ARTIGO
ORIGINAL
Aspectos
facilitadores e dificultadores do trabalho em equipe
em unidade de urgências traumatológicas
Ana Lidia de Castro Sajioro Azevedo, D.Sc.*, Ana Carolina Guidorizzi Zanetti, D.Sc.**, Ana
Maria Laus, D.Sc.***, Denize Bouttlet
Munari, D.Sc.****, Bethania Ferreira Goulart, D.Sc.*****,
Larissa Roberta Alves******, Lucieli Dias Pedreschi Chaves, D.Sc.***
*Enfermeira,
**Enfermeira, Professora Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade
de São Paulo, Ribeirão Preto, ***Enfermeira, Livre-docente, Professor
Associado, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo,
Ribeirão Preto, ****Enfermeira, Professor Titular, Faculdade de Enfermagem e
Nutrição, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, *****Professor Universidade
do Triângulo Mineiro, Uberaba, ******Enfermeira, Mestranda, Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto/SP
Recebido em 12 de
março de 2018; aceito em 16 de julho de 2018.
Endereço
de correspondência:
Lucieli Dias Pedreschi
Chaves, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Av. dos Bandeirantes, 3900, Bairro Monte Alegre, 14040-902
Ribeirão Preto SP, E-mail: dpchaves@eerp.usp.br; Ana Lidia
de Castro Sajioro Azevedo: al_sajioro@hotmail.com;
Ana Carolina Guidorizzi Zanetti:
carolzan@eerp.usp.br; Ana Maria Laus: analaus@eerp.usp.br; Denize
Bouttlet Munari:
boutteletmunari@gmail.com; Bethania Ferreira Goulart:
bethaniagoulart@yahoo.com.br; Larissa Roberta Alves:
larissa.roberta.alves@usp.br
Resumo
O trabalho em equipe
pode ser entendido como potente instrumento para favorecer a lógica de trabalho
mais integrado, perspectiva coerente com a demanda do cenário hospitalar de
urgências traumáticas. Objetivo:
Analisar aspectos que facilitam e dificultam o trabalho em equipe em unidade
hospitalar de urgências traumáticas. Métodos:
Estudo descritivo, utilizando Técnica do Incidente Crítico, com dados
qualitativos e quantitativos, em unidade hospitalar de urgências traumáticas,
com a participação de profissionais da equipe de assistência ao paciente politraumatizado. Os dados foram coletados em entrevista
semiestruturada individual. Para análise foi utilizada estatística descritiva e
para relatos a análise de conteúdo. Resultados:
Participaram 64 profissionais. Emergiram 107 situações / 614 comportamentos /
267 consequências. Houve predomínio de aspectos facilitadores do trabalho em
equipe incluindo realização do cuidado com conhecimento e adequada interação
entre agentes para o trabalho colaborativo. Dificultam o trabalho em equipe a
comunicação deficiente e instabilidade do quadro clínico dos pacientes. Conclusão: Predomínio de facilitadores
para trabalho em equipe revela cotidiano fortalecido para atender urgências e
beneficiado por políticas públicas indutoras do cuidado ao trauma.
Palavras-chave: equipe de
assistência ao paciente, centros de traumatologia, enfermagem, serviço
hospitalar de emergência.
Abstract
Facilitating and difficult aspects of teamwork in a trauma emergency
unit
Teamwork can be understood as a powerful instrument to encourage more
integrated logic perspective consistent with the demand of hospital emergency
traumatic scenario. Objective: To
analyze aspects that facilitates and makes difficult the teamwork in a hospital
unit of traumatic urgencies. Methods:
A descriptive study, using a Critical Incident Technique, with qualitative and
quantitative data, in a hospital unit of traumatic urgencies, with the
participation of professionals from the polytraumatized
patient care team. The data were collected in an individual semi-structured
interview. Descriptive statistics were used for analysis and for content
analysis. Results: 64 professionals
participated. 107 situations / 614 behaviors / 267 consequences emerged. There
was a predominance of facilitating aspects of teamwork, including realization
of care with knowledge and adequate interaction between agents for collaborative
work. Difficulty in teamwork is poor communication and instability of patients'
clinical status. Conclusion:
Predominance of facilitators for teamwork reveals daily strengthened to attend
emergencies and benefited by public policies that induce trauma care.
Key-words: patient care
team, trauma centers, nursing, emergency service, hospital.
