ARTIGO ORIGINAL

Aspectos facilitadores e dificultadores do trabalho em equipe em unidade de urgências traumatológicas

 

Ana Lidia de Castro Sajioro Azevedo, D.Sc.*, Ana Carolina Guidorizzi Zanetti, D.Sc.**, Ana Maria Laus, D.Sc.***, Denize Bouttlet Munari, D.Sc.****, Bethania Ferreira Goulart, D.Sc.*****, Larissa Roberta Alves******, Lucieli Dias Pedreschi Chaves, D.Sc.***

 

*Enfermeira, **Enfermeira, Professora Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, ***Enfermeira, Livre-docente, Professor Associado, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, ****Enfermeira, Professor Titular, Faculdade de Enfermagem e Nutrição, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, *****Professor Universidade do Triângulo Mineiro, Uberaba, ******Enfermeira, Mestranda, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto/SP

 

Recebido em 12 de março de 2018; aceito em 16 de julho de 2018.

Endereço de correspondência: Lucieli Dias Pedreschi Chaves, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Av. dos Bandeirantes, 3900, Bairro Monte Alegre, 14040-902 Ribeirão Preto SP, E-mail: dpchaves@eerp.usp.br; Ana Lidia de Castro Sajioro Azevedo: al_sajioro@hotmail.com; Ana Carolina Guidorizzi Zanetti: carolzan@eerp.usp.br; Ana Maria Laus: analaus@eerp.usp.br; Denize Bouttlet Munari: boutteletmunari@gmail.com; Bethania Ferreira Goulart: bethaniagoulart@yahoo.com.br; Larissa Roberta Alves: larissa.roberta.alves@usp.br

 

Resumo

O trabalho em equipe pode ser entendido como potente instrumento para favorecer a lógica de trabalho mais integrado, perspectiva coerente com a demanda do cenário hospitalar de urgências traumáticas. Objetivo: Analisar aspectos que facilitam e dificultam o trabalho em equipe em unidade hospitalar de urgências traumáticas. Métodos: Estudo descritivo, utilizando Técnica do Incidente Crítico, com dados qualitativos e quantitativos, em unidade hospitalar de urgências traumáticas, com a participação de profissionais da equipe de assistência ao paciente politraumatizado. Os dados foram coletados em entrevista semiestruturada individual. Para análise foi utilizada estatística descritiva e para relatos a análise de conteúdo. Resultados: Participaram 64 profissionais. Emergiram 107 situações / 614 comportamentos / 267 consequências. Houve predomínio de aspectos facilitadores do trabalho em equipe incluindo realização do cuidado com conhecimento e adequada interação entre agentes para o trabalho colaborativo. Dificultam o trabalho em equipe a comunicação deficiente e instabilidade do quadro clínico dos pacientes. Conclusão: Predomínio de facilitadores para trabalho em equipe revela cotidiano fortalecido para atender urgências e beneficiado por políticas públicas indutoras do cuidado ao trauma.

Palavras-chave: equipe de assistência ao paciente, centros de traumatologia, enfermagem, serviço hospitalar de emergência.

 

Abstract

Facilitating and difficult aspects of teamwork in a trauma emergency unit

Teamwork can be understood as a powerful instrument to encourage more integrated logic perspective consistent with the demand of hospital emergency traumatic scenario. Objective: To analyze aspects that facilitates and makes difficult the teamwork in a hospital unit of traumatic urgencies. Methods: A descriptive study, using a Critical Incident Technique, with qualitative and quantitative data, in a hospital unit of traumatic urgencies, with the participation of professionals from the polytraumatized patient care team. The data were collected in an individual semi-structured interview. Descriptive statistics were used for analysis and for content analysis. Results: 64 professionals participated. 107 situations / 614 behaviors / 267 consequences emerged. There was a predominance of facilitating aspects of teamwork, including realization of care with knowledge and adequate interaction between agents for collaborative work. Difficulty in teamwork is poor communication and instability of patients' clinical status. Conclusion: Predominance of facilitators for teamwork reveals daily strengthened to attend emergencies and benefited by public policies that induce trauma care.

Key-words: patient care team, trauma centers, nursing, emergency service, hospital.

