ARTIGO ORIGINAL

Vivências de mães de crianças com transtorno de espectro autista: estudo fenomenológico

 

Anna Maria de Oliveira Salimena, D.Sc.*, Daniela de Cássia Sabará Rendón**, Thaís Vaconselos Amorim, D.Sc.***

 

*Professora do Programa de Pós-graduação Mestrado em Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora/MG, **Enfermeira, Mestranda Programa de Pós-graduação Mestrado em Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG, ***Enfermeira, Professora da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG

 

Recebido em 2 de abril de 2018; aceito em 11 de julho de 2018.

Endereço para correspondência: Anna Maria de Oliveira Salimena, Rua Marechal Cordeiro de Faria, 172, 36 081-330 Juiz de Fora MG, E-mail: annasalimena@terra.com.br; danisabara@ahoo.com.br; thaisamorim80@gmail.com

 

Resumo

Objetivo: Desvelar a vivência de mães de filhos com transtorno de espectro autista. Métodos: Estudo de natureza qualitativa balizado no referencial teórico-filosófico-metodológico de Martin Heidegger, realizado em um município da zona da mata de Minas Gerais, com 14 mães de crianças diagnosticadas, que nos meses de janeiro/março de 2016 fizeram seus depoimentos em encontros mediados pela empatia. Resultados: Da compreensão emergiram as Unidades de Significado: Difícil aceitar o diagnóstico e A não aceitação da família e da sociedade. Desvelou-se que o ser-aí-mãe-de-autista parte da facticidade para a impropriedade e mostra-se inautêntica, pois deixa de ser um indivíduo e transforma-se na “mãe do autista”. Conclusão: No desvelamento dos sentidos percebeu-se a dificuldade do cotidiano de ser mãe de autista. Sugere-se a realização de novos estudos com enfoque direcionado aos enfermeiros e profissionais de saúde, pois é preciso repensar as políticas públicas para alcancçar essa parcela da população de maneira mais eficiente e inclusiva.

Palavras-chave: transtorno autístico, relações mãe-filho, enfermagem.

 

Abstract

Living of mothers of children with disorder of autistic spectrum: phenomenological study

Objective: To uncover the experience of mothers of children with autism spectrum disorder. Methods: A qualitative study based on the theoretical-philosophical-methodological reference of Martin Heidegger, carried out in a municipality in the forest area of Minas Gerais, with 14 mothers of diagnosed children, who in January/March 2016 made their statements in encounters mediated by empathy. Results: From understanding emerged the Units of Significance: Difficult to accept diagnosis and non-acceptance of family and society. It has been revealed that being-there-autistic-mother starts from the facticity to impropriety and is inauthentic because she ceases to be an individual and becomes the "autistic mother". Conclusion: In the unveiling of the senses it was noticed the difficulty of the daily life of being autistic mother. It is suggested to carry out new studies with a focus on nurses and health professionals, since it is necessary to rethink public policies in order to reach this part of the population in a more efficient and inclusive manner.

Key-words: autistic disorder, mother-child relations, nursing.

 

Resumen

Vivencias de madres de niños con transtorno de espectro autista: estudio fenomenológico

Objetivo: Desvelar la vivencia de madres de hijos con trastorno de espectro autista. Métodos: Estudio de naturaleza cualitativa balizado en el referencial teórico-filosófico-metodológico de Martin Heidegger, realizado en un municipio de la zona de la mata de Minas Gerais, con 14 madres de niños diagnosticados, que en los meses de enero y marzo de 2016 hicieron sus testimonios en los encuentros mediados por la empatía. Resultados: De la comprensión surgieron las Unidades de Significado: Difícil aceptar el diagnóstico y La no aceptación de la familia y de la sociedad. Se desveló que el ser-ahí-madre-de-autista parte de la facticidad para la impropiedad y se muestra inauténtica, pues deja de ser un individuo y se transforma en la "madre del autista". Conclusión: En el desvelamiento de los sentidos se percibió la dificultad del cotidiano de ser madre de autista. Se sugiere realizar nuevos estudios con enfoque direccionado a los enfermeros y profesionales de salud, pues es preciso repensar las políticas públicas para alcanzar esa parte de la población de manera más eficiente e inclusiva.

Palabras-clave: trastorno autístico, relaciones madre-hijo, enfermería.

