ARTIGO ORIGINAL

Percepções do enfermeiro intensivista frente à morte encefálica e à doação de órgãos

 

Manuella Fernanda de Souza*, Jéssica Caxias Bento**, Clarice Santana Milagres, D.Sc.***

 

*Graduanda em Enfermagem pela FHO/UNIARARAS, **Enfermeira pela Fundação Hermínio Ometto – FHO/UNIARARAS, ***Enfermeira especialista em Nefrologia, Professora titular do curso de graduação em Enfermagem da Fundação Hermínio Ometto – FHO/UNIARARAS

 

Recebido em 11 de janeiro de 2018; aceito em 29 de janeiro de 2019.

Endereço de correspondência: Manuella Fernanda de Souza, Avenida Newton Prado, 3710, Jardim São Fernando 13631-040 Pirassununga SP, E-mail: manufs09@hotmail.com; Jéssica Caxias Bento: jessyca-sc@hotmail.com; Clarice Santana Milagres: claricemilagres01@gmail.com

 

Resumo

A morte encefálica (ME) representa a ausência de funcionamento cerebral, no qual há inexistência de atividade elétrica na região do encéfalo e o paciente somente consegue sobreviver devido a meios artificiais, permanecendo com a função cardiorrespiratória intacta temporariamente. O enfermeiro tem importante papel na identificação, notificação e captação de órgãos de pacientes com este diagnóstico, atuando na comunicação com a família para que eles possam decidir sobre aceitar ou recusar a doação de órgãos. Objetivo: Verificar a percepção dos enfermeiros intensivistas diante da morte encefálica e da doação de órgãos. Métodos: Pesquisa qualitativa convergente assistencial, realizada em um hospital público no interior do Estado de São Paulo. Foram selecionados enfermeiros intensivistas que atuam neste setor de Unidade de Terapia Intensiva adulto. Para a pesquisa, foi realizada uma entrevista com questões norteadoras discursivas, e, posteriormente, utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin. Nesta proposta, a categorização foi utilizada e empregada a representatividade. Resultados: Da análise das transcrições das entrevistas obtidas emergiram três categorias temáticas: percepção dos enfermeiros para lidar com a morte; preparo do enfermeiro intensivista sobre a morte e seus critérios de definição; e processo de trabalho do enfermeiro na efetividade do processo de doação de órgãos para transplante. Conclusão: O presente estudo proporcionou a percepção do enfermeiro intensivista diante da morte encefálica e da doação de órgãos. O processo de trabalho deste profissional consta, entre diversas atividades, realizar uma assistência de qualidade ao indivíduo em ME, reconhecer os sinais e sintomas da ME, realizar os cuidados ao corpo e, por fim abordar os familiares de forma empática e humana, assim como orientá-los, sobre a doação de órgãos. Diante desta última ação, o êxito de um futuro transplante pode ser possível.

Palavras-chave: morte encefálica, transplantes, unidades de terapia intensiva.

 

Abstract

Perception of the intensive care nurse facing encephalic death and organ donation

Brain death (BD) represents the absence of brain functioning, in which there is no electrical activity in the brain region and the patient can only survive due to artificial means, and the cardiorespiratory function remains temporarily intact. The nurse plays an important role in identifying, notifying and capturing organs of patients with this diagnosis, acting in communication with the family so they can decide on accepting or refusing organ donation. Aim: To verify the perception of intensive care nurses in the face of encephalic death and organ donation. Methods: Qualitative convergent care research, carried out in a public hospital in the interior of the State of São Paulo. Intensivist nurses working in this sector of the Adult Intensive Care Unit were selected. For the research, an interview was conducted with discursive guiding questions, in which, later, the content analysis of Bardin was used. In this proposal, the categorization was used, and representativity was employed. Results: From the analysis of the transcripts of the interviews obtained emerged three thematic categories: nurses' perception to deal with death; intensive nurses' preparation about death and its definition criteria; and the nurses' work process on the effectiveness of the organ donation process for transplantation. Conclusion: The present study provided the perception of intensive care nurses in the face of brain death and organ donation. The work process of this professional includes, among several activities, to provide quality assistance to the individual in BD, to recognize the signs and symptoms of BD, to take care of the body and, finally, to approach the family empathetically and humanly, as well as guide them, on organ donation. Faced with this last action, the success of a future transplant may be possible.

Key-words: brain death, transplants, intensive care units.

 

Resumen

Percepción del enfermero intensivista ante la muerte encefálica y donación de órganos

La muerte encefálica representa la ausencia de funcionamiento cerebral, en el cual hay inexistencia de actividad eléctrica en la región del encéfalo y el paciente sólo logra sobrevivir debido a medios artificiales, permaneciendo con la función cardiorrespiratoria intacta temporalmente. El enfermero tiene un importante papel en la identificación, notificación y captación de órganos de pacientes con este diagnóstico, actuando en la comunicación con la familia para que ellos puedan decidir sobre aceptar o rechazar la donación de órganos. Objetivo: Verificar la percepción de los enfermeros intensivistas ante la muerte encefálica y la donación de órganos. Métodos: Investigación cualitativa convergente asistencial, realizada en un hospital público en el interior del Estado de São Paulo. Se seleccionaron enfermeros intensivos que actúan en este sector de Unidad de Terapia Intensiva adulto. Para la investigación, se realizó una entrevista con cuestiones orientadoras discursivas, en la que posteriormente se utilizó el análisis de contenido de Bardin. En esta propuesta, la categorización se utilizó, y se empleó la representatividad. Resultados: Del análisis de las transcripciones de las entrevistas obtenidas surgieron tres categorías temáticas: percepción de los enfermeros para lidiar con la muerte; preparación del enfermero intensivo sobre la muerte y sus criterios de definición; y proceso de trabajo del enfermero en la efectividad del proceso de donación de órganos para trasplante. Conclusión: El presente estudio proporcionó la percepción del enfermero intensivo ante la muerte encefálica y la donación de órganos. El proceso de trabajo de este profesional consta, entre diversas actividades, realizar una asistencia de calidad al individuo en ME, reconocer los signos y síntomas de la ME, realizar los cuidados al cuerpo y, por fin abordar a los familiares de forma empática y humana, así como orientarlos, sobre la donación de órganos. Ante esta última acción, el éxito de un futuro trasplante puede ser posible.