 

Resumen

Aspectos facilitadores y dificultadores del trabajo en equipo en unidad de urgencias traumatológicas

El trabajo en equipo puede ser entendido como un potente instrumento para favorecer la lógica de trabajo más integrada, perspectiva coherente con la demanda del escenario hospitalario de urgencias traumáticas. Objetivo: Analizar aspectos que facilitan y dificultan el trabajo en equipo en unidad hospitalaria de urgencias traumáticas. Métodos: Estudio descriptivo, utilizando Técnica del Incidente Crítico, con datos cualitativos y cuantitativos, en unidad hospitalaria de urgencias traumáticas, con la participación de profesionales del equipo de asistencia al paciente politraumatizado. Los datos fueron recolectados en una entrevista semiestructurada individual. Para el análisis se utilizó estadística descriptiva y para relatos el análisis de contenido. Resultados: Participaron 64 profesionales. Se han emergido 107 situaciones / 614 comportamientos / 267 consecuencias. Hubo predominio de aspectos facilitadores del trabajo en equipo incluyendo realización del cuidado con conocimiento y adecuada interacción entre agentes para el trabajo colaborativo. Dificultan el trabajo en equipo la comunicación deficiente e inestabilidad del cuadro clínico de los pacientes. Conclusión: El predominio de facilitadores para trabajo en equipo revela cotidiano fortalecido para atender urgencias y beneficiado por políticas públicas inductoras del cuidado al trauma.

Palabras-clave: grupo de atención al paciente, centros traumatológicos, enfermería, servicio de urgencia en hospital.

 

Introdução

 

O modelo de atenção à saúde e o modelo de organização do trabalho tem estreita relação entre si e, a depender do modo como se configuram, podem favorecer ou não a prática do trabalho em equipe. Historicamente, enquanto o modelo de atenção se consolidou com ênfase na supremacia do saber médico e abordagem biologicista como eixo central para o cuidado, a organização do trabalho se conformou a partir dos pressupostos do método funcional, pautado na fragmentação e justaposição de ações parcelares dos profissionais da saúde [1-2], fato que repercute na organização hospitalar no tocante a existência de relações hierárquicas entre os profissionais que ali se inserem [3]. Tais questões perpassam e direcionam o arranjo organizativo do trabalho em saúde, não favorecem a articulação de ações e saberes de diferentes profissionais, vão em direção oposta à modalidade de trabalho em equipe, evidenciam o desafio da integração das equipes, além da formação sustentada no comportamento colaborativo e interdisciplinar [4].

Cabe ressaltar a existência de diversas abordagens conceituais e tipologias acerca do trabalho em equipe ancoradas na perspectiva do trabalho coletivo, pautadas na integração/interação dos agentes e na efetiva articulação dos saberes e fazeres em saúde, destacando-se as modalidades equipe integração e equipe agrupamento [5].

O trabalho em equipe é um processo complexo, no qual diferentes profissionais trabalham em conjunto compartilhando conhecimentos, valores e habilidades com vistas a melhorar o cuidado ao usuário [6]. Na prática, um aspecto relevante para que o trabalho em equipe se efetive é o relacionamento entre os seus agentes, de maneira a propiciar comportamento colaborativo e troca de informações entre os pares [7], a colaboração pode representar uma ferramenta para se alcançar o cuidado qualificado [8].

Concebe-se o trabalho em equipe como potente instrumento para favorecer a lógica de trabalho mais integrado, perspectiva coerente com a demanda do cenário hospitalar de urgências traumáticas. No referido contexto, a complexidade do cuidado, a premência de tempo para atendimento, que é determinante para o prognóstico dos casos, assim como a agilidade e adequação da tomada de decisões, requerem a integração de ações e saberes de diversos profissionais. Ademais, condições estruturais do serviço, a ambiência e a forma de organização do trabalho podem gerar facilidades e/ou dificuldades no desenvolvimento do trabalho em equipe, repercutindo, em última análise, na atenção integral ao usuário.

Nessa perspectiva, no Brasil, o Ministério da Saúde, considerando o perfil epidemiológico que aponta para crescimento da morbimortalidade por causas externas, tem investido fortemente para qualificar serviços de urgência e emergência, por meio de mudanças na formação e qualificação de pessoal, nas relações entre profissionais e usuários, na incorporação de avanços terapêuticos, tecnológicos e gerenciais, bem como na organização dos serviços de saúde, culminando com a indicação a Linha de Cuidado ao Trauma como componente prioritário da atenção na Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) [9].

Trata-se de política pública que norteia o atendimento e organização da atenção às urgências e emergências, que articula serviços de saúde desde a prevenção, o atendimento pré-hospitalar até a reabilitação, conforme a necessidade de cuidados dos pacientes, adequando a utilização de recursos de diferentes naturezas para oferecer assistência segura e qualificada e, dentre outros aspectos, dá ênfase ao trabalho em equipe multiprofissional.