 

Introdução

 

A mudança na vida da mulher com a maternidade é algo conhecido e comprovado. Há diversidade de sentimentos desde a gestação que vão da alegria da maternidade ao medo e da ansiedade pelo parto atermo ou prematuro, pois seu maior desejo é o de acariciar e tomar nos seus braços seu filho perfeito e saudável [1]. Vale ressaltar que a maternidade não se inicia apenas com a chegada do bebê e sim desde as primeiras relações e identificações como mulher nas brincadeiras infantis, na adolescência, no desejo de ter um filho até a gravidez em si [2].

Como as atitudes maternas, bem como o papel de mãe tem se modificado com o decorrer de nossa história, podemos pensar a maternidade como um comportamento social que se ajusta a um determinado contexto sócio histórico. Mas, o vínculo mãe-bebê ainda é uma construção que começa no ventre materno e depende tanto da saúde psíquica da mãe quanto das pré-disposições do bebê [3]. E a experiência de ser mãe ou pai de criança com espectro autista mostra-se ainda mais desafiadora e complexa, uma vez que esse filho pode ser para sempre total ou parcialmente dependente dos pais ou de outro alguém.

O Transtorno de Espectro Autista (TEA) afeta dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo e no Brasil, embora não se tenham ainda dados estatísticos oficiais, estima-se que cerca de 10% a 20% de crianças e adolescentes sofram de transtornos mentais, que cerca de 3% a 4% desses transtornos necessitam de tratamentos intensivos [4]. O transtorno do espectro do autismo, também conhecido por autismo, é um dos males mais frequentes definido pela presença de sintomas que começam na infância, percebidos tipicamente antes dos três anos de idade, e que comprometem a capacidade do indivíduo nas suas funções diárias. Tais sintomas são reconhecidos como os déficits sociais e de comunicação e comportamentos fixos e repetitivos [5].

Apesar disso, no Brasil ainda são encontrados poucos estudos sobre a temática, incluindo os modos de como se dá o processo de busca terapêutica, que consiste no processo de escolha, avaliação e adesão a determinadas formas de tratamento de mães de crianças com autismo. Há também um reduzido número de pesquisas e publicações sobre os impactos do autismo nas famílias, no que diz respeito à possivel desestruturação que esse transtorno pode provocar nas famílias das crianças afetadas. Isto representa uma importante lacuna no atendimento à saúde da mulher e infantil, pois com as particularidades enfrentadas por mães e familiares de crianças com autismo desconhecidas, diminui o conhecimento necessário para se desenvolver um planejamento de atenção e cuidados voltados às demandas e necessidades da criança e sua família [6].

Pesquisa [7] indica que essas mães enfrentam dificuldades nas trajetórias percorridas em busca do diagnóstico do filho, peregrinam pelos serviços de saúde, passam por diversos profissionais e, em muitos casos, a confirmação diagnóstica ocorre tardiamente. Portanto, é importante que os profissionais de saúde, em especial os enfermeiros, considerem as percepções maternas sobre o crescimento e desenvolvimento infantil, podendo favorecer para um diagnóstico precoce.

O profissional enfermeiro pode colaborar de forma positiva para o diagnóstico e acompanhamento da criança autista por meio de observações comportamentais de crianças mediante a consulta para analisar o crescimento e o desenvolvimento, como também pode auxiliar os pais dando apoio e informando-os quanto aos desafios e procedimentos assistenciais que os mesmos utilizarão no processo de cuidar da criança com autismo. Para tal é necessária a abertura de espaço para discussão da assistência de enfermeiros à pessoa com autismo e sua família, colaborando para um diagnóstico da realidade local, identificando as fragilidades, proporcionando a oportunidade de se (re)pensar a prática profissional. Ressalta-se a escassez em material bibliográfico acerca dessa temática na área da saúde, talvez por ser revestido de tabus e estigmatização [8].

Destaca-se ainda que a ligação entre o enfermeiro, a pessoa autista e os seus familiares é de fundamental importância, uma vez que no desempenhar do trabalho da enfermagem deve-se priorizar um olhar cuidadoso, desprovido de preconceitos, atento às necessidades do outro e ao seu sofrimento. Na maioria das vezes haverá a dificuldade de expressão oral por parte do autista, cabendo ao enfermeiro a escuta e prestação de assistência diferenciada. É necessário ler as entrelinhas, olhar além do que é visível aos olhos, pois saber cuidar implica em preocupar-se, atentar-se ao outro.