Resumen
Aspectos facilitadores y dificultadores
del trabajo
en equipo en unidad de urgencias
traumatológicas
El trabajo en equipo puede ser entendido como un
potente instrumento para favorecer la
lógica de trabajo más integrada, perspectiva coherente con la
demanda del escenario hospitalario de urgencias
traumáticas. Objetivo: Analizar aspectos que facilitan y
dificultan el
trabajo en equipo en unidad hospitalaria
de urgencias traumáticas. Métodos: Estudio descriptivo,
utilizando Técnica del
Incidente Crítico, con datos
cualitativos y cuantitativos,
en unidad hospitalaria de urgencias
traumáticas, con la participación de profesionales del equipo de asistencia al
paciente politraumatizado. Los datos
fueron recolectados en una entrevista semiestructurada
individual. Para el análisis se utilizó estadística descriptiva y para relatos el análisis de contenido. Resultados: Participaron
64 profesionales. Se han
emergido 107 situaciones / 614 comportamientos
/ 267 consecuencias. Hubo predominio de aspectos facilitadores del trabajo en equipo incluyendo realización del cuidado con conocimiento y adecuada interacción entre
agentes para el trabajo
colaborativo. Dificultan el trabajo en equipo la comunicación
deficiente e inestabilidad del
cuadro clínico de los
pacientes. Conclusión:
El predominio de facilitadores para trabajo en equipo revela
cotidiano fortalecido para atender urgencias y
beneficiado por políticas públicas inductoras del cuidado al trauma.
Palabras-clave: grupo de atención al paciente, centros
traumatológicos, enfermería, servicio
de urgencia en hospital.
O modelo de atenção à
saúde e o modelo de organização do trabalho tem estreita relação entre si e, a
depender do modo como se configuram, podem favorecer ou não a prática do
trabalho em equipe. Historicamente, enquanto o modelo de atenção se consolidou
com ênfase na supremacia do saber médico e abordagem biologicista
como eixo central para o cuidado, a organização do trabalho se conformou a
partir dos pressupostos do método funcional, pautado na fragmentação e
justaposição de ações parcelares dos profissionais da saúde [1-2], fato que
repercute na organização hospitalar no tocante a existência de relações
hierárquicas entre os profissionais que ali se inserem [3]. Tais questões
perpassam e direcionam o arranjo organizativo do trabalho em saúde, não
favorecem a articulação de ações e saberes de diferentes profissionais, vão em
direção oposta à modalidade de trabalho em equipe, evidenciam o desafio da
integração das equipes, além da formação sustentada no comportamento
colaborativo e interdisciplinar [4].
Cabe ressaltar a
existência de diversas abordagens conceituais e tipologias acerca do trabalho
em equipe ancoradas na perspectiva do trabalho coletivo, pautadas na
integração/interação dos agentes e na efetiva articulação dos saberes e fazeres
em saúde, destacando-se as modalidades equipe integração e equipe agrupamento
[5].
O trabalho em equipe
é um processo complexo, no qual diferentes profissionais trabalham em conjunto
compartilhando conhecimentos, valores e habilidades com vistas a melhorar o
cuidado ao usuário [6]. Na prática, um aspecto relevante para que o trabalho em
equipe se efetive é o relacionamento entre os seus agentes, de maneira a
propiciar comportamento colaborativo e troca de informações entre os pares [7],
a colaboração pode representar uma ferramenta para se alcançar o cuidado
qualificado [8].
Concebe-se o trabalho
em equipe como potente instrumento para favorecer a lógica de trabalho mais
integrado, perspectiva coerente com a demanda do cenário hospitalar de
urgências traumáticas. No referido contexto, a complexidade do cuidado, a
premência de tempo para atendimento, que é determinante para o prognóstico dos
casos, assim como a agilidade e adequação da tomada de decisões, requerem a
integração de ações e saberes de diversos profissionais. Ademais, condições
estruturais do serviço, a ambiência e a forma de organização do trabalho podem
gerar facilidades e/ou dificuldades no desenvolvimento do trabalho em equipe,
repercutindo, em última análise, na atenção integral ao usuário.
Nessa perspectiva, no
Brasil, o Ministério da Saúde, considerando o perfil epidemiológico que aponta
para crescimento da morbimortalidade por causas externas, tem investido
fortemente para qualificar serviços de urgência e emergência, por meio de mudanças
na formação e qualificação de pessoal, nas relações entre profissionais e
usuários, na incorporação de avanços terapêuticos, tecnológicos e gerenciais,
bem como na organização dos serviços de saúde, culminando com a indicação a
Linha de Cuidado ao Trauma como componente prioritário da atenção na Rede de
Atenção às Urgências e Emergências (RUE) [9].
Trata-se de política
pública que norteia o atendimento e organização da atenção às urgências e
emergências, que articula serviços de saúde desde a prevenção, o atendimento
pré-hospitalar até a reabilitação, conforme a necessidade de cuidados dos pacientes,
adequando a utilização de recursos de diferentes naturezas para oferecer
assistência segura e qualificada e, dentre outros aspectos, dá ênfase ao
trabalho em equipe multiprofissional.