As unidades hospitalares de urgências traumáticas, em função das especificidades dos atendimentos, da necessidade de tomada de decisão rápida e ágil, demandam integração das categorias profissionais em equipes de trabalho, desenvolvendo um conjunto de procedimentos/ações/intervenções para os quais utilizam seus conhecimentos e habilidades para atender as necessidades e demandas do usuário.

Nesse sentido, desponta o questionamento: Quais são os aspectos facilitadores e dificultadores do trabalho em equipe de saúde em unidade hospitalar de traumatologia? Assim, esse estudo justifica-se pelos aspectos demográficos e epidemiológicos que indicam a relevância das urgências traumáticas na sociedade brasileira e mundial, pelo conjunto de diretrizes políticas nacionais acerca da atenção às urgências que vem sendo aprimorado em ações de organização da atenção, pela complexidade das ações assistenciais e gerenciais desenvolvidas no âmbito da sala de trauma e que repercutem diretamente no cuidado ao usuário e, de modo muito especial, pelas especificidades nesse cenário no qual o trabalho da equipe é dinâmico, requer tomada de decisões rápidas e abordagem integral às necessidades dos usuários, para as quais o processo de trabalho em equipe pode favorecer o cuidado.

Considerando o exposto, esse estudo teve como objetivo de analisar aspectos que facilitam e dificultam o trabalho em equipe em unidade hospitalar de urgências traumáticas.

 

Material e métodos

 

Trata-se de estudo descritivo, empregando dados qualitativos. Utilizou-se a Técnica do Incidente Crítico (TIC) que, embasada em sete etapas [10], favorece a identificação de concepções, percepções e atitudes atinentes ao objeto da investigação, tendo potencial de utilização para a solução de problemas cotidianos [10-11].

Foram considerados conceitos e pressupostos do processo de trabalho em saúde [12], e seus componentes (objeto, finalidade, instrumentos e agentes) nortearam a análise dos resultados no que tange à dinâmica do trabalho em equipe em unidade de traumatologia.

O estudo foi desenvolvido no município de Ribeirão Preto/SP, Brasil, em um hospital público, de nível terciário, com 137 leitos gerais e 34 leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), referência para atendimento às urgências que demandam maior densidade tecnológica e tratamentos especializados. O setor de urgência é composto por sala de trauma que dispõe de cinco leitos, sala de estabilização clínica com cinco leitos monitorizados e boxes com vagas destinadas a atendimentos clínicos, além de uma vaga para isolamento respiratório. O atendimento foi desenvolvido por equipe multiprofissional, sendo vinte e nove auxiliares de enfermagem, vinte e dois enfermeiros, dezoito médicos, dezessete técnicos de enfermagem e cinco assistentes sociais, totalizando noventa e um profissionais. Considerando as especificidades da organização do cuidado e do trabalho, a política de incentivo a qualificação da atenção às urgências traumáticas, a sala de trauma foi selecionada como campo de estudo.

Foram critérios de inclusão no estudo, ter vínculo empregatício, estar no exercício da assistência às urgências traumáticas por ocasião da coleta de dados e atuar na sala de trauma há mais de seis meses, tempo considerado mínimo para conhecer a dinâmica da unidade. Estabeleceu-se como critérios de exclusão: profissionais que estivessem ausentes do trabalho por qualquer tipo de afastamento e os profissionais não localizados após três tentativas para agendamento de entrevista. Considerando o exposto, total de participantes potenciais, oitenta profissionais atenderam aos critérios de inclusão.

Os dados foram coletados em 2015 por meio de entrevista semiestruturada guiada por um roteiro, sendo este submetido à validação aparente e de conteúdo por três peritos na temática e em metodologia de pesquisa. Posteriormente, foi feito piloto com profissionais da equipe da sala de trauma que não participaram do estudo definitivo.

O roteiro de entrevista constava de duas partes, uma relativa à caracterização sociodemográfica e profissional do participante, a outra parte contemplava questões abertas, para relato de situações vivenciadas e/ou observadas, facilitadoras e dificultadoras para o trabalho em equipe na sala de trauma, os comportamentos e consequências decorrentes dessas situações, possibilitando a identificação dos Incidentes Críticos (IC) vivenciados naquele cenário.

As entrevistas foram realizadas individualmente, pela própria pesquisadora e uma auxiliar de campo, em local privativo, pré-estabelecido em acordo com o participante, na própria instituição de estudo e durante o horário de trabalho dos profissionais. Foram gravadas em aparelho digital, tiveram duração aproximada de 30 minutos. Destaca-se que a auxiliar de campo passou por capacitação, calibração e, durante todo processo, foi acompanhada pela pesquisadora.