Diante dos resultados de pesquisa realizada sobre o conhecimento dos enfermeiros sobre o TEA, percebeu-se um grande déficit de conhecimento desses profissionais acerca desse transtorno, haja vista as poucas características relatadas pelos mesmos sobre o tema. Isto pode ser compreendido pelo fato de que o autismo apresenta uma grande variedade de sinais e sintomas, além de suas variadas etiologias. Porém, os resultados também sugerem que as grades curriculares da área de Enfermagem pouco trabalham o tema ou não o expõem. Percebeu-se também um discurso sobre a importância de planejar ações que atendam às necessidades da criança e de seus familiares, porém não foi citada nenhuma ação realizada na prática pelos mesmos que abordassem o referido assunto [8].

Na atenção terciária, os enfermeiros também devem estar atentos ao fato de que as crianças com TEA são mais propensas a usar cuidados de saúde que aqueles que não têm. Eles também podem ter convulsões, aumento das alergias, complicações gastrointestinais e outras complicações médicas [9]. Outro estudo indicou que as crianças com TEA permanecem 1,5 vezes mais tempo em ambiente hospitalar do que aqueles sem a desordem [10].

Sendo assim, conclui-se que há necessidade em familiarizar a equipe de enfermagem com o TEA e criar recursos para tratamento de uma criança com essa desordem. Essas ações previamente planejadas e adequadamente aplicadas podem diminuir os níveis de ansiedade tanto da equipe de enfermagem, quanto da criança e da família, contribuindo também para a segurança durante a hospitalização. Exemplificando, se a equipe de saúde do hospital está ciente dos elementos que podem desencadear uma explosão ou comportamento agressivo, podem ser tomadas medidas para evitar os comportamentos autoprejudiciais da criança e melhorar a segurança da pessoa [11]. A família ou cuidador deve também ser capaz de informar ao enfermeiro sobre os modos com que se deve falar com a criança [9].

Ao perceber a lacuna nos estudos da enfermagem quanto à assistência à família, em especial à mãe de autistas, emergiu como objetivo desvelar a vivência de mães de filhos com transtorno de espectro autista.

 

Material e métodos

 

Pesquisa de natureza qualitativa, descritiva na abordagem fenomenológica ancorada no referencial teórico, filosófico e metodológico de Martin Heidegger [12]. O estudo teve como cenário uma cidade da zona da mata mineira.

 As entrevistas foram realizadas com 14 mães de crianças com transtorno de espectro autista, nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2016, em locais e horários previamente combinados com as participantes. Ocorreram encontros em suas casas e em locais públicos, com privacidade adequada para o discorrer dos depoimentos.

A pesquisadora foi formalmente apresentada a essas mães em um dos encontros realizados por grupo de mulheres para discutir e organizar uma associação que venha, no futuro, a atender essas famílias. Recolheu-se o contato telefônico de cada mãe que se interessou em participar do estudo e, posteriormente, agendou-se o encontro em local e hora mais adequados a cada depoente. No caminhar do tempo, algumas desistiram de participar e outras, após sua participação, apresentaram suas conhecidas e assim as entrevistas foram sendo realizadas.

O número de participantes não foi predeterminado, pois em estudos fenomenológicos, não se estabelece um quantitativo, mas busca-se a essência do que se mostra, adequando a suficiência de entrevistas ao constatar que a compreensão dos significados das falas originárias foi alcançada, considerando o objeto em estudo. Para os encontros fenomenológicos utilizou-se como critérios de inclusão ser mulher, maior de 18 anos e mãe de filho com o diagnóstico de transtorno de espectro autista e critério de exclusão as mães que não tivessem condições psicológicas para prestarem depoimento sobre sua vivência.

A identificação das depoentes deu-se por animais que passam pelo processo de metamorfose. Essa escolha, posteriormente definida, ocorreu pelo fato de que todas as depoentes, durante ou após o término da entrevista, afirmaram que suas vidas transformaram-se de maneira significativa após a maternidade de seus filhos com o espectro autista. E assim configuraram-se os seguintes codinomes: Cigarra, Louva-a-Deus, Libélula, Efêmera, Abelha, Vagalume, Formiga, Joaninha, Vespa, Borboleta, Donzelinha, Esperança, Mariposa, Lagarta.