As unidades hospitalares de urgências traumáticas, em função
das especificidades dos atendimentos, da necessidade de tomada de
decisão rápida e ágil, demandam integração das categorias profissionais em
equipes de trabalho, desenvolvendo um conjunto de
procedimentos/ações/intervenções para os quais utilizam seus conhecimentos e
habilidades para atender as necessidades e demandas do usuário.
Nesse sentido,
desponta o questionamento: Quais são os aspectos facilitadores e dificultadores
do trabalho em equipe de saúde em unidade
hospitalar de traumatologia? Assim, esse estudo justifica-se pelos
aspectos
demográficos e epidemiológicos que indicam a
relevância das urgências
traumáticas na sociedade brasileira e mundial, pelo conjunto de
diretrizes
políticas nacionais acerca da atenção às
urgências que vem sendo aprimorado em
ações de organização da
atenção, pela complexidade das ações
assistenciais e
gerenciais desenvolvidas no âmbito da sala de trauma e que
repercutem
diretamente no cuidado ao usuário e, de modo muito especial,
pelas
especificidades nesse cenário no qual o trabalho da equipe
é dinâmico, requer
tomada de decisões rápidas e abordagem integral às
necessidades dos usuários,
para as quais o processo de trabalho em equipe pode favorecer o cuidado.
Considerando o
exposto, esse estudo teve como objetivo de analisar aspectos que facilitam e
dificultam o trabalho em equipe em unidade hospitalar de urgências traumáticas.
Trata-se de estudo
descritivo, empregando dados qualitativos. Utilizou-se a Técnica do Incidente
Crítico (TIC) que, embasada em sete etapas [10], favorece a identificação de
concepções, percepções e atitudes atinentes ao objeto da investigação, tendo
potencial de utilização para a solução de problemas cotidianos [10-11].
Foram considerados
conceitos e pressupostos do processo de trabalho em saúde [12], e seus
componentes (objeto, finalidade, instrumentos e agentes) nortearam a análise
dos resultados no que tange à dinâmica do trabalho em equipe em unidade de
traumatologia.
O estudo foi
desenvolvido no município de Ribeirão Preto/SP, Brasil, em um hospital público,
de nível terciário, com 137 leitos gerais e 34 leitos de Unidade de Terapia
Intensiva (UTI), referência para atendimento às urgências que demandam maior
densidade tecnológica e tratamentos especializados. O setor de urgência é
composto por sala de trauma que dispõe de cinco leitos, sala de estabilização
clínica com cinco leitos monitorizados e boxes com vagas destinadas a
atendimentos clínicos, além de uma vaga para isolamento respiratório. O
atendimento foi desenvolvido por equipe multiprofissional, sendo vinte e nove
auxiliares de enfermagem, vinte e dois enfermeiros, dezoito médicos, dezessete
técnicos de enfermagem e cinco assistentes sociais, totalizando noventa e um
profissionais. Considerando as especificidades da organização do cuidado e do
trabalho, a política de incentivo a qualificação da atenção às urgências
traumáticas, a sala de trauma foi selecionada como campo de estudo.
Foram critérios de
inclusão no estudo, ter vínculo empregatício, estar no exercício da assistência
às urgências traumáticas por ocasião da coleta de dados e atuar na sala de
trauma há mais de seis meses, tempo considerado mínimo para conhecer a dinâmica
da unidade. Estabeleceu-se como critérios de exclusão: profissionais que
estivessem ausentes do trabalho por qualquer tipo de afastamento e os
profissionais não localizados após três tentativas para agendamento de
entrevista. Considerando o exposto, total de participantes potenciais, oitenta
profissionais atenderam aos critérios de inclusão.
Os dados foram
coletados em 2015 por meio de entrevista semiestruturada guiada por um roteiro,
sendo este submetido à validação aparente e de conteúdo por três peritos na
temática e em metodologia de pesquisa. Posteriormente, foi feito piloto com
profissionais da equipe da sala de trauma que não participaram do estudo
definitivo.
O roteiro de
entrevista constava de duas partes, uma relativa à caracterização sociodemográfica e profissional do participante, a outra
parte contemplava questões abertas, para relato de situações vivenciadas e/ou
observadas, facilitadoras e dificultadoras para o
trabalho em equipe na sala de trauma, os comportamentos e consequências
decorrentes dessas situações, possibilitando a identificação dos Incidentes
Críticos (IC) vivenciados naquele cenário.