As entrevistas foram transcritas na íntegra pela pesquisadora e receberam identificação numérica, para preservar sigilo e anonimato do participante. Em seguida, procedeu-se à extração dos ICs, separando-se as situações, os comportamentos e as consequências, compondo a tríade que caracteriza o IC. Os relatos, observados e/ou vivenciados pelos participantes, foram designados, por eles, com referência positiva ou negativa, o que foi entendido como facilitador ou dificultador para o trabalho em equipe, respectivamente.

A análise dos ICs foi fundamentada, a princípio, na estatística descritiva, que possibilita descrição e síntese dos dados [13], quantificando a frequência de citação pelos participantes, das situações, comportamentos e consequências. Cabe destacar que da mesma entrevista pode emergir mais de uma tríade, para cada situação podem ser identificados mais de um comportamento e consequência. Após, os relatos referentes às situações, comportamentos e consequências foram analisados com base na Análise de Conteúdo [14] em consonância com as etapas definidas por outra pesquisa [11]. A discussão dos dados ancorou-se nos pressupostos do referencial teórico adotado e no objeto do estudo. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP e da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP-USP) com Protocolo n° 503/2011.

 

Resultados

 

Os resultados fundamentaram-se na identificação dos ICs relatados, apresentando situações, comportamentos e consequências referentes ao trabalho em equipe na unidade de urgências traumáticas. Não foram incluídos relatos que representassem percepções, opiniões e/ou generalizações, pois isso não configura IC.

Considerando os oitenta profissionais que atenderam aos critérios de inclusão, a amostra deste estudo foi composta por 74 profissionais da equipe da unidade de urgências traumáticas, sendo 21 (32,8%) auxiliares de enfermagem, 17 (26,6%) enfermeiros, 13 (20,3%) técnicos de enfermagem, nove (14,1%) médicos e quatro (6,2%) assistentes sociais. Dentre os 16 que não participaram, quatro estavam afastados e os demais não compareceram após três agendamentos para entrevista.

Das 64 entrevistas realizadas, emergiram 107 situações consideradas IC, que envolveram 614 comportamentos e 267 consequências. As situações identificadas na análise dos ICs foram agrupadas em quatro categorias por similaridade de conteúdo (Tabela I).

 

Tabela I - Distribuição das categorias de situações referentes ao trabalho em equipe, relatadas pelos profissionais de saúde de unidade hospitalar de urgências traumáticas. Ribeirão Preto/SP, 2015.

 

 

A maior parte das situações (53%) tem referência positiva, entendidas como facilitadoras para o trabalho em equipe.

Na categoria Atendimento ao usuário com trauma grave/moderado a maioria das situações relatadas (63%) teve referências positivas, consideradas facilitadoras para o trabalho em equipe. Na percepção dos participantes o atendimento ao usuário com trauma grave/moderado representa o objeto principal do trabalho em equipe dessa unidade, que está preparada para interagir de modo articulado e dar resposta adequada às demandas previstas, como é possível verificar nas falas que seguem:

 

[...] recebemos um usuário idoso que teve várias fraturas de arcos costais até a fratura de esterno [...] Foi muito rápido o atendimento, o contratado estava junto, rapidinho conseguiram fazer um dreno de tórax, deu uma leve aliviada. Foi observando que esse usuário começou a dessaturar e a equipe toda estava articulada (E31).

 

Um menino afogado chegou já intubado. Já tinha sido regulado, avisamos a pediatria, foram recebendo, fazendo todas as medicações necessárias... mas o menino ficou parado bastante tempo. Teve uma interação muito boa porque já desceram três médicos da pediatria e mais os médicos do trauma. Tínhamos tudo pra receber um usuário pediátrico bem complexo (E22).

 

Nessa mesma categoria, destacam-se as situações com referências negativas (37%), consideradas como dificultadores para o trabalho em equipe, em aspectos relativos ao quadro clínico do usuário e implicações para o prognóstico, falta de informações prévias acerca dos usuários com trauma grave/moderado, bem como os casos encaminhados em vaga zero, como é possível identificar nas falas:

 

Uma criança afogada, o médico contratado não avisou, ninguém sabia que a criança estava chegando, o SAMU chegou na sala de trauma, não tínhamos maca pra atender, foi precário o atendimento no local, não tinha leito pra colocar o menino, a equipe tinha que ter sido avisada... (E19).

