EDITORIAL
Lembrando de Trótula de Salerno no mês da mulher: a primeira mulher ginecologista?
Benedito Geraldes Neto*
*Médico
e historiador
Endereço
para correspondência:
AOS 02 bloco E apto 503 Brasilia
DF, E-mail: bgneto@gmail.com, blog Xarope de Letrinhas: https://netogeraldes.blogspot.com.br/
Encaminho
esta narrativa de meu irmão Benedito Geraldes Neto, para ser publicado como editorial
na Revista Enfermagem Brasil, pela pertinência da temática no mês de março - mês
da mulher. Neto estudou medicina na década de 70 na Universidade de Brasília - UNB.
Especializou-se em dermatologia, fez mestrado no Programa de Pós-Graduação stricto
sensu em Ciências da Saúde (eixo temático Medicina Interna), com a dissertação Das
Sangrias à Penicilina: O Saber Médico e o Tratamento da Sífilis. Após a aposentadoria
graduou-se em História pela UNB. É um apaixonado pesquisador da História da Medicina
e um escritor notável, o que permitiria que já tivesse alcançado todos os títulos
acadêmicos, mas o excesso de humildade e exagerada autocrítica o impediram de fazer
carreira e até de enviar seus artigos para publicação no meio acadêmico. Muitos
de seus escritos, como o desse editorial , estão no seu
blog Xarope de Letrinha - recheado de histórias de sua infância, de Bálsamo/SP,
sua cidade natal; de seu time do coração (cujo acrônimo é SPFC) e de histórias que
narra como um poeta sobre a evolução da medicina. Convido-os à leitura desse editorial
e de seu blog https://netogeraldes.blogspot.com
Zaida Aurora Sperli Geraldes Soler
Trótula de Salerno - Fonte Wikipedia
Trótula de Salerno é uma dessas
personagens históricas fascinantes. Sua vida está intimamente ligada à Escola Médica
de Salerno, cidade situada no sul da atual Itália, que foi primeiro centro de ensino
de medicina da era medieval, existindo no mínimo desde o século IX. Foi também a
primeira instituição cultural a não ser controlada pela Igreja. Um dos distintivos
da Schola Medica Salernitana
foi ter admitido mulheres como alunas e como mestres. Foi nesse contexto que Trótula, também conhecida como Trótula
de Ruggiero, referência à sua família de nascimento, se destacou entre as Mulieres Salernitaneae.
Sua vida é pouco conhecida,
mas é provável que tenha vivido em meados do século XI, conforme algumas referências.
São atribuídas a ela as obras: De passionibus mulierum ante, in et post partum, De curis mulierum e De ornatu mulierum, escritos em latim
e que circularam e foram bem conhecidos na Idade Média na forma de manuscritos.
Com a invenção da imprensa, esses textos foram publicados e influenciaram a formação
de muitos médicos do Renascimento.
Na introdução do De passionibus mulierum ante, in et post partum, Trótula aponta que sua condição de mulher lhe permitia maior aproximação e confiança para o tratamento das mulheres. Nesse livro de 60 capítulos ela aborda e indica tratamentos para distúrbios ginecológicos, problemas da gravidez e parto, cuidados com o recém-nascido, higiene e até sobre a sexualidade feminina. Ela tinha um pensamento próprio sobre as mulheres que não engravidavam, ao apontar que muitas vezes o defeito estava no homem, numa época em que a culpa era sempre feminina. Nos seus escritos em De ornatos mulieum ela contempla cuidados com a pele e descreve técnicas e tratamentos para o embelezamento feminino.
Essas obras foram copiadas,
traduzidas e bastante difundidas durante o período medieval. Diversos documentos
da época fazem referências à médica de Salerno, ressaltando seu saber, seu prestígio
e sua influência. Sua fama persistiu certamente até o século XVI, quando historiadores
e escritores do Renascimento, na sua visão misógina, passaram a contestar a autoria
das obras referidas, atribuindo-as a escritores do sexo masculino e até questionando
a própria existência de Trótula. Aliás, a partir do Renascimento
é que foi criada a ideia de que a Idade Média foi marcada pelo obscurantismo e atraso.
Hoje, a historiografia
parece tender a reabilitar o papel e a existência de Trótula
de Salerno como médica e mestra da medicina e, com o perdão do anacronismo, a primeira
ginecologista. Além da sábia de Salerno, mulheres como Thomasia
Mattheo, Frascesca de Romana,
Constanza Calenda, Rebeca Guarda
entre outras são citadas na historiografia como titulares da arte da medicina medieval.
A mulher esteve alijada
da História por séculos. Trótula de Rugiero e de Salerno ajudou a mostrar que não foram poucas as
representantes do sexo feminino que tiveram papel ativo na construção cultural do
período medieval, pelo menos em alguns espaços como a Escola de Salerno e é mais
uma evidência de que a Idade Média estava longe de ser a tão propalada “idade das
trevas”.
Referências