Palabras-clave: muerte encefálica, trasplantes, unidades de terapia intensiva.

 

Introdução

 

A morte é compreendida pela maioria das pessoas como a inexistência de movimentos respiratórios e de batimentos cardíacos, no entanto a morte encefálica consiste na ausência de funcionamento do cérebro e tronco cerebral e o paciente consegue manter por pouco tempo e por intermédio da tecnologia a função cardiorrespiratória [1].

Apesar da morte encefálica também representar a morte do ser humano, ainda existem muitas incertezas que permeiam a práxis profissional e que precisam ser mais bem esclarecidas. A falsa crença de que, enquanto o coração estiver batendo ainda há vida, é presente em nossa sociedade e acaba se tornando algo muito forte em casos em que ocorre morte encefálica [2].

O diagnóstico de morte encefálica é importante e apresenta o transplante de órgãos como ponto crucial de sua constatação. Os transplantes de órgãos visam salvar outras vidas, bem como melhorar a qualidade de vida das pessoas beneficiadas [3]. Para facilitar o diagnóstico de morte encefálica, o Conselho Federal de Medicina (CFM) definiu no ano de 1997 todos os critérios clínicos e tecnológicos para a constatação da morte encefálica por meio da resolução de n° 1480 de 21 de agosto do mesmo ano, instituindo todos os passos para a criação de um protocolo para diagnóstico da morte encefálica e que no ano de 2017 foi atualizado [4]. Portanto, o novo protocolo para diagnóstico da morte encefálica torna clara a real situação em que o paciente se encontra, se há presença de vida ou morte, permitindo o fornecimento de informações fidedignas aos familiares, reduzindo custos hospitalares e empoderando as famílias para a opção de promover esperança de vida a outras pessoas por meio da doação de órgãos [5].

O enfermeiro se destaca na atuação em transplantes de órgãos, que ocorre não somente na captação de órgãos, mas também na manutenção dos mesmos, fazendo a constatação e comprovação de que a morte encefálica realmente está presente. O enfermeiro também tem se responsabilizado pela comunicação do fato ocorrido com os centros de transplantes auxiliando em uma logística para a efetiva doação de órgãos, assim como a viabilização deste material. Este profissional também é um sujeito importante na comunicação com os familiares, confortando-os e fornecendo-lhes informações necessárias para aceitar o diagnóstico [6].       

Segundo uma pesquisa realizada com enfermeiros de um hospital universitário localizado no nordeste brasileiro, que teve como objetivo reconhecer quais os significados que os enfermeiros atribuíam ao cuidado ao paciente com morte encefálica, o estudo demonstrou que em sua maioria são permeados por frustrações, tristeza; e ao mesmo tempo gratificação e felicidade quando a doação dos órgãos é concretizada e termina em resultados satisfatórios. O resultado da pesquisa demonstrou que os enfermeiros se sentem tristes devido à constatação de que o paciente, no qual estão prestando cuidados não poderá sobreviver. Estes profissionais também se apresentam confusos e indagaram quanto à possibilidade de o paciente vir a sobreviver por estar apresentando todos os sinais inerentes à vida humana (batimentos cardíacos, respiração, temperatura). Os profissionais também demonstram sentimento de sufoco, choro e emoções que acabam sendo reprimidas dentro de si por estarem em um ambiente de trabalho [1].

Percebe-se pouca discussão sobre como os enfermeiros lidam com a morte encefálica e a doação de órgãos deste paciente. A realidade é que eles, na maioria das vezes, tornam-se fragilizados e possuem pouco embasamento teórico que possa nortear o seu processo de trabalho assistencial com a finalidade de reduzir o estresse e promover seu maior enfrentamento a essas situações [7,8].

Diante do exposto, verifica-se que a percepção do enfermeiro está em significar o cuidado ao paciente em morte encefálica e potencial doador, além de entender sua complexidade para além de um ser falecido, mas como gerador de vida por meio da doação de órgãos. Portanto, esta pesquisa tem como objetivo verificar a percepção dos enfermeiros intensivistas diante da morte encefálica e da doação de órgãos.

 

Material e métodos

 

Delineamento

 

O estudo se configurou como uma pesquisa qualitativa convergente assistencial. O processo de cuidado de Enfermagem exige uma reunião de coerência lógica, rigor científico e metodologias adequadas, ou seja, um processo de pesquisa. Este tipo de pesquisa qualitativa contribui na proposição do processo de cuidado por propor, na elaboração de seu processo de construção, a lógica indutiva-dedutiva e uma relação direta com a prática assistencial [9]. Vale ressaltar que este tipo de pesquisa, propõe a proximidade e o afastamento diante do saber-fazer assistencial, pois induz a uma metodologia em que há uma relação direta entre a docência e a prática, assegurando o processo de enfermagem. Logo, em alguns momentos há maior vínculo com o cuidado, e em outros, com a pesquisa. E é durante esse processo que ocorre a construção, ou o aprimoramento de um conhecimento, ou de uma proposta de cuidado. Por fim, a pesquisa convergente assistencial, proposta por Trentini e Paim tem a intencionalidade de unir métodos de pesquisa e métodos de prática assistencial [10,11].

 

Local da pesquisa e amostra

 

A pesquisa foi realizada em um hospital público no município de Araras, no interior do Estado de São Paulo, que possui Unidade de Terapia Intensiva e no qual realiza o protocolo de morte encefálica.

Os enfermeiros intensivistas que atuam neste setor possuem carga horária de 30 horas semanais. O acesso dos pacientes na UTI pelos familiares acontece, principalmente, no horário das 12:00 as 14:00 e das 18:00 as 20:00.

A entrevista foi conduzida pela pesquisadora, que optou pela amostragem não-probabilística, no qual os enfermeiros entrevistados foram eleitos de forma não-aleatória. A escolha intencional considerou as características particulares do conhecimento que estes profissionais têm sobre o que é investigado.

 

Coleta dos dados

 

Para a coleta de dados foi utilizada uma entrevista, que utilizou de questões norteadoras discursivas. A pesquisadora apresentou liberdade para direcionar a situação de uma forma que considerasse mais adequada, explorando assim o universo do enfermeiro intensivista na execução do seu processo de trabalho. Toda a entrevista foi gravada, posteriormente transcrita e analisada. Os dados coletados na entrevista só puderam ser coletados após a aceitação da profissional em o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

As entrevistas foram realizadas em junho de 2016, após o horário de trabalho dos enfermeiros selecionados, no ambiente da Unidade de Terapia Intensiva geral e estimando a duração aproximada de 30 minutos para cada enfermeiro intensivista. Foi realizado um prévio contato com os participantes e com a enfermeira responsável técnica pelo setor e apresentadas e esclarecidas todas as dúvidas acerca da pesquisa. Posteriormente foi obtido o consentimento para seguimento da pesquisa.