As entrevistas foram
realizadas individualmente, pela própria pesquisadora e uma auxiliar de campo,
em local privativo, pré-estabelecido em acordo com o participante, na própria
instituição de estudo e durante o horário de trabalho dos profissionais. Foram
gravadas em aparelho digital, tiveram duração aproximada de 30 minutos. Destaca-se
que a auxiliar de campo passou por capacitação, calibração e, durante todo
processo, foi acompanhada pela pesquisadora.
As entrevistas foram
transcritas na íntegra pela pesquisadora e receberam identificação numérica,
para preservar sigilo e anonimato do participante. Em seguida, procedeu-se à
extração dos ICs, separando-se as situações, os
comportamentos e as consequências, compondo a tríade que caracteriza o IC. Os
relatos, observados e/ou vivenciados pelos participantes, foram designados, por
eles, com referência positiva ou negativa, o que foi entendido como facilitador
ou dificultador para o trabalho em equipe,
respectivamente.
A análise dos ICs foi fundamentada, a princípio, na estatística
descritiva, que possibilita descrição e síntese dos dados [13], quantificando a
frequência de citação pelos participantes, das situações, comportamentos e
consequências. Cabe destacar que da mesma entrevista pode emergir mais de uma
tríade, para cada situação podem ser identificados mais de um comportamento e
consequência. Após, os relatos referentes às situações, comportamentos e
consequências foram analisados com base na Análise de Conteúdo [14] em
consonância com as etapas definidas por outra pesquisa [11]. A discussão dos
dados ancorou-se nos pressupostos do referencial teórico adotado e no objeto do
estudo. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP e da Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP-USP) com Protocolo n° 503/2011.
Os resultados
fundamentaram-se na identificação dos ICs relatados,
apresentando situações, comportamentos e consequências referentes ao trabalho
em equipe na unidade de urgências
traumáticas. Não foram incluídos relatos que representassem percepções,
opiniões e/ou generalizações, pois isso não configura IC.
Considerando os
oitenta profissionais que atenderam aos critérios de inclusão, a amostra deste
estudo foi composta por 74 profissionais da equipe da unidade de urgências
traumáticas, sendo 21 (32,8%) auxiliares de enfermagem, 17 (26,6%) enfermeiros,
13 (20,3%) técnicos de enfermagem, nove (14,1%) médicos e quatro (6,2%)
assistentes sociais. Dentre os 16 que não participaram, quatro estavam
afastados e os demais não compareceram após três agendamentos para entrevista.
Das 64 entrevistas
realizadas, emergiram 107 situações consideradas IC, que envolveram 614
comportamentos e 267 consequências. As situações identificadas na análise dos ICs foram agrupadas em quatro categorias por similaridade
de conteúdo (Tabela I).
Tabela
I - Distribuição das categorias de situações
referentes ao trabalho em equipe, relatadas pelos profissionais de saúde de
unidade hospitalar de urgências traumáticas. Ribeirão Preto/SP, 2015.
A maior parte das
situações (53%) tem referência positiva, entendidas como facilitadoras para o
trabalho em equipe.
Na categoria
Atendimento ao usuário com trauma grave/moderado a maioria das situações
relatadas (63%) teve referências positivas, consideradas facilitadoras para o
trabalho em equipe. Na percepção dos participantes o atendimento ao usuário com
trauma grave/moderado representa o objeto principal do trabalho em equipe dessa
unidade, que está preparada para interagir de modo articulado e dar resposta
adequada às demandas previstas, como é possível verificar nas falas que seguem:
[...]
recebemos um usuário idoso que teve várias fraturas de arcos costais até a
fratura de esterno [...] Foi muito rápido o atendimento, o contratado estava
junto, rapidinho conseguiram fazer um dreno de tórax, deu uma leve aliviada.
Foi observando que esse usuário começou a dessaturar
e a equipe toda estava articulada (E31).
Um
menino afogado chegou já intubado. Já tinha sido regulado, avisamos a
pediatria, foram recebendo, fazendo todas as medicações necessárias... mas o menino ficou parado bastante tempo. Teve uma interação
muito boa porque já desceram três médicos da pediatria e mais os médicos do
trauma. Tínhamos tudo pra receber um usuário pediátrico bem complexo (E22).
Nessa mesma
categoria, destacam-se as situações com referências negativas (37%),
consideradas como dificultadores para o trabalho em
equipe, em aspectos relativos ao quadro clínico do usuário e implicações para o
prognóstico, falta de informações prévias acerca dos usuários com trauma
grave/moderado, bem como os casos encaminhados em vaga zero, como é possível
identificar nas falas:
Uma
criança afogada, o médico contratado não avisou, ninguém sabia que a criança
estava chegando, o SAMU chegou na sala de trauma, não
tínhamos maca pra atender, foi precário o atendimento no local, não tinha leito
pra colocar o menino, a equipe tinha que ter sido avisada... (E19).
