou parteira.
O
médico obstetra, a enfermeira obstetra, a parteira. (Profissional 8)
Neste estudo foi
levantado pelos entrevistados (seis profissionais (20%)) que o próprio
acompanhante pode vir a causar algum ato violento contra a mulher neste
período.
[...]
acho que até mesmo o acompanhante, sei lá, a meu ver,
pode tá cometendo. Qualquer pessoa que esteja acompanhando a gestante naquele
momento, acho que até família [...] (Profissional 2)
E dezesseis
participantes do estudo (53,33%) afirmaram que qualquer profissional de saúde
pode estar envolvido em violência obstétrica, incluindo desde a recepção,
pessoal da limpeza até da copa.
“Qualquer
profissional da área, independente se é obstetra ou não. Às vezes nós temos
agressões por pediatras neonatologistas, ou
parteiras, não tem uma, uma classe que seja definida, pra cometer essa
violência. Às vezes comete violência até da...
da
portaria né?! até da recepção a mulher as
vezes já começa a sofrer violência.”
(Profissional 23)
“[...]
Desde o pessoal da limpeza, quanto pessoal da burocracia, de recepção, de copa,
quanto os profissionais da saúde [...].” (Profissional 27)
Três profissionais
(10%) referiram que praticar este tipo de violência depende de pessoa para
pessoa, da essência de cada um, e que é influenciado pela educação/formação que obteve.
[...]
porque muitas vezes depende de cada, da educação que você teve, acho que tem
fatores externos em relação a isso. Que tipo de treinamento você teve, como era
a abordagem, né?! como foi a abordagem de uma gestante
ou como era essa abordagem anteriormente. Porque você vai muito do que, da
forma como você aprende. Muitas vezes você aprende já errado achando que aquela
é a forma certa de lidar, acho que a gente vê muito isso no dia-a-dia [...]
(Profissional 25)
Quando questionados
sobre já ter presenciado algum tipo de maus tratos contra a mulher durante a
jornada de trabalho, quinze (50%) afirmaram que já presenciaram algum tipo de
violência obstétrica durante sua jornada de trabalho, seja psicológica, física
ou práticas obstétricas como toques vaginais frequentes, manobra de Kristeller, uso rotineiro da posição litotômica
durante o trabalho de parto e de episiotomia.
“[...]
Já vi é... paciente que foi estuprada ser praticamente obrigada a ter parto
normal sem querer, ser tocada sem querer [...].” (Profissional 23)
“[...]
De impulsionar ela fazer alguma coisa que ela não tem vontade naquele momento,
é... obrigar ela a fazer algumas posições que ela também não se sente à
vontade, obrigar a fazer um toque vaginal que ela naquele momento não quer,
então tudo isso é uma forma de violência obstétrica. Como também aquela questão
de uma episiotomia que às vezes nem precisa e que ela
nem tem consciência que precisa ou não, mas o profissional vai fazer de
qualquer forma, sem necessidade. É... um kristeller,
que hoje não é indicado e alguns profissionais ainda, ainda bem que são bem
menos, mas ainda hoje acaba fazendo [...].” (Profissional 27)
Os dados desta pesquisa
relativos à caracterização dos sujeitos corroboram outros estudos [12-15].
Entretanto, no presente estudo houve uma predominância do profissional
enfermeiro (46,6%), diferente de outros nos quais os médicos foram
profissionais mais entrevistados. Em Santos [14], participaram 13 profissionais
de saúde, dos quais cinco enfermeiros obstetras e oito médicos obstetras,
enquanto em Oliveira [15], um total de dez enfermeiros obstetras e 14 médicos
obstetras. Ambos estudos não deixaram claro se
apresentam um número maior de médicos do que as outras categorias ou se obteve
uma maior adesão por parte destes para realização das pesquisas.
Outro aspecto
importante é que a sobrecarga de trabalho não foi uma fala emergente nas
entrevistas e a maioria dos participantes não possuía vínculo empregatício com
outras instituições, no entanto pode acontecer sobrecarga diante da demanda das
instituições em estudo e carga horária neste serviço. Tal excesso pode ocasionar, conforme apontam
Aguiar, D'Oliveira e Schraiber [13], um esgotamento
físico e emocional do profissional, assim como a dificuldade de refletir sobre
sua prática, resultante de um ritmo de trabalho alienante associado à
precariedade de recursos.