Durante a realização das entrevistas abertas audiogravadas para manter a fidedignidade dos depoimentos, foi observada atenciosamente a comunicação não verbal das depoentes, expressa em gestos ou outras manifestações, registradas posteriormente em diário de campo. Após transcrição dos depoimentos, norteados pela questão: Como é para você o dia a dia com o diagnóstico de autismo de seu filho. Foram realizadas leituras atentivas para evidenciar as estruturas essenciais e posterior organização das unidades de significação que culminaram no desvelamento dos sentidos para as mães na vivência com o diagnóstico de transtorno espectro autista de seus filhos.

O projeto de pesquisa foi encaminhado a Plataforma Brasil para análise. Deferido no Parecer de número 1254423/2015 pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos [13].

 

Resultados e discussão

 

Foram entrevistadas 14 mães de crianças com transtorno de espectro autista, com faixa etária de 25 a 69 anos, sendo oito casadas e as demais solteiras. O número de filhos variou de um a três. Todas com um filho autista com idade que variou de três a 37 anos. A maioria de religião católica, quatro com nível de escolaridade ensino superior e dez com nível médio. Quatro trabalhando fora do lar e as outras só em casa e cuidando dos filhos.

Da reflexão inicial sobre o que foi expresso nos depoimentos foi possível destacar as estruturas essenciais/significativas e agrupá-las em Unidades de Significação, intituladas com trechos das falas das próprias participantes. Sendo assim, a vivência com o diagnóstico de transtorno de espectro autista de seu filho significou que: É difícil aceitar o diagnóstico e A não aceitação da família e da sociedade.

 

É difícil aceitar o diagnóstico

 

As depoentes relembraram o momento do diagnóstico de TEA. Relataram que não se sentiam preparadas para cuidar daquela criança e vivenciaram momentos de luto pela criança perfeita que não existia. Sentiram-se enlouquecidas, e, nesse movimento, houve situações em que não sentiram o apoio do marido e da família. Com o passar do tempo, afirmaram que os sentimentos negativos diminuiram ou deixaram de existir. Todavia, ao deparar-se com outras crianças sem esse transtorno, acabam comparando o comportamento de seus filhos e voltam a sentir-se incomodadas com o comportamento de seus filhos.

Sinalizam sobre a exaustão física e psicológica em que se encontram, sugerindo e até mesmo afirmando que sentem a necessidade de apoio psicológico para conseguirem continuar convivendo. Apesar da angústia e sofrimento do momento do diagnóstico, afirmaram que o desafio maior são a não-aceitação da família e o da sociedade por falta de conhecimento, conforme expresso nos recortes em seus depoimentos:

 

[...] A primeira instância eu tive um choque muito grande, na hora foi como se fosse uma descarga elétrica, e eu desabei [...] (Cigarra).

 

[...] Meu Deus, o que eu faço agora, o meu filho é especial. Porque a gente não sonha em ter uma criança especial, ninguém espera. Quando a gente tá grávida, a gente quer uma criança que venha com saúde. Só que quando a gente descobre que não é, o primeiro sentimento é: ele tem defeito[...] (Louva-a-deus).

 

[...] quando eu tive o diagnóstico de autismo da G. foi um baque. Porque a gente sabe que quando você lida com uma deficiência física é muito mais fácil de você superar do que os obstáculos de algo que ainda está sendo estudado [...] (Libélula).

 

[...] No começo foi muito difícil porque a gente não aceita. A gente quer um filho perfeito, a gente quer um filho saudável, faça tudo o que a gente pensa, ordena. Foi difícil da gente aceitar e falar a minha filha é autista [...] (Efêmera).

 

[...] Assim que a gente recebe o diagnóstico não deve fazer a negação, mas não negar é difícil, vai entrar naquele luto, mas esse luto é importante porque aquele filho perfeito que nós idealizamos e que todo mundo quer e não é errado isso. E ele não existe, existe uma pessoa com deficiência, um cidadão e que você precisa atuar com firmeza [...] (Abelha).

 

[...] Quando veio o diagnóstico de autismo eu não tinha a menor noção do que era, então eu fiquei louca. A verdade é essa, eu pirei. Que criança era aquela comigo e não sabia o que eu tinha que fazer. O que eu tinha que conviver. Então foi muito dramático, aí a família toda pira junto [...] (Vagalume).

 

[...] No começo foi muito difícil, mas eu acho que toda mãe, ao saber dá um baque [...] (Joaninha).

 

[...] É muito difícil. A gente sofre muito. Eu passei por isso tudo sozinha. Ainda tenho muita dificuldade [...] (Borboleta).