Com a devida autorização dos participantes, a entrevista foi gravada em áudio e, posteriormente, foi realizada a sua respetiva transcrição. A análise dos dados, referentes às falas dos enfermeiros foram posteriormente pontuadas a fim de ressaltar os objetivos propostos neste trabalho.

Como critério de inclusão foram selecionados enfermeiros, especialistas em Enfermagem em Terapia Intensiva, atuar ou já ter atuado na Unidade de Terapia Intensiva da Instituição selecionada pela pesquisa e que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os critérios de exclusão foram: ser enfermeiro sem a especialidade proposta, nunca ter atuado em Unidades de Terapia Intensiva e não assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

 

Aspectos éticos

 

Esta pesquisa foi submetida à Plataforma Brasil e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Hermínio Ometto – UNIARARAS sob protocolo CAAE – 53538215.2.0000.5385.

No momento do convite a participar da pesquisa, foi apresentado aos entrevistados o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com informações claras, objetivas e simples sobre o intuito da pesquisa, garantia do sigilo e direito de exclusão em qualquer momento, sem qualquer prejuízo. A entrevista foi iniciada após a assinatura do TCLE, autorizando sua participação na pesquisa. O TCLE foi elaborado em duas vias, ficando uma com o pesquisador e uma com a participante da pesquisa, com o nome e telefone do responsável pela pesquisa.

 

Análise dos dados

 

Foi utilizada a análise de conteúdo de Bardin. Este tipo de análise consiste em uma técnica que proporciona uma avaliação organizada de determinado texto, identificando os temas e as palavras consideradas de maior relevância para a investigação e posterior comparação dos dados colhidos, a fim de obter uma conclusão. Em outras palavras, é realizado “um tratamento da informação contida nas mensagens” [12]. A metodologia proposta foi a categorização, inserida na análise de conteúdo, no qual emprega a representatividade, ou seja, uma amostra de representação de um universo inicial. Para as três etapas da categorização da análise de conteúdo foram observadas: pré-análise, que consistiu na escolha dos documentos a serem analisados, sistematização de hipóteses e ideias iniciais e criação de categorias de análise; exploração, na qual ocorreu a classificação e categorização do material; e, por fim, tratamento e interpretação dos resultados obtidos.

Após a análise dos dados, foram obtidas três categorias, sendo elas: reações dos enfermeiros diante da morte encefálica; papel do enfermeiro diante do diagnóstico de morte encefálica e sua atuação junto à equipe multiprofissional; e doação de órgãos: enfermeiro versus autorização de familiares para doação.

Para manter a privacidade e confidencialidade dos participantes, decidiu-se não informar o sexo de cada sujeito, considerando o número reduzido de enfermeiros intensivistas participantes, facilmente identificáveis, no local de estudo. Na apresentação das falas, optou-se por utilizar a letra “E” seguida do número correspondente à entrevista – por exemplo, à primeira entrevista foi designado o código E1. Os dados obtidos na transcrição das entrevistas foram analisados com o auxílio do software QSR NVivo 11, versão Windows19, para empregar a análise de conteúdo de Bardin. O programa utilizado permitiu cruzar informações, codificar dados e gerenciar informações, assim como ajudou na montagem das categorias temáticas.

 

Resultados e discussão

 

Participaram deste estudo 5 enfermeiros, dos quais, atualmente, 4 exercem suas atividades em Unidade de Terapia Intensiva e um deles já não exerce mais a função neste setor. A amostra foi composta por 3 mulheres e 2 homens. A média de idade dos participantes foi de 35,6 anos, com mínima de 30 e máxima de 42 anos. Em relação ao tempo de formação profissional, previamente ao exercício profissional como enfermeiro, todos os participantes já exerceram atividades como técnicos de enfermagem.

Da análise das transcrições das entrevistas obtidas emergiram três categorias temáticas: 1) percepção dos enfermeiros para lidar com a morte; 2) preparo do enfermeiro intensivista sobre a morte e seus critérios de definição; e 3) processo de trabalho do enfermeiro na efetividade do processo de doação de órgãos para transplante.

 

Percepção dos enfermeiros para lidar com a morte

 

Os resultados obtidos das entrevistas mostram que o enfermeiro lida com a situação de morte encefálica como um acontecimento triste e difícil, no entanto, inevitável. Na perspectiva dos participantes, a temática sobre morte encefálica (ME) deveria fazer parte da rotina do trabalho que é desenvolvido nas Unidades de Terapia Intensiva, assim como deveria ocorrer um preparo específico e contínuo para a assistência integral ao indivíduo em ME, tornando sua discussão pertinente e atual. Na formação prática, muitos enfermeiros não possuem experiência prévia na assistência hospitalar, assim como na assistência perante a ME, e são poucas ou raras as vezes em que lidaram com perdas deste tipo no ambiente de trabalho. Logo, é natural que se sintam despreparados para lidar com o assunto. Assim, é essencial que recebam formação adequada sobre como lidar com a morte, bem como apoio de outros profissionais por meio de rodas de conversas, trocas de experiências, entre outras atividades de suporte. A dificuldade de estar preparado para a morte encefálica, assim como o morrer, pode ser evidenciado nas falas abaixo:

 

“... é difícil! (...) e mesmo eu sendo enfermeira não aceito bem a condição deste paciente que está no meu setor e mesmo com toda a aparelhagem, está sem atividade cerebral... está morto com o corpo quente... Quando eu vejo um caso desse, vou querer tentar até o último momento porque a nossa sensação de ver um corpo ali parado estando na máquina é que ele está né... em... que ele vai recuperar, que ele vai ficar bem”. (E3)

 

“... é difícil assim eu acho que pra todo mundo porque a gente nunca está preparado pra lidar com a morte, ainda mais esta, em que parece que o paciente está apenas sedado...” (E5)

 

“Confesso que evito este tipo de situação quando posso. Acho muito complicado esta situação de ver a morte deste paciente e ao mesmo tempo continuar a dar assistência a este paciente como se ele estivesse vivo... sei que é a morte encefálica, mas nunca estamos preparados pra lidar com ela, ainda mais esta” (E5)

 

Ainda nos dias atuais, existe uma dificuldade em aceitar o diagnóstico de ME pelos profissionais da saúde, em especial, os enfermeiros. Muitas vezes, o motivo dessa dificuldade está no desconhecimento sobre a ME por estes profissionais. Além disso, o despreparo na aplicação do protocolo para averiguação da ME também contribui para esta difícil aceitação, ao analisarem a perspectiva de profissionais da saúde que trabalham diretamente como a morte e o morrer, concluíram em seu estudo que os profissionais participantes, sinalizaram a sensação de não se sentirem preparados para lidar com este processo [13]. Segundo os autores, a morte é enfrentada no cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde, o que torna muito mais pertinente abordar o tema durante todo o processo de formação dos mesmos [13].