Recentemente,
recebemos um usuário, vítima de uma batida de carro, não estávamos esperando,
chegou sem ser avisado, somente intubada, sem acesso venoso, chocado. Providenciamos
acesso e tudo muito rápido, a equipe estava reduzida, a sala estava cheia, não
tínhamos vaga, não fomos avisados previamente dessa chegada desse usuário, veio
de vaga zero, isso realmente prejudicou (E07).
Situações incluídas
nas categorias Atendimento ao usuário com trauma leve, Atendimento a múltiplas
vítimas e Atendimento aos familiares tiveram menor frequência nos relatos,
evidenciando a organização do serviço e o preparo da equipe para atendimentos
de maior gravidade, perspectiva condizente com a inserção do hospital na rede
de atenção às urgências no município e região.
As situações
vivenciadas desencadearam 614 comportamentos, que envolvem as inúmeras ações
desenvolvidas pelos profissionais, diante dos casos atendidos e da complexidade
de organização do trabalho na unidade. Entende-se que esse fato possa
justificar o número de comportamentos ser muito
superior ao número de situações relatadas, conforme é possível verificar na
Tabela II.
Tabela
II -
Distribuição das categorias de
comportamentos, referentes ao trabalho em equipe, relatados pelos profissionais
de saúde de unidade hospitalar de urgências traumáticas. Ribeirão Preto/SP,
2015.
Quanto aos
comportamentos houve maior frequência de comportamentos positivos (73%),
entendidos como facilitadores para o trabalho em equipe.
A categoria Interagir
com os agentes apresenta 75,5% de comportamentos com referências positivas,
revelando que existem comportamentos pautados na parceria, respeito,
entrosamento, harmonia e bom relacionamento, para alcançar objetivo comum e
qualidade da ação entendidos como facilitadores para o trabalho em equipe. As
falas a seguir exemplificam:
mobilizou muita gente, todas as equipes tiveram um
trabalho em conjunto, dois atendimentos praticamente simultâneos, duas crianças
muito graves, uma delas foi a óbito, posteriormente. Me
marcou bastante e que nós conseguimos realmente trabalhar em equipe,
entrou todo mundo, tanto o controle de leitos, o serviço social, a equipe de
enfermagem, a equipe médica, o atendimento no final foi muito positivo (E56).
Eu
acho que aqui no trauma a gente tem um atendimento muito bom, é muito rápido,
cada um sabe o seu papel. O ringer já está lá postos, os tubos prontos e sabe o
que vai colher. O setor de tomografia não vai chamar outro usuário, ele espera
o trauma, é tudo muito sincronizado (E63).
A categoria Realizar
cuidado em saúde agrupa 74,3% de comportamentos com referência positiva, inclui
comportamentos/ações prioritariamente assistenciais para atender às demandas e
necessidades imediatas dos usuários. Ressalta-se que esses comportamentos para
prestar o cuidado adequado e coerente ancoram-se em
conhecimentos e habilidades profissionais, evidenciando que os participantes
reconhecem que tais ações favorecem o trabalho em equipe, como ilustram os
relatos a seguir:
...o
médico fez uma toracotomia na sala de trauma mesmo, é o auge do atendimento,
não são todos que iam fazer uma toracotomia em determinada situação, a
diferença realmente é o conhecimento! Tem aquele que sabe fazer, que já fez que
tem a experiência (E01).
...
nós já fomos para a sala de trauma, colocamos o
usuário na maca, já fomos tirando a sua roupa, já monitorizando, os médicos
chegaram e foram atendendo fazendo o que tinha que fazer e cada um veio
puncionar veia, os médicos vieram avaliar as equipes que tinham que vir já
vieram e foram atendendo (E30).
Apesar do predomínio
de comportamentos com atribuições positivas, é oportuno destacar que, a
categoria Realizar cuidado em saúde concentra 25,7% dos comportamentos
negativos, incluindo ações que podem dificultar o trabalho em equipe, tais como
aspectos relativos à falta de preparo dos profissionais para o cuidado,
fragmentação das ações, fragilidades na comunicação, individualismo de alguns
membros da equipe, imprevisibilidade e grande instabilidade do quadro clínico
dos usuários, como ilustram as falas:
A
criança foi a óbito. Acho que iria mesmo, de qualquer forma, ele já veio
precário e ninguém sabia que esse usuário ia chegar,
só o médico contratado, ele não passou nem para os residentes dele. Aí ele
justificou: ‘Ah, é porque eu tava no centro cirúrgico’.
Ele podia ter pedido pra alguém avisar, né. A falta de comunicação foi o que
prejudicou o atendimento da criança (E19).