 

Recentemente, recebemos um usuário, vítima de uma batida de carro, não estávamos esperando, chegou sem ser avisado, somente intubada, sem acesso venoso, chocado. Providenciamos acesso e tudo muito rápido, a equipe estava reduzida, a sala estava cheia, não tínhamos vaga, não fomos avisados previamente dessa chegada desse usuário, veio de vaga zero, isso realmente prejudicou (E07).

 

Situações incluídas nas categorias Atendimento ao usuário com trauma leve, Atendimento a múltiplas vítimas e Atendimento aos familiares tiveram menor frequência nos relatos, evidenciando a organização do serviço e o preparo da equipe para atendimentos de maior gravidade, perspectiva condizente com a inserção do hospital na rede de atenção às urgências no município e região.

As situações vivenciadas desencadearam 614 comportamentos, que envolvem as inúmeras ações desenvolvidas pelos profissionais, diante dos casos atendidos e da complexidade de organização do trabalho na unidade. Entende-se que esse fato possa justificar o número de comportamentos ser muito superior ao número de situações relatadas, conforme é possível verificar na Tabela II.

 

Tabela II - Distribuição das categorias de comportamentos, referentes ao trabalho em equipe, relatados pelos profissionais de saúde de unidade hospitalar de urgências traumáticas. Ribeirão Preto/SP, 2015.

 

 

Quanto aos comportamentos houve maior frequência de comportamentos positivos (73%), entendidos como facilitadores para o trabalho em equipe.

A categoria Interagir com os agentes apresenta 75,5% de comportamentos com referências positivas, revelando que existem comportamentos pautados na parceria, respeito, entrosamento, harmonia e bom relacionamento, para alcançar objetivo comum e qualidade da ação entendidos como facilitadores para o trabalho em equipe. As falas a seguir exemplificam:

 

mobilizou muita gente, todas as equipes tiveram um trabalho em conjunto, dois atendimentos praticamente simultâneos, duas crianças muito graves, uma delas foi a óbito, posteriormente. Me marcou bastante e que nós conseguimos realmente trabalhar em equipe, entrou todo mundo, tanto o controle de leitos, o serviço social, a equipe de enfermagem, a equipe médica, o atendimento no final foi muito positivo (E56).

 

Eu acho que aqui no trauma a gente tem um atendimento muito bom, é muito rápido, cada um sabe o seu papel. O ringer já está lá postos, os tubos prontos e sabe o que vai colher. O setor de tomografia não vai chamar outro usuário, ele espera o trauma, é tudo muito sincronizado (E63).

 

A categoria Realizar cuidado em saúde agrupa 74,3% de comportamentos com referência positiva, inclui comportamentos/ações prioritariamente assistenciais para atender às demandas e necessidades imediatas dos usuários. Ressalta-se que esses comportamentos para prestar o cuidado adequado e coerente ancoram-se em conhecimentos e habilidades profissionais, evidenciando que os participantes reconhecem que tais ações favorecem o trabalho em equipe, como ilustram os relatos a seguir:

 

...o médico fez uma toracotomia na sala de trauma mesmo, é o auge do atendimento, não são todos que iam fazer uma toracotomia em determinada situação, a diferença realmente é o conhecimento! Tem aquele que sabe fazer, que já fez que tem a experiência (E01).

 

... nós já fomos para a sala de trauma, colocamos o usuário na maca, já fomos tirando a sua roupa, já monitorizando, os médicos chegaram e foram atendendo fazendo o que tinha que fazer e cada um veio puncionar veia, os médicos vieram avaliar as equipes que tinham que vir já vieram e foram atendendo (E30).

 

Apesar do predomínio de comportamentos com atribuições positivas, é oportuno destacar que, a categoria Realizar cuidado em saúde concentra 25,7% dos comportamentos negativos, incluindo ações que podem dificultar o trabalho em equipe, tais como aspectos relativos à falta de preparo dos profissionais para o cuidado, fragmentação das ações, fragilidades na comunicação, individualismo de alguns membros da equipe, imprevisibilidade e grande instabilidade do quadro clínico dos usuários, como ilustram as falas:

 

A criança foi a óbito. Acho que iria mesmo, de qualquer forma, ele já veio precário e ninguém sabia que esse usuário ia chegar, só o médico contratado, ele não passou nem para os residentes dele. Aí ele justificou: ‘Ah, é porque eu tava no centro cirúrgico’. Ele podia ter pedido pra alguém avisar, né. A falta de comunicação foi o que prejudicou o atendimento da criança (E19).