Enquanto lidam com o potencial doador de órgãos, rotineiramente, o enfermeiro intensivista manifesta diversas emoções que podem culminar em estresse profissional, dificultando a assistência ao paciente em ME, assim como no repasse de informação necessária aos familiares. Mesmo diante das emoções e sentimentos controversos no qual o enfermeiro pode estar submetido, este profissional também enfrenta a aceitação e constatação deste diagnóstico. Neste caso, o enfermeiro, como profissional do cuidado e também responsável pelo potencial doador, deve buscar maneiras que possibilitem um melhor enfrentamento diante da especial situação, e desta forma reagir positivamente frente às adversidades inerentes à morte e ao morrer em seu processo de trabalho.

 

“... porque muitos ficam em dúvida, será que realmente tá em morte encefálica ou não está em morte encefálica, então por isso que gera esse desconforto todo, não é fácil.” (E5)

 

“eu realizo a minha assistência como deveria estar fazendo com qualquer outro paciente que está internado. Tenho que manter o corpo cuidado pro transplante se acontecer. Isso depende de mim nesta situação diferente” (E2)

 

Segundo a literatura, a Teoria do Enfrentamento é a ferramenta para situações estressantes como esta, a qual utiliza destes momentos para reunir formas de amenizar o estresse e o sofrimento vivenciados, por meio do controle das emoções, agindo assim, para garantir a redução do problema existente [7]. Nesta teoria, há oito maneiras diferentes de reações que demonstram a atenuação do sofrimento e estresse causado pelas adversidades enfrentadas pelos enfermeiros em sua rotina de trabalho: confrontar a situação com hostilidade; distanciar-se das situações e sentimentos de tensão; possuir controle sobre as emoções; buscar suporte social e emocional; compreender sua responsabilidade mediante a situação e tentativa de resolução dos problemas; fugir ou evitar tratar destas situações; buscar resolutividade de forma planejada e por fim, tornar os problemas e adversidades em fatos positivos, dando novos significados e gerando crescimento pessoal por meio deles. Maneiras semelhantes puderam ser observadas em estudos nos quais os entrevistados percebiam a morte como processo de separação, passagem e finitude, indicando o fim da vida, o encerramento de um ciclo, e caracterizando fenômeno irreversível, no entanto, existente [13]. Também concluíram que discutir a morte é importante, principalmente ao longo da formação para entendê-la ou enfrentá-la, ajudando a lidar, desta forma, com seus sentimentos e com as famílias [13,14].

Estudos realizados tiveram o objetivo de conhecer os conflitos éticos que os enfermeiros enfrentam durante o processo de doação de órgãos e tecidos para transplantes, e verificaram que estes profissionais possuem dificuldade em lidar com a morte encefálica principalmente porque a equipe médica também as possui, assim como as dúvidas de realizar os testes de comprovação da morte encefálica [2]. Também há dificuldade pelos profissionais responsáveis por estes pacientes em realizar a desconecção do ventilador mecânico que mantem este paciente respirando, independentemente de ser um potencial doador de órgãos. Há também situações de dificuldade por parte dos profissionais em informar à família do potencial doador sobre a morte encefálica e conseguir a autorização dos familiares para doação de órgãos [2]. Mesmo possuindo o conhecimento do protocolo para constatação de ME e todos os critérios diagnósticos inerentes a este processo, os profissionais ainda possuem dúvida sobre o resultado, possuindo dificuldade em aceitar a morte encefálica como natural do ser humano [15,16].

Existe um paradoxo entre os profissionais de enfermagem: mesmo com a presença de morte encefálica de um paciente conseguem sentir felicidade por estar contribuindo para salvar vidas mediante a captação de potenciais doadores de órgãos para transplantes. O sentimento de tristeza se configura por deixar partir um indivíduo cujo coração ainda bate e recebe cuidados como outro indivíduo que necessitasse de cuidados e vivo [17].

A percepção dos enfermeiros em lidar com a morte também foi demostrada diante da preocupação com os familiares do paciente em ME. Houve relato acerca das possíveis reações que os familiares poderiam apresentar, assim como demonstraram visualizar pontos positivos na situação, representada pela possível doação de órgãos.

 

“...sempre espero pelo médico dar a notícia primeiro pra depois eu ajudar nas demais informações que todos sempre me pedem. Eles demoram a entender que o parente morreu e que só está ligado na máquina, sem vida” (E1)

 

“é a hora mais triste de fazer o cuidado de enfermagem, pois precisamos cuidar daqueles que estão vivos e ainda estão vendo o filho ligado na máquina e com o coração batendo... vi poucas vezes, mas é muito triste. Não tenho muita reação na hora” (E3)

 

“a única vez que presenciei foi estranho pra mim porque vi que os familiares não tinham nenhuma reação e, assim, eu não conseguia imaginar como poderia abordá-los para confortar naquela situação” (E5)

 

O repasse de informações corretas sobre a ME e a manutenção do corpo do paciente por tecnologias duras aos familiares, requer sensibilidade dos profissionais de saúde. Na maioria das vezes, as primeiras informações são realizadas pela equipe médica. No entanto, enfermeiros, como parte integrante da equipe de trabalho das Unidades de Terapia Intensiva também podem auxiliar na condução destas informações de forma empática e humana. Vale ressaltar, que este é um acontecimento ímpar nas famílias que recebem tal notícia, e que a futura decisão dos mesmos em aceitar a doação de órgãos de familiares pode depende desta primeira abordagem realizada. Portanto, a informação repassada corretamente e realizada de forma ética, é uma ferramenta fundamental para que possa existir uma maior aceitação por parte dos familiares em realizar a doação de órgãos, uma vez que são detentores dessa autorização [16].