Não
fomos avisados, não tinha material preparado, a maca ainda tava
suja porque o usuário tinha acabado de sair, faltou comunicação entre o médico
contratado e a sala de trauma, não foi avisado que a criança ia chegar porque
veio direto do local, então, a regulação ligou, avisou pra ele que vinha a
criança e ele não avisou, como veio direto do local a criança chegou, nem os
residentes estavam sabendo. Aí esse é o ponto negativo porque a equipe
multidisciplinar não tava sabendo de nada, porém,
aqui o acesso é rápido (E20).
A análise permitiu
ainda identificar um conjunto de 267 consequências referentes às situações voltadas
à dinâmica do trabalho em equipe que estão apresentadas na Tabela III.
Tabela
III
- Distribuição das categorias de
consequências, referentes ao trabalho em equipe, relatados pelos profissionais
de saúde de unidade hospitalar de urgências traumáticas. Ribeirão Preto/SP,
2015.
As consequências são
predominantemente positivas (58%), ou seja, facilitam o trabalho em equipe.
A categoria de
consequências Relativas à equipe concentra 69,6% de relatos referidos como
positivos, diz respeito às consequências referentes à realização de trabalho de
maneira integrada, sincronizada garantindo agilidade da equipe na assistência
prestada às vítimas de trauma, que viabiliza atendimento rápido e adequado,
como ilustram as falas:
Nossa,
o atendimento foi perfeito! Com aquela mãe, sabe? E aí o pai, o pessoal do
serviço social, todo mundo trabalhou em conjunto aquele dia (E05).
...Esse
foi um dos melhores atendimentos. Agilidade, a confiança, a tranquilidade, de
rapidez, de conhecimento, de saber o que tava fazendo
por toda a equipe que trabalhou junto... (E31).
Ainda no tocante as
consequências, destaca-se a categoria Relativas ao
serviço destaca-se porque quase todas os relatos foram negativos (95,7%), ou
seja, dificultadoras do trabalho em equipe, incluindo
aspectos relativos ao ambiente, às pessoas e até materiais necessários para o
cuidado, como exemplificam as seguintes falas:
...Então,
foi caótico porque, infelizmente, o número de funcionários na sala de trauma é
pouco pra essa situação, mas, graças a Deus, como a gente é unido, saiu pessoal
de três setores para dar o atendimento (E13).
Era
um momento que a equipe ficou duas horas e meia pra tentar estabilizar o
usuário, pra saber o que tava acontecendo e assim o
atendimento ocorreu em cima de uma maca de ambulância, intubou, drenou,
massageou numa maca de ambulância. Não tinha vaga, não tinha maca (E31).
Os resultados
apresentados permitiram identificar que a dinâmica do trabalho em equipe em
unidade de urgências traumáticas requer ações integradas, coletivas e
articuladas entre os diversos profissionais, setores e serviços envolvidos para
obter a finalidade do processo de trabalho nessa unidade, que é o cuidado
integral às vítimas de traumas grave/moderado.
Com base nos
resultados, evidenciou-se que há predomínio de situações, comportamentos e
consequências positivas, ou seja, aspectos facilitadores no que tange à
dinâmica do trabalho em equipe, em uma unidade hospitalar de urgências
traumáticas. Entende-se que tal fato pode ser decorrente de políticas públicas
voltadas para esse cenário que estimulam repensar o processo de trabalho na
perspectiva de trabalho coletivo e integrado, pressupondo equipes de
profissionais que se proponham a oferecer atenção integral ao usuário, ou seja,
pode ser reflexo positivo de políticas indutoras para a RUE.
A categoria de
situações Atendimento ao usuário com trauma grave/moderado e a categoria de
comportamentos Interagir com os agentes trazem à tona
a relevância da articulação das ações e interação dos agentes, como ferramentas
promotoras para o trabalho em equipe, na perspectiva da colaboração, com vistas
à assistência integral qualificada. Isso revela que a colaboração e interação
efetiva dos agentes facilita o trabalho em equipe ao usuário vítima de trauma
em situação de urgência, aspecto muito relevante a um contexto de cuidado de
abordagem multiprofissional.
Os profissionais
entendem o trabalho como um processo coletivo, em que existe interdependência e
complementaridade entre as ações dos diversos agentes da unidade, bem como em
outras unidades e serviços intra e extra-hospitalares. Reconhecem como aspecto facilitador
para o trabalho em equipe a integração dos agentes e a articulação das
diferentes ações profissionais e dos serviços que envolvem a produção do
cuidado na unidade, sendo assim, entendidas como aspectos
imprescindíveis para se atingir a finalidade do processo de trabalho em
urgências traumáticas, que é o cuidado em saúde.