 

Não fomos avisados, não tinha material preparado, a maca ainda tava suja porque o usuário tinha acabado de sair, faltou comunicação entre o médico contratado e a sala de trauma, não foi avisado que a criança ia chegar porque veio direto do local, então, a regulação ligou, avisou pra ele que vinha a criança e ele não avisou, como veio direto do local a criança chegou, nem os residentes estavam sabendo. Aí esse é o ponto negativo porque a equipe multidisciplinar não tava sabendo de nada, porém, aqui o acesso é rápido (E20).

 

A análise permitiu ainda identificar um conjunto de 267 consequências referentes às situações voltadas à dinâmica do trabalho em equipe que estão apresentadas na Tabela III.

 

Tabela III - Distribuição das categorias de consequências, referentes ao trabalho em equipe, relatados pelos profissionais de saúde de unidade hospitalar de urgências traumáticas. Ribeirão Preto/SP, 2015.

 

 

As consequências são predominantemente positivas (58%), ou seja, facilitam o trabalho em equipe.

A categoria de consequências Relativas à equipe concentra 69,6% de relatos referidos como positivos, diz respeito às consequências referentes à realização de trabalho de maneira integrada, sincronizada garantindo agilidade da equipe na assistência prestada às vítimas de trauma, que viabiliza atendimento rápido e adequado, como ilustram as falas:

 

Nossa, o atendimento foi perfeito! Com aquela mãe, sabe? E aí o pai, o pessoal do serviço social, todo mundo trabalhou em conjunto aquele dia (E05).

 

...Esse foi um dos melhores atendimentos. Agilidade, a confiança, a tranquilidade, de rapidez, de conhecimento, de saber o que tava fazendo por toda a equipe que trabalhou junto... (E31).

 

Ainda no tocante as consequências, destaca-se a categoria Relativas ao serviço destaca-se porque quase todas os relatos foram negativos (95,7%), ou seja, dificultadoras do trabalho em equipe, incluindo aspectos relativos ao ambiente, às pessoas e até materiais necessários para o cuidado, como exemplificam as seguintes falas:

 

...Então, foi caótico porque, infelizmente, o número de funcionários na sala de trauma é pouco pra essa situação, mas, graças a Deus, como a gente é unido, saiu pessoal de três setores para dar o atendimento (E13).

 

Era um momento que a equipe ficou duas horas e meia pra tentar estabilizar o usuário, pra saber o que tava acontecendo e assim o atendimento ocorreu em cima de uma maca de ambulância, intubou, drenou, massageou numa maca de ambulância. Não tinha vaga, não tinha maca (E31).

 

Os resultados apresentados permitiram identificar que a dinâmica do trabalho em equipe em unidade de urgências traumáticas requer ações integradas, coletivas e articuladas entre os diversos profissionais, setores e serviços envolvidos para obter a finalidade do processo de trabalho nessa unidade, que é o cuidado integral às vítimas de traumas grave/moderado.

 

Discussão

 

Com base nos resultados, evidenciou-se que há predomínio de situações, comportamentos e consequências positivas, ou seja, aspectos facilitadores no que tange à dinâmica do trabalho em equipe, em uma unidade hospitalar de urgências traumáticas. Entende-se que tal fato pode ser decorrente de políticas públicas voltadas para esse cenário que estimulam repensar o processo de trabalho na perspectiva de trabalho coletivo e integrado, pressupondo equipes de profissionais que se proponham a oferecer atenção integral ao usuário, ou seja, pode ser reflexo positivo de políticas indutoras para a RUE.

A categoria de situações Atendimento ao usuário com trauma grave/moderado e a categoria de comportamentos Interagir com os agentes trazem à tona a relevância da articulação das ações e interação dos agentes, como ferramentas promotoras para o trabalho em equipe, na perspectiva da colaboração, com vistas à assistência integral qualificada. Isso revela que a colaboração e interação efetiva dos agentes facilita o trabalho em equipe ao usuário vítima de trauma em situação de urgência, aspecto muito relevante a um contexto de cuidado de abordagem multiprofissional.

Os profissionais entendem o trabalho como um processo coletivo, em que existe interdependência e complementaridade entre as ações dos diversos agentes da unidade, bem como em outras unidades e serviços intra e extra-hospitalares. Reconhecem como aspecto facilitador para o trabalho em equipe a integração dos agentes e a articulação das diferentes ações profissionais e dos serviços que envolvem a produção do cuidado na unidade, sendo assim, entendidas como aspectos imprescindíveis para se atingir a finalidade do processo de trabalho em urgências traumáticas, que é o cuidado em saúde.