     Diferentemente das falas acima, também houve relato em que o enfermeiro demonstrou um distanciamento da situação e das emoções que tangem o contexto da morte encefálica, assim como da vivência que a mesma proporciona. Também houve pouca empatia por este profissional em relação aos familiares do paciente em ME:

 

“Minha reação? Eu não sei, porque faz tanto tempo que a gente trabalha na UTI... é comum porque não é da família né, não é da família e não é conhecido, então é uma coisa comum. Seria diferente se fosse da família, se fosse um conhecido, entendeu? (E4)

 

A fim de evitar sofrimento diante da morte de pacientes, alguns profissionais acabam demonstrando indiferença e repressão dos sentimentos relacionados à morte do ser humano que estava sob seus cuidados. Desta forma não processam o luto e internalizam sentimentos como frustração, derrota, vergonha e angústia [7]. A somatização de repetidas vezes acompanhando pacientes em morte encefálica pode causar um estresse ocupacional ao enfermeiro intensivista, podendo acarretar em dificuldades para a realização do cuidado humanizado ao corpo [17,18].

 

O preparo do enfermeiro intensivista sobre a morte e seus critérios de definição

 

Quase a totalidade dos enfermeiros intensivistas considerou-se qualificado reconhecer a ME, prestar o cuidado ao paciente em ME, assim como realizar a abordagem aos familiares. No entanto, nenhum dos participantes relatou informações sobre a equipe que é designada pela comunicação acerca de doação de órgãos na instituição. Vale mencionar que na entrevista de apenas um dos participantes foi verificado um despreparo teórico-prático acerca do protocolo de ME. O desconhecimento do protocolo de ME demonstra a ausência de competências inerentes a um profissional atuante em uma Unidade de Terapia Intensiva, uma vez que evidência a distância das ações inerentes ao processo de enfermagem relacionadas à assistência, assim como aquelas relacionadas a tomadas de decisão, uma vez que o enfermeiro deve exercer os cuidados ao paciente, auxiliar junto à equipe na constatação da ME, realizar cuidados para manutenção do corpo com dignidade e em condições ideais para uma possível doação de órgãos [17,19]. O desconhecimento do profissional pode ser explicitado na seguinte fala:

 

“... precisava que padronizar né, protocolar isso, colocar isso como protocolo e aí assim todos nós poderemos fazer o que é necessário porque estará de acordo com o hospital” (E1)

 

Existem obstáculos que podem impedir a realização da doação de órgãos de pacientes em ME, principalmente a ausência de conhecimento dos enfermeiros e despreparo dos mesmos para lidar com as situações clínicas inerentes ao paciente com este diagnóstico. Consequente a este despreparo, há dificuldade de identificar possíveis doadores e, assim, preparo adequado e em tempo ideal para o preparo dos respectivos receptores [19]. Logo, é fundamental que o enfermeiro intensivista possa ser qualificado e sentir-se como tal para reconhecer a ME, cuidar deste paciente e assistir aos familiares. O conhecimento do processo e a execução adequada de cada etapa referente ao processo de doação possibilitam a obtenção de órgãos e tecidos com mais segurança e qualidade, potencializando, assim, o diagnóstico de ME, a captação do órgão doado, o acondicionamento, o transporte até o local do transplante do órgão no receptor [19,20].

Essa melhoria no processo de captação e doação de órgãos advém de um planejamento e organização do cuidado da equipe de profissionais envolvidos no cuidado ao paciente em ME, os quais deverão estar devidamente atualizados e realizando as ações necessárias ao andamento e concretização da doação. Dessa forma, pode-se alcançar maior eficiência, qualidade e excelência no cuidar, garantindo melhoria contínua do processo de doação, beneficiando aos profissionais envolvidos, aos familiares dos doadores e aos potenciais receptores [19].

A comunicação com os familiares feita de forma empática, humana objetiva e ética torna mais efetiva a potencial doação de órgãos do paciente em ME. Segundo a literatura, é importante que a equipe médica além de conhecer o protocolo de ME, também possa implementá-lo junto aos enfermeiros responsáveis pelo setor, uma vez que este profissional possui constante contato com o indivíduo em morte encefálica [15]. Vale destacar que o enfermeiro realiza funções diretamente ligadas às condutas humanas de solidariedade e empatia, devendo estas fazer parte do cotidiano deste profissional. Este tipo de conduta constitui elemento chave para efetivação da doação de órgãos pelos familiares, na identificação dos pacientes que estão sob suspeita de ME ou em ME iminente [15]. Desta forma, norteiam nos procedimentos técnicos necessários ao protocolo para confirmação deste diagnóstico ao orientar e esclarecer o quadro clínico do paciente em ME, assim como sugerir aos familiares a possibilidade da doação de órgãos. Por fim, o enfermeiro é o responsável, junto à equipe de enfermagem, por manter o corpo estável do possível doador para que a doação possa ser efetivada, caso necessário seja. Diante das funções apresentadas, verifica-se que a comunicação deve ser, portanto, uma ferramenta de condução no processo de doação de órgãos com sucesso [15,19].

A grande maioria dos entrevistados demonstrou em suas falas atuar junto à equipe, a fim de executar as condutas relacionadas ao protocolo ME quando reconhecida, prover materiais e insumos necessários ao paciente em ME gerir informações corretas para os demais integrantes da equipe que realizam os cuidados neste paciente. Nas falas também é possível reconhecer que é necessário realizar os exames e testes corretos, seguir os protocolos e cuidar deste paciente para uma eventual doação de órgãos e transplante em receptores com diferentes demandas.