Nessa perspectiva, os
resultados convergem para alguns estudos que revelam que a prática colaborativa
e o trabalho em equipe contribuem sobremaneira para qualificar a assistência
prestada [8,15]. A assistência ao usuário pode ser impactada positivamente
quando existe interconexão entre os agentes da equipe e quando há visão
compartilhada por eles [16].
Entrosamento, união e
sintonia são aspectos facilitadores para o trabalho em equipe, destacados como
presentes no cotidiano em foco neste estudo; vão ao encontro da literatura que
defende que o trabalho em equipe, a troca e a colaboração possibilitam melhoria
da qualidade da assistência ao usuário [15,17]. Relações interpessoais
adequadas e saudáveis, pautadas na boa comunicação e no respeito favorecem o
trabalho em equipe [18].
A relação de cuidado
e o ambiente terapêutico nas unidades de saúde são coadjuvantes no
desenvolvimento de trabalho colaborativo, ou seja, por meio da prática do
cuidado o trabalho colaborativo é exequível. O cuidado transforma ambientes, harmoniza relações e sensibiliza o lado humano de
cada sujeito [19].
Ressalta-se que o
trabalho colaborativo compreende a contribuição de cada profissional nos
cuidados de saúde, requer o reconhecimento de zonas de interferência nos papéis
desempenhados. Essas zonas propiciam colocar em destaque as competências, que
não são prerrogativas de cada profissional, mas, sim, direcionadas e
articuladas para um objetivo comum. A colaboração se apoia no reconhecimento da
igualdade de cada saber disciplinar e ao mesmo tempo na paridade, ou seja, no
respeito às diferenças [19-20].
Pode-se constatar
que, na unidade estudada, os participantes legitimam a integração da equipe
para que se mantenha a qualidade do cuidado prestado ao usuário. O trabalho é
realizado por diversas categorias profissionais, evidenciando a existência de
relação complementar e interdependente entre elas, no momento das ações de
cuidado.
Cabe destacar que,
embora os resultados e a literatura evidenciem os aspectos positivos do
trabalho colaborativo, destaca-se a importância do investimento coletivo,
institucional e profissional, para concretizar seus pressupostos, como algo
dinâmico, e em permanente (re) construção.
Os resultados indicam
que quando os profissionais atuam com conhecimentos e habilidades há ganhos para a equipe e usuário, representando um fator
fortalecedor para o trabalho em equipe. Tais aspectos positivos foram
identificados nos comportamentos evidenciados no cotidiano em foco, revelados
na categoria Realizar o cuidado em saúde.
Entretanto, para
parte dos participantes, na categoria Realizar o
cuidado em saúde, o atendimento aos usuários com trauma grave/moderado foi
considerado um dificultador do trabalho em equipe no
que se refere ao quadro clínico e complexidade das vítimas. Entende-se que,
embora a equipe esteja preparada para o atendimento, a complexidade/gravidade
dos casos é percebida como situação negativa, em virtude dos riscos inerentes
ao caso e seu prognóstico, além da necessidade de participação de diversos
profissionais na atenção ao usuário em situação de urgência traumática.
Apreende-se que, na
unidade de estudo, o atendimento às demandas imprevisíveis e instáveis requer
profissionais altamente capacitados, com amplo conhecimento científico, a fim
de embasar e direcionar as ações de cuidados direto e indireto ao usuário,
facilitar a integração entre os profissionais da equipe e setores, para tomar
decisões rápidas e acertadas e, principalmente, para diminuir riscos que
ameaçam a vida do usuário.
Salienta-se a
necessidade de olhar minucioso sobre a equipe de assistência ao usuário na
unidade hospitalar de urgências traumáticas, que tem como núcleo de competência
e responsabilidade o cuidado em saúde, utilizando meios e tecnologias
empregadas no objeto de trabalho para atender á sua complexa finalidade, que é
a produção de cuidados em situações agudas e graves de atendimento ao trauma
[21-22].
Destacada tanto na
categoria das situações Atendimento ao usuário com trauma grave/moderado quanto
na categoria dos comportamentos Realizar cuidado em
saúde, a comunicação deficitária, empobrecida, compromete o trabalho em equipe
e impacta negativamente na assistência prestada, prejudica a troca de
informações a respeito do usuário, interfere de maneira intensa o trabalho em
equipe, gera prejuízos para o usuário no que tange ao cuidado prestado, tendo
sido entendida como um dificultador para os
participantes.
A comunicação
ineficaz entre profissionais da equipe encontra eco em outros estudos que
evidenciaram que algumas equipes desenvolvem o seu trabalho na perspectiva
individual e fragmentada, tal questão pode decorrer do paradigma hierárquico
entre as distintas profissões e da hegemonia médica [23-24].