Nessa perspectiva, os resultados convergem para alguns estudos que revelam que a prática colaborativa e o trabalho em equipe contribuem sobremaneira para qualificar a assistência prestada [8,15]. A assistência ao usuário pode ser impactada positivamente quando existe interconexão entre os agentes da equipe e quando há visão compartilhada por eles [16].

Entrosamento, união e sintonia são aspectos facilitadores para o trabalho em equipe, destacados como presentes no cotidiano em foco neste estudo; vão ao encontro da literatura que defende que o trabalho em equipe, a troca e a colaboração possibilitam melhoria da qualidade da assistência ao usuário [15,17]. Relações interpessoais adequadas e saudáveis, pautadas na boa comunicação e no respeito favorecem o trabalho em equipe [18].

A relação de cuidado e o ambiente terapêutico nas unidades de saúde são coadjuvantes no desenvolvimento de trabalho colaborativo, ou seja, por meio da prática do cuidado o trabalho colaborativo é exequível. O cuidado transforma ambientes, harmoniza relações e sensibiliza o lado humano de cada sujeito [19].

Ressalta-se que o trabalho colaborativo compreende a contribuição de cada profissional nos cuidados de saúde, requer o reconhecimento de zonas de interferência nos papéis desempenhados. Essas zonas propiciam colocar em destaque as competências, que não são prerrogativas de cada profissional, mas, sim, direcionadas e articuladas para um objetivo comum. A colaboração se apoia no reconhecimento da igualdade de cada saber disciplinar e ao mesmo tempo na paridade, ou seja, no respeito às diferenças [19-20].

Pode-se constatar que, na unidade estudada, os participantes legitimam a integração da equipe para que se mantenha a qualidade do cuidado prestado ao usuário. O trabalho é realizado por diversas categorias profissionais, evidenciando a existência de relação complementar e interdependente entre elas, no momento das ações de cuidado.

Cabe destacar que, embora os resultados e a literatura evidenciem os aspectos positivos do trabalho colaborativo, destaca-se a importância do investimento coletivo, institucional e profissional, para concretizar seus pressupostos, como algo dinâmico, e em permanente (re) construção.

Os resultados indicam que quando os profissionais atuam com conhecimentos e habilidades há ganhos para a equipe e usuário, representando um fator fortalecedor para o trabalho em equipe. Tais aspectos positivos foram identificados nos comportamentos evidenciados no cotidiano em foco, revelados na categoria Realizar o cuidado em saúde.

Entretanto, para parte dos participantes, na categoria Realizar o cuidado em saúde, o atendimento aos usuários com trauma grave/moderado foi considerado um dificultador do trabalho em equipe no que se refere ao quadro clínico e complexidade das vítimas. Entende-se que, embora a equipe esteja preparada para o atendimento, a complexidade/gravidade dos casos é percebida como situação negativa, em virtude dos riscos inerentes ao caso e seu prognóstico, além da necessidade de participação de diversos profissionais na atenção ao usuário em situação de urgência traumática.

Apreende-se que, na unidade de estudo, o atendimento às demandas imprevisíveis e instáveis requer profissionais altamente capacitados, com amplo conhecimento científico, a fim de embasar e direcionar as ações de cuidados direto e indireto ao usuário, facilitar a integração entre os profissionais da equipe e setores, para tomar decisões rápidas e acertadas e, principalmente, para diminuir riscos que ameaçam a vida do usuário.

Salienta-se a necessidade de olhar minucioso sobre a equipe de assistência ao usuário na unidade hospitalar de urgências traumáticas, que tem como núcleo de competência e responsabilidade o cuidado em saúde, utilizando meios e tecnologias empregadas no objeto de trabalho para atender á sua complexa finalidade, que é a produção de cuidados em situações agudas e graves de atendimento ao trauma [21-22].

Destacada tanto na categoria das situações Atendimento ao usuário com trauma grave/moderado quanto na categoria dos comportamentos Realizar cuidado em saúde, a comunicação deficitária, empobrecida, compromete o trabalho em equipe e impacta negativamente na assistência prestada, prejudica a troca de informações a respeito do usuário, interfere de maneira intensa o trabalho em equipe, gera prejuízos para o usuário no que tange ao cuidado prestado, tendo sido entendida como um dificultador para os participantes.

A comunicação ineficaz entre profissionais da equipe encontra eco em outros estudos que evidenciaram que algumas equipes desenvolvem o seu trabalho na perspectiva individual e fragmentada, tal questão pode decorrer do paradigma hierárquico entre as distintas profissões e da hegemonia médica [23-24].