 

 “... todas as providências necessárias né, comunicar o médico e a gente fazer tudo que... os exames, protocolos, no caso se tivesse que entrar em contato com outra central tudo, e ficar em cima do paciente né. É... no meu caso como eu já fui técnica, quando eu ficava com um paciente assim, a atenção era toda em cima dele porque a gente sabia, que ele era um provável doador de órgãos.” (E2)

 

“...é o enfermeiro que geralmente vai dando esses detalhes ao médico... avaliar porque se ele entrar em morte encefálica tem outras pessoas que podem receber esses órgãos, a vida para ele não vai acabar ali né, ele pode né distribuir vida né, e não é para uma pessoa só, são para várias. ” (E3)

 

 “... pode trabalhar auxiliando em todos os procedimentos que vão ser realizados principalmente nestes testes que ele vai estar realizando. ” (E5)

 

A apresentação de um diagnóstico preciso de morte encefálica deve ser realizada por profissionais da saúde capacitados, portanto, é necessário que todo profissional de saúde esteja familiarizado com o conceito e protocolo. Diante disso, o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), por meio da resolução nº 292 de 7 de junho de 2004, dispõe várias regulamentações que tratam da atuação do enfermeiro na captação e transplantes de órgãos e tecidos, que participem ativamente de todas as etapas inerentes a este processo, contribuindo para a identificação dos possíveis doadores [21]. Um ponto importante desta temática é a certificação após todas as condutas realizadas no protocolo e comunicação aos familiares. Neste momento o enfermeiro realiza a notificação do diagnóstico de ME à central de transplante Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO), obrigatória por lei, independente da possibilidade de doação ou não de órgãos e tecidos. Após esta conduta são iniciados os exames de classificação do potencial doador [22,23].

Durante a manutenção clínica do potencial doador, as técnicas para manutenção do potencial doador exigirão acurácia e a supervisão constante do enfermeiro. Apesar de não ser um procedimento muito complexo, deve ser feito de forma correta e sistematizada. A Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) é uma ferramenta utilizada pelo enfermeiro na gerência do cuidado. Ao sistematizar a assistência, o enfermeiro educa e capacita à equipe, evidenciando que ao prestar cuidados adequados garante-se, condições clínicas para que o indivíduo em ME possa passar de um potencial doador a um efetivo doador de órgãos, e ajudar outras pessoas que necessitam desses órgãos para sobreviver ou melhorar sua qualidade de vida [7,24].

Mesmo após o diagnóstico de morte encefálica, o paciente deve continuar recebendo cuidados intensivos e humanizados, assim como outro paciente vivo e não acometido por ME e internado em uma Unidade de Terapia Intensiva. Desta forma, e somente assim, seus órgãos poderão manter as características necessárias para doação [1]. O indivíduo em ME, pode, mesmo após a constatação da mesma, proporcionar vida e recuperação da saúde a outros pacientes que estão nas filas de transplante de órgãos, inclusive àqueles que estão como prioridade, já que o transplante seria a única forma de manutenção da vida [25]. Infelizmente, devido ao despreparo dos profissionais na notificação e captação de órgãos de pacientes com morte encefálica para realização de transplantes, a doação não vem sendo concretizada, tornando a fila de espera por órgãos cada vez maior. No Brasil, embora o número de doações de órgãos seja crescente, ainda existe um grande número de pessoas que aguardam por um doador na fila de espera para transplante de órgãos, contribuindo, assim, como informação pertinente a presente discussão [26].

Um dos integrantes da pesquisa realizada demonstrou distanciamento da relação empática enfermeiro-paciente e das condutas humanas e solidárias desejáveis a este profissional. Sua fala expressa um comprometimento com a técnica adequada no preparo do corpo, sem mencionar sentimentos e sensações relativas à ME:

 

“Não tenho nenhum sentimento, olhando diretamente como enfermeiro na UTI, porque quando é diagnosticada a morte encefálica se entra em contato com a equipe responsável pela parte de retirada dos órgãos, e essa outra equipe já vem com outro enfermeiro, né. A única coisa que a gente faz aqui é preparar o paciente e encaminhar para o centro cirúrgico, só isso. (E4)

 

 

Mesmo com a colocação deste enfermeiro, é necessário frisar que o paciente com morte encefálica deve ser conduzido adequadamente e com dedicação da equipe, independente de uma possível doação de órgãos. Trata-se de um ser humano, paciente, indivíduo e como tal merece ser tratado com respeito e dignidade [19].

 

Processo de trabalho do enfermeiro na efetividade do processo de doação de órgãos para transplante

 

Mediante a doação de órgãos, apenas um entrevistado não soube falar da função do enfermeiro perante os familiares do paciente em ME, relatando apenas a função de verificar continuamente os sinais vitais com objetivo de mantê-los constantes e, desta forma, manter o corpo estável. Entretanto, a maioria dos enfermeiros mostrou uma preocupação em realizar o correto comunicado aos familiares do paciente, mostrando empatia diante do quadro apresentado, como pode ser acompanhado nas falas abaixo:

 

“... é fundamental para nós enfermeiros ajudarmos a família que está perdendo e tentar convencê-los a fazer a doação, porque tem família que até assimilar tudo né. E não é só isso. Sentimos quando perdemos um paciente aqui no setor” (E2)

 

“...primeira coisa que o enfermeiro pode fazer é comunicar a família e se disponibilizar no que for preciso. Tem a doação que é importante também, mas não é só isso. ...” (E3)

 

“Não é bem nosso foco aqui né, a morte encefálica a gente ter né... Mas acho que auxiliar né, o apoio para a família quando precisar” (E4)

 

“... eu acho que o enfermeiro tem o papel principal de orientar os familiares e também acolher no que for preciso...” (E5)

 

A literatura reporta que a abordagem dos familiares é importante na decisão de doação dos órgãos, sendo importante humanizar a abordagem da assistência aos familiares do paciente. Desta forma, eles se sentirão mais confortáveis com a situação, possibilitando o enfrentamento e reduzindo o sofrimento devido à perda de seu familiar [15,7,27]. É importante ressaltar que não só o enfermeiro cria um vínculo com a família, mas toda a equipe responsável pelos cuidados a este indivíduo. Desta forma, a troca de informações constantes, o acolhimento e a influência positiva diante do luto iminente poderão ser intensificadas, auxiliando na aceitação da doação dos órgãos [7,27]. A família do paciente em morte encefálica pode apresentar-se confusa e muitas vezes não compreendendo o diagnóstico de morte encefálica e os fatores inerentes à doação de órgãos. Neste sentido, cabe ao enfermeiro esclarecer tais dúvidas e amparar a família neste momento, a fim de que eles possam decidir sobre a aceitação ou rejeição da doação de órgãos do seu familiar [7,27].