Entretanto,
pertinente destacar que, apesar dos resultados referentes aos problemas de
comunicação, as equipes que conseguem exercitar a comunicação efetiva e diária
entre seus componentes geram melhoria na assistência prestada, contribuindo,
inclusive para o desenvolvimento de clima adequado da própria equipe [16].
Assim, constata-se que a comunicação entre os integrantes da equipe é
compartilhada, com troca de informações, representa potente instrumento para
favorecer a colaboração e o desenvolvimento de práticas interprofissionais
[8,25].
Os profissionais
reconhecem que as consequências relacionadas à equipe, usuário e serviço dizem
mais respeito a aspectos que favorecem do que aos que dificultam o trabalho em
equipe, resultado bastante relevante, pois revela que os participantes entendem
o resultado do seu processo de trabalho como favorável, em especial dos
atendimentos realizados ao usuário e de como está organizado o trabalho nesse
cenário.
Diante
do exposto,
acredita-se que as referências positivas em
situações, comportamentos,
consequências podem decorrer de investimentos, em
organização do trabalho na
sala de urgências traumáticas, na inserção
do hospital no sistema de saúde, nas
ações de educação em serviço com
vistas à capacitação do capital humano a fim
de melhorar a sistematização do atendimento às
vítimas de trauma, bem como as articulações
com as diferentes esferas do sistema de saúde, em uma
perspectiva de
organização ampliada e não atendimento centrado no
hospital.
É desejável que o
trabalho da equipe na unidade hospitalar de urgências traumáticas, tenha como
centralidade, o cuidado integral ao usuário, de modo que as intervenções
desempenhadas visem atingir a finalidade de assistir/cuidar e melhorar o estado
de saúde deste indivíduo.
É inegável a
relevância que os participantes dão ao trabalho em equipe nessa unidade, em
especial às ações articuladas durante os atendimentos de alta complexidade.
Cabe destacar que a unidade de estudo sofre influência de política pública de
investimentos na atenção ao trauma, tanto do ponto de vista de organização de
sistema de saúde, quanto de ações de educação permanente. Assim, os resultados
positivos podem decorrer da forma de inserção do hospital na Rede de Urgência e
Emergência.
Os resultados
referentes às situações/comportamentos/consequências evidenciam predomínio de
fatores facilitadores para o trabalho em equipe no referido cenário. Os relatos
predominantemente positivos possibilitam dizer que há trabalho de equipe,
elaborado em conformidade com a finalidade do processo de trabalho em saúde na
unidade estudada, a equipe multiprofissional estabelece relações que favorecem
a realização de trabalho integrado e interdisciplinar, agregando as diferenças
entre os agentes e garantindo agilidade na assistência prestada às vítimas de
trauma. Existe entendimento de que a relação positiva entre os profissionais da
equipe de saúde corrobora na realização de ações conjuntas, que viabilizam
atendimento rápido e adequado, que repercute para o usuário.
Destaca-se como
aspectos facilitadores do trabalho em equipe a realização assistência adequada
e coerente às demandas dos usuários, ancorada em conhecimento e habilidades dos
agentes, pautada em parceria, respeito, entrosamento, harmonia e bom
relacionamento, o que contribui para se atingir o objetivo comum e qualificar a
assistência. Apesar disso, emergiram também os fatores dificultadores
para o trabalho em equipe, evidenciados, especialmente, na comunicação
deficiente, no individualismo de alguns profissionais da equipe, e na
imprevisibilidade e instabilidade do quadro clínico dos usuários.
A partir dos
resultados, entende-se que este estudo apresenta enfoque atualizado a respeito
do trabalho em equipe em unidade hospitalar de urgências traumáticas, sem,
contudo, esgotar o assunto. Acredita-se que ainda há muito a ser explorado,
considerando a magnitude e contemporaneidade dos agravos traumáticos.
Entende-se que o desafio que permanece diz respeito a tornar concreto no
cenário dos serviços de saúde a centralidade no
usuário, em uma perspectiva de cuidado integral, que seja construído coletiva e
colaborativamente com diferentes agentes que agregam
diversas competências, no estabelecimento de propostas terapêuticas, planos de
ação e objetivos comuns. Apesar de o estudo ter sido realizado em uma única
sala de trauma, de uma instituição hospitalar pública de ensino e, que isso
possa pesar como limitação, destaca-se que existem outros hospitais públicos de
ensino em contexto organizacional, assistencial e de inserção no sistema de
saúde bastante similares e os resultados deste estudo têm potencial para
ampliação de sua visibilidade e aplicação.