Entretanto, pertinente destacar que, apesar dos resultados referentes aos problemas de comunicação, as equipes que conseguem exercitar a comunicação efetiva e diária entre seus componentes geram melhoria na assistência prestada, contribuindo, inclusive para o desenvolvimento de clima adequado da própria equipe [16]. Assim, constata-se que a comunicação entre os integrantes da equipe é compartilhada, com troca de informações, representa potente instrumento para favorecer a colaboração e o desenvolvimento de práticas interprofissionais [8,25].

Os profissionais reconhecem que as consequências relacionadas à equipe, usuário e serviço dizem mais respeito a aspectos que favorecem do que aos que dificultam o trabalho em equipe, resultado bastante relevante, pois revela que os participantes entendem o resultado do seu processo de trabalho como favorável, em especial dos atendimentos realizados ao usuário e de como está organizado o trabalho nesse cenário.

Diante do exposto, acredita-se que as referências positivas em situações, comportamentos, consequências podem decorrer de investimentos, em organização do trabalho na sala de urgências traumáticas, na inserção do hospital no sistema de saúde, nas ações de educação em serviço com vistas à capacitação do capital humano a fim de melhorar a sistematização do atendimento às vítimas de trauma, bem como as articulações com as diferentes esferas do sistema de saúde, em uma perspectiva de organização ampliada e não atendimento centrado no hospital.

É desejável que o trabalho da equipe na unidade hospitalar de urgências traumáticas, tenha como centralidade, o cuidado integral ao usuário, de modo que as intervenções desempenhadas visem atingir a finalidade de assistir/cuidar e melhorar o estado de saúde deste indivíduo.

É inegável a relevância que os participantes dão ao trabalho em equipe nessa unidade, em especial às ações articuladas durante os atendimentos de alta complexidade. Cabe destacar que a unidade de estudo sofre influência de política pública de investimentos na atenção ao trauma, tanto do ponto de vista de organização de sistema de saúde, quanto de ações de educação permanente. Assim, os resultados positivos podem decorrer da forma de inserção do hospital na Rede de Urgência e Emergência.

 

Conclusão

 

Os resultados referentes às situações/comportamentos/consequências evidenciam predomínio de fatores facilitadores para o trabalho em equipe no referido cenário. Os relatos predominantemente positivos possibilitam dizer que há trabalho de equipe, elaborado em conformidade com a finalidade do processo de trabalho em saúde na unidade estudada, a equipe multiprofissional estabelece relações que favorecem a realização de trabalho integrado e interdisciplinar, agregando as diferenças entre os agentes e garantindo agilidade na assistência prestada às vítimas de trauma. Existe entendimento de que a relação positiva entre os profissionais da equipe de saúde corrobora na realização de ações conjuntas, que viabilizam atendimento rápido e adequado, que repercute para o usuário.

Destaca-se como aspectos facilitadores do trabalho em equipe a realização assistência adequada e coerente às demandas dos usuários, ancorada em conhecimento e habilidades dos agentes, pautada em parceria, respeito, entrosamento, harmonia e bom relacionamento, o que contribui para se atingir o objetivo comum e qualificar a assistência. Apesar disso, emergiram também os fatores dificultadores para o trabalho em equipe, evidenciados, especialmente, na comunicação deficiente, no individualismo de alguns profissionais da equipe, e na imprevisibilidade e instabilidade do quadro clínico dos usuários.

A partir dos resultados, entende-se que este estudo apresenta enfoque atualizado a respeito do trabalho em equipe em unidade hospitalar de urgências traumáticas, sem, contudo, esgotar o assunto. Acredita-se que ainda há muito a ser explorado, considerando a magnitude e contemporaneidade dos agravos traumáticos. Entende-se que o desafio que permanece diz respeito a tornar concreto no cenário dos serviços de saúde a centralidade no usuário, em uma perspectiva de cuidado integral, que seja construído coletiva e colaborativamente com diferentes agentes que agregam diversas competências, no estabelecimento de propostas terapêuticas, planos de ação e objetivos comuns. Apesar de o estudo ter sido realizado em uma única sala de trauma, de uma instituição hospitalar pública de ensino e, que isso possa pesar como limitação, destaca-se que existem outros hospitais públicos de ensino em contexto organizacional, assistencial e de inserção no sistema de saúde bastante similares e os resultados deste estudo têm potencial para ampliação de sua visibilidade e aplicação.

 

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