Ao abordar sobre o
que os profissionais entendem sobre o termo violência obstétrica, a maioria
afirmou que o conhecia, semelhante resultado foi encontrado na pesquisa de Faneite et al. [12], com um
percentual de 89,2%. No entanto, isso não significa que realmente sabem
distingui-lo, o que foi notório na fala de uma enfermeira que confundiu com
violência doméstica, e ainda ao referirem ser praticado apenas por
profissionais ligados diretamente ao parto, como técnico de enfermagem,
enfermeiro, médico ou parteira. Leal [16] em seu estudo pode constatar que as
enfermeiras obstétricas percebem a existência de violência obstétrica de forma
limitada, não reconhecendo as intervenções como uma prática violenta. Além
disso, quando há o reconhecimento de tais procedimentos, existe a justificativa
da ajuda à parturiente para a realização de tais condutas. Ficando evidente que
os participantes associam mais frequentemente o termo violência a algo que
consideram de maior gravidade, como a violência física e sexual [14]. Isso
mostra que nem todos os profissionais buscam se atualizar e quando se fala em
violência contra a mulher habitualmente relaciona-se a forma sexual e doméstica
[13].
Segundo o Dossiê
Violência Obstétrica [10], em seu Artigo 51, os seguintes atos são considerados
típicos de violência obstétrica: não atender oportuna e eficazmente as
emergências obstétricas; obrigar a mulher a parir em posição supina, existindo
os meios necessários para a realização do parto vertical; obstaculizar o
contato precoce do bebê com sua mãe, sem causa médica justificada; alterar o
processo natural do parto de baixo risco, mediante o uso de técnicas de
aceleração, ou praticar o parto cesariano, existindo condições para o parto
natural, sem obter o consentimento voluntário, expresso e informado da mulher.
Muitos casos de
manobra de kristeller (esforço de puxo prolongado e
dirigido durante o segundo estágio do trabalho de parto), uso
de rotina da posição supina durante o trabalho de parto, exames vaginais
frequentes e o uso rotineiro de episiotomia foram
presenciados pelos entrevistados durante a jornada de trabalho, práticas
obstétricas que são prejudiciais, se usadas de modo inadequado, segundo as
recomendadas da Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 1996 [17] e
reafirmadas pela Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal [18],
documentos que orientam as boas práticas obstétricas. Em consonância com este achado, na pesquisa
de Cardoso [19], 70% julgaram que não cometeram violência obstétrica, todavia,
quando questionados em relação à perspectiva e à percepção que tinham acerca do
colega de trabalho, 80% dos entrevistados referiram já ter presenciado colegas
cometendo algum tipo de violência obstétrica. Essa discussão mostra que os (as)
profissionais das maternidades devem ser estimulados (as) com mais intensidade
para as boas práticas obstétricas.
Andrade et al. [20] também puderam evidenciar em
um hospital escola de alta complexidade e de referência do Ministério da Saúde
para a assistência materno-infantil em Recife, Pernambuco, em que
aproximadamente 87% das pacientes sofreram algum tipo de violência durante o
trabalho de parto e parto, considerando o uso de intervenções desnecessárias.
Os profissionais
foram pertinentes ao afirmarem que qualquer profissional de saúde pode cometer
violência obstétrica, envolvendo desde a recepção, pessoal da limpeza, da copa
até os profissionais coadjuvantes do parto, uma vez que, segundo o Dossiê da
Violência Obstétrica [10], esse tipo de violência pode ser exercido por todos
os trabalhadores dos serviços público ou privado que atuem nos centros de
saúde, tanto profissionais (médicos/as, trabalhadores/ as sociais,
psicólogos/as) como contribuintes (mucamas/o, enfermeiros, pessoal
administrativo, entre outros). Desfecho diferente foi encontrado por Faneite, Feo e Merlo [12], que, ao interrogar profissionais da área
obstétrica sobre por quem poderia ser exercida a violência obstétrica, 82,4 %
responderam que poderia ser exercida por qualquer profissional de saúde e 17,6
% consideraram que a mesma era exercida somente pelo médico obstetra.
Na pesquisa de
Pereira, Domínguez e Merlo
[21], 26,3 % das pacientes entrevistadas manifestaram ter sofrido maus-tratos,
desrespeito, atitude de desprezo ou ridículo, agressão verbal ou física,
durante sua atenção por parte do profissional de saúde, e que o médico obstetra
foi relatado pelas pacientes como um dos principais agressores. Este fato foi
confirmado por Andrade e seus coautores [20], pois observaram significante
associação entre a violência obstétrica e mulheres assistidas por profissional
médico.