Foi evidenciado que os profissionais de enfermagem sentem incômodo em lidar com a família do paciente em ME, assim como se apresentam receosos em comunicar sobre a doação dos órgãos e a possibilidade de transplantes a um receptor da fila de espera [29,30]. Estes trabalhos também puderam constatar que alguns enfermeiros relutam e evitam comunicar a família sobre a ME devido à dificuldade de lidar com esta situação, deixando esta função apenas para o médico. Logo, o vínculo entre o enfermeiro e aquele que decidirá legalmente sobre a doação de órgãos será inexistente, cabendo somente a outro profissional realizá-la [27,28,30,31].

A empatia, constantemente presente na equipe de enfermagem e, em especial, no enfermeiro, pode ser uma ferramenta que facilita a comunicação entre este profissional e os parentes. Ao se colocar no lugar do outro, estes profissionais sentem e acompanham o momento de dor pela perda do ente querido, acabando por apresentar as dificuldades em conversar sobre a ME. A doação de órgãos e o transplante em um indivíduo desconhecido, em estudo sobre as percepções da equipe de enfermagem no cuidado ao paciente em morte encefálica, evidenciou a importância da equipe no cuidado ao paciente em morte encefálica e a necessidade do preparo para lidar com as famílias. Estes dados vão ao encontro do presente estudo, segundo a fala de um dos participantes [27,28,30]:

 

“... eu acho que o enfermeiro tem o papel principal de orientar os familiares e também acolher no que for preciso. Estudamos cinco anos para aprendermos a lidar com o ser humano em seus momentos mais difíceis. Vejo a morte como um desses momentos e, dessa forma, faço o que gosto quando ajudo a cuidar do paciente, e daqueles que amam ele. ” (E5)

 

 

Em relação à abordagem aos familiares para que autorizem a doação e retirada dos órgãos, todos os participantes relataram dificuldades para atuar frente ao sofrimento dos familiares. No entanto, segundo as entrevistas, a palavra “esperança” esteve presente na maioria das respostas dos enfermeiros participantes da pesquisa, quando era questionado sobre a abordagem aos familiares:

 

“Eles ainda têm esperança de que ele está vivo. Falam que está com o corpo quente, com o coração batendo e pode ainda viver. (E1)

 

 “... é difícil ser enfermeiro nestas horas, porque geralmente a família ainda tem uma esperança né, mesmo achando que a gente fale que a pessoa tá morta e que não vai viver, a esperança é a última que morre e eles acreditam que a pessoa possa voltar, né. ” (E4)

 

“Quando ela viu o filho, viu que ele estava deitado e com cor, teve esperança que ele estivesse vivo. (E5)

 

Alguns fatores fazem com que a família ainda tenha esperança na recuperação do paciente em ME. Este sentimento é verificado muitas vezes por desconhecimento acerca da ME ou informação errônea vinculadas em mídias sociais não comprometidas com o conhecimento científico, afinal, os familiares podem verificar que o corpo é mantido com cuidados diversos, havendo, inclusive, a presença de batimentos cardíacos. Estes sinais correspondem à falsa esperança da vida do paciente [13,18].

O enfermeiro, profissional do cuidado, esclarece aos familiares sobre o quadro atual do paciente, definindo a morte encefálica e a irreversibilidade do quadro de forma humanizada e empática, pois a família, na maioria das vezes, apresenta dificuldade em aceitar este diagnóstico, mostrando-se fragilizada com a situação e com a iminente decisão de doar os órgãos do ente que está sob cuidados intensivos na UTI [18,32]. Vale ressaltar que a morte destes pacientes geralmente é precedida de algo trágico e inesperado, o que leva ao trauma dos responsáveis pela autorização de órgãos do mesmo e dificuldade de aceitar o anúncio do diagnóstico de morte encefálica [5,7].

 

Conclusão

 

O presente estudo proporcionou a percepção do enfermeiro intensivistadiante da ME e da doação de órgãos. O processo de trabalho deste profissional consta, entre diversas atividades, realizar uma assistência de qualidade ao indivíduo em ME, reconhecer os sinais e sintomas da ME, realizar os cuidados ao corpo e, por fim, abordar os familiares de forma empática e humana, assim como orientá-los sobre a doação de órgãos. Diante desta última ação, o êxito de um futuro transplante pode ser possível.

O presente estudo ficou limitado a apenas uma Unidade de Terapia Intensiva geral, destinados a adultos. Também apresentou um número reduzido de sujeitos pesquisados, podendo não refletir a realidade de grandes Unidades de Tratamento Intensivo, entretanto é característico de municípios de menor porte. Acredita-se que este trabalho possa incentivar novas pesquisas na área de doação de órgãos e transplantes, voltadas às atitudes de profissionais de enfermagem no cuidado ao paciente em ME, tendo em vista que o protocolo para este diagnóstico foi modificado no final do ano de 2017 e irá necessitar ser implementado com responsabilidade pelos profissionais enfermeiros, em especial, aqueles que são intensivistas.

 

Referências

 