Em consequência a
esta realidade, as mulheres sentem-se incapazes, impotentes e reduzidas a
objetos, no contexto em que deveriam se tornar personagem principal. Os efeitos
nocivos que podem ser acarretados com um atendimento inadequado são vários e
podem gerar danos a curto prazo como: insatisfações
com o serviço, intercorrências puerperais, traumas psicológicos graves ou até
mesmo óbito materno e/ou neonatal; e a longo prazo, como: o impacto negativo na
qualidade de vida das mulheres, problemas conjugais e na sexualidade da mulher
[22,23].
Destarte é preciso
divulgar a temática violência obstétrica, tanto entre gestantes, durante o
pré-natal, enfatizando seus direitos na assistência a gestação, parto e
puerpério e contribuindo para empoderá-las, quando
entre profissionais de saúde, de nível superior ou não. É necessário, pois,
investir desde a graduação dos (as) profissionais de saúde, buscando incentivar
o cuidado humanizado, em qualquer que seja o tipo de parto, o uso de boas
práticas obstétricas e promovendo que o parto fisiológico aconteça. Não
obstante, como mencionado por Barbosa [24], ainda há o predomínio da formação
pautada no tecnicismo e no uso indiscriminado das tecnologias e intervenções
iatrogênicas na assistência obstétrica de baixo risco. Além disso, os
profissionais devem buscar atualizações sempre através de eventos científicos,
especializações e em pesquisas na área, principalmente os profissionais da
enfermagem e medicina, mencionados como principais responsáveis por cometer
atos de desrespeito contra a mulher no período gravídico-puerperal neste
trabalho.
Assim, permanece
evidente a necessidade de punição dos responsáveis por atos característicos de
violência obstétrica, e para isso os órgãos competentes devem ter conhecimento
deste tipo de crime, acatar tais denúncias e incorporar na legislação
brasileira as medidas cabíveis. As denúncias são de suma importância para que o
SUS e os órgãos judiciais apurem os fatos e possam, por meios destas denúncias,
modificar a realidade brasileira, garantindo assim uma assistência obstétrica
equânime, resolutiva e humana [25]. Para isso, Sadler
[26] em sua pesquisa sugere a implementação de
sistemas de notificação que permitam as mulheres e os profissionais denunciar
casos de violência obstétrica. Um próximo passo, na perspectiva de Bohren et al. [27], seria
o desenvolvimento de ferramentas validadas e confiáveis para medir os
maus-tratos de mulheres durante o parto, bem como intervenções para preveni-los
e promover cuidados respeitosos.
É necessário
compreender que não são necessárias grandes mudanças estruturais e nem um
investimento em altas tecnologias e sim um olhar mais atencioso do (a)
profissional, reconhecendo as individualidades da paciente, buscando oferecer
uma assistência baseada em evidências científicas. Além disso, suas ações devem
ser fundamentadas nas diretrizes da bioética e do Código de Ética de cada
profissão e, portanto, nos seguintes princípios: autonomia, beneficência, não
maleficência e justiça [14].
Nota-se uma escassez
de material sobre o assunto na literatura brasileira, o que dificultou o
diálogo com outras pesquisas e públicos semelhantes neste estudo. Outro ponto
limitante deste estudo foi não ter realizado a entrevista entre profissionais
de saúde de nível médio, e a mesma ter ocorrido nos próprios locais de estudo,
o que pode ter constrangido os entrevistados a falar sobre os companheiros de
trabalho e sobre a instituição.
O estudo possibilitou
alcançar o objetivo de analisar a percepção dos profissionais de saúde sobre
violência obstétrica. De acordo com o que foi exposto, é notório que a
violência obstétrica é um termo ainda pouco conhecido entre os profissionais de
saúde na realidade estudada, embora estes sejam atores responsáveis por
proporcionar um atendimento qualificado nesse período gravídico-puerperal. Para
além do termo, muitos não reconhecem atos típicos de violência obstétrica, nem
se reconhecem capazes de cometê-los. Contudo ao trocar os papeis estes
identificaram condutas inadequadas nos atendimentos, aproximando-se da prática
da violência obstétrica.