  1. Pestana AL, Erdmann AL, Sousa FGM. Emergindo a complexidade do cuidado de enfermagem ao ser em morte encefálica. Esc Anna Nery 2012;16(4):734-40. https://doi.org/10.1590/S1414-81452012000400013
  2. Araújo MN, Massarollo MCKB. Conflitos éticos vivenciados por enfermeiros no processo de doação de órgãos. Acta Paul Enferm 2014;27(3):215-20. https://doi.org/10.1590/1982-0194201400037
  3. Tannous LA, Yazbek VMC, Giugni JR. Manual para notificação, diagnóstico de morte encefálica e manutenção do potencial doador de órgãos e tecidos/ Central Estadual de Transplantes. Secretaria do Estado da Saúde. Superintendência de Gestão de Sistemas de Saúde. Curitiba- Paraná: 2014
  4. Resolução nº 2.173 de 23 de novembro de 2017. Estabelece critérios para o diagnóstico de Morte Encefálica. https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2017/2173
  5. Araújo C, Santos JAV, Rodrigues RAP, Guidi Júnior LR. O papel do profissional de enfermagem na doação de órgãos. Saúde em Foco 2017;9:533-51.
  6. Silva HB, Silva KF, Diaz CMG. A enfermagem intensivista frente à doação de órgãos: uma revisão integrativa. J Res Fundam Care 2017;9(3):882-7. https://doi.org/10.9789/2175-5361.2017.v9i3.882-887
  7. Souza SS, Borenstein SM, Silva DMGV, Souza SS, Carvalho BJ. Estratégias de enfrentamento da enfermagem no cuidado ao potencial doador de órgãos. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste 2013;14(1):92-100.
  8. Magalhães ALP, Erdmann AL, Sousa FGM, Lanzoni GMM, Silva EL, Mello ALSF. Significados do cuidado de enfermagem ao paciente em morte encefálica potencial doador. Rev Gaúcha Enferm 2018;39:e2017-0274. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.2017-0274.
  9. Rocha PK, Prado ML, Silva DMGV. Pesquisa convergente assistencial: uso na elaboração de modelos de cuidado de enfermagem. Rev Bras Enferm 2012;65(6):1019-25. https://doi.org/10.1590/s0034-71672012000600019
  10. Trentini M, Paim L, Santos I. Pesquisa em enfermagem - uma modalidade convergente-assistencial. Rev Bras Enferm 1999;52(4):626-27. https://doi.org/10.1590/S0034-71671999000400018
  11. Trentini M, Paim L. Pesquisa convergente assistencial: um desenho que une o fazer e o pensar na prática assistencial em saúde-enfermagem. 2. ed. Florianópolis: Insular; 2004. p. 143.
  12. Bardin L. Análise de conteúdo. Edição Revista e Atualizada: Lisboa: Edições 70 LDA; 2009.
  13. Costa DT, Garcia LF, Goldim JR. Morrer e morte na perspectiva de residentes multiprofissionais em hospital universitário. Rev Bioét (Impr.) 2017;25(3):544-53.
  14. Silva Júnior FJG, Santos LCS, Moura PVS, Melo BMS, Monteiro CFS. Processo de morte e morrer: evidências da literatura científica de enfermagem. Rev Bras Enferm 2011;64(6):1122-6. https://doi.org/10.1590/s0034-71672011000600020
  15. Moraes EM, Santos MJ, Merighi MAB, Massarollo MCKB. Vivência de enfermeiros no processo de doação de órgãos e tecidos para transplante. Rev Latinoam Enferm 2014;22(2):226-33. https://doi.org/10.1590/0104-1169.3276.2406
  16. Gois RSS, Galdino MJQ, Pissinati PSC, Pimentel RRS, Carvalho MDB, Haddad MCFL. Efetividade do processo de doação de órgãos para transplantes. Acta Paul Enferm 2017;30(6):621-7. https://doi.org/10.1590/1982-0194201700089.
  17. Junqueira MS, Cavalcanti IFM, Santos JR, Silva PPBA, Silva FP. Morte encefálica: o enfermeiro prestando assistência ao potencial doador de órgãos e tecidos. Revista Saúde 2016;10(1).
  18. Santos MA, Hormanez M. Atitude frente à morte em profissionais e estudantes de enfermagem: revisão da produção científica da última década. Ciênc Saúde Coletiva 2013;18(9):2757-68. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232013000900031.
  19. Magalhães ALP, Lanzoni GMMO, Knihs NS, Silva EL, Erdmann AL. Segurança do paciente no processo de doação e transplante de órgãos e tecidos. Cogitare Enferm 2017;(22)2:e45621.
  20. Pestana AL, Santos JLG, Erdmann RH, Silva EL, Erdmann AL. Pensamento Lean e cuidado do paciente em morte encefálica no processo de doação de órgãos. Rev Esc Enferm 2013;47(1):258-64.
  21. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução COFEN nº 292/2004. Normatiza a atuação do Enfermeiro na Captação e Transplante de Órgãos e Tecidos. 2004 [citado 2018 Mai 1]: Disponível em: http://site.portalcofen.gov.br/node/4328
  22. Silva JR. Familiaridade dos profissionais de saúde sobre os critérios de diagnósticos de morte encefálica. Enfermagem em foco 2010;1(3). https://doi.org/10.21675/2357-707X.2010.v1.n3.36        
  23. Molina BFC, Barreto KEC. Processo de captação e doação de órgãos: atribuições do enfermeiro. Rev Ulbras 2017;2.
  24. Rodrigues HB, Nogueira DL, Félix TA, Gomes DF. Assistência e enfermagem a indivíduos em morte encefálica: avaliação de qualidade. Rev Bras Cienc Saúde 2017;21(4):333-40. https://doi.org/10.4034/rbcs.2017.21.04.07
  25. Freire ILS, Mendonça AEO, Pontes VO, Vasconcelos QLDA, Torres GV. Morte encefálica e cuidados na manutenção do potencial doador de órgãos e tecidos para transplante. Rev Eletrônica de Enferm 2012;14(4). https://doi.org/10.5216/ree.v14i4.14598
  26. Mendes KDS, Roza BA, Barbosa SFF, Schirmer J, Galvão CM. Transplantes de órgãos e tecidos: responsabilidades do enfermeiro. Texto Contexto Enferm 2012; 21(4)945-53. https://doi.org/10.1590/s0104-07072012000400027
  27. Lima CSP, Batista ACO, Barbosa SFF. Percepções da equipe de enfermagem no cuidado ao paciente em morte encefálica. Rev Eletr Enf 2013;15(3):780-9. https://doi.org/10.5216/ree.v15i3.17497.
  28. Barradas JFG. Atitudes dos enfermeiros perante morte cerebral e transplantação de órgãos. Algarve: Universidade do Algarve; 2010.
  29. Lira GG, Pontes CM, Schirmer J, Lima LS. Ponderações de familiares sobre a decisão de recusar a doação de órgãos. Acta Paul Enferm 2012;25(2):140-5. https://doi.org/10.1590/S0103-21002012000900022
  30. Cavalcante LP, Ramos CR, Araújo MAM, Alves MDS, Braga VAB. Cuidados de enfermagem ao paciente em morte encefálica e potencial doador de órgãos. Acta Paul Enferm 2014;27(6)567-72. https://doi.org/10.1590/1982-0194201400092
  31. Meneses NP, Castelli I, Costa Junior AL. Comunicação de morte encefálica a familiares: levantamento com profissionais de saúde. Rev SBPH 2018;21(1):192-217.
  32. Gomes CNS, Araújo DMM, Oliveira HMBS, Sampaio NMF. Perspectiva da enfermagem no processo de doação de órgãos e tecidos: relato de experiência. Rev Enferm UFPI 2018;7(1):71-4. https://doi.org/10.26694/2238-7234.7171-74