 

[...] Quando eu recebi o diagnóstico eu me achava boba porque os vizinhos me perguntavam que meu filho tinha e eu não tinha diagnóstico; eu olhava pra ele, eu precisava de um diagnóstico. Já passei daquela angústia [...] (Vespa)

 

[...] A dificuldade maior da gente que é mãe é o diagnóstico e pronto acabou [...] (Donzelinha).

 

[...] No começo foi complicado. Foram 15 dias de um luto vivo [...](Mariposa).

 

[...] Hoje em dia posso falar com certeza que é uma coisa tranquila, não é um bicho de sete cabeças, mas quando o médico falou [...] (Lagarta).

 

Com o diagnóstico perceberam a possibilidade de visualizar o mundo de uma nova maneira, pois como seus filhos agem vem possibilitando novas experiencias de vida. O diagnóstico de TEA trouxe para suas vidas uma reviravolta de sentimentos, angústias e preocupações, mas também possibilitou uma nova maneira de ser, mais sensível, paciente, compassiva, despertando em algumas a sensação de liberdade de seus medos sentindo-se mais humanas [14].

Neste contexto, a presença projeta seu ser para possibilidades [15]. O diagnóstico de TEA aparece como facticidade na vida do ser-aí-mãe-de-autista. Ela não pode prever, evitar ou desfazer esse fato. A facticidade consiste no fato do ser humano encontrar-se no mundo, disposto e a mercê das situações cotidianas sem que para isso tenha participado dessas decisões. O mundo no qual é lançada ultrapassa o espaço geográfico e se constitui pelo conjunto histórico, social e econômico no qual se encontra imerso. A facticidade é o “carater de fatualidade do fato da presença em que, como tal, cada presença sempre é” [12:102].

Ao não aceitar ou negar o diagnóstico, o ser-aí-mãe-de-autista desvela os modos de impropriedade e a impessoalidade, o impessoal parte do público. E é essa publicidade quem dita o “filho perfeito” não alcançado. Com isso, a impropriedade não se associa apenas à inautenticidade presente na cotidianidade, se refere também ao ser-no-mundo não se apropriar de si e do que se tem de mais autêntico em seu ser, do seu poder-ser dentro da sua existência, se refere ao ser não se conhecer e não se reconhecer como um ser de possibilidades [16].

 

A não aceitação da família e da sociedade

 

As depontes expressaram que os maridos nem sempre demonstraram compreensão e companheirismo na rotina de cuidados. Alguns negaram o diagnóstico e não se mostraram abertos ao diálogo. Os familiares apareceram como aqueles que julgam e se afastaram. Deixaram de convidar para eventos sociais e, quando reunidos, levantam hipóteses preconceituosas através de falas ou olhares julgadores.

As pessoas desconhecidas ou a sociedade em geral recriminam tanto o comportamento dos filhos como o das mães. Oferecem palpites para acabar com os momentos de crise ou “acusações” de que essas mães não estão exercendo um bom trabalho nesta função.

 

[...] O meu problema é em relação aos outros, do comportamento dos outros em relação a ele; porque é uma briga que você tem que travar com a sociedade. Então é muito difícil pra eu escutar quando falam que ele é mal educado. Na família por parte de pai eu vejo que ele é visto com um olhar diferente, isso incomoda porque eles querem justificar tudo de errado em cima dele [...] (Cigarra).

 

[...] Lamento profundamente o pai do G não ter entendido, ele não aceitou. O que irrita a mãe é o preconceito, tira a gente do chão mesmo. A vontade que a gente tem é abrir a cabeça da pessoa, implantar lá dentro o que é [...] (Louva-a-deus).

 

[...] É muito difícil pelo preconceito da parte da família, principalmente meu marido por que não aceita; ama de paixão, mas ele não aceita esse diagnóstico, ele não acompanha o tratamento, ele não acompanha pra nada! O meu desafio maior é a sociedade e a família [...] (Libélula).

 

[...] Eu quero fazer de tudo pra poder mudar o jeito que as pessoas pensam sobre o autismo. Porque às vezes a pessoa acha assim que é outro mundo, que é diferente, mas não é. A gente vive num mundo muito egoísta [...] (Efemera.)

 

[...] Do meu marido, a primeira reação foi negativa. “Não, não tem nada disso, tá inventando doença pro menino, você tá doida. Não fala com ninguém!” [...] (Vagalume).

 

[...] Meu marido também não, não é que ele não aceitava, ele não queria dar o braço a torcer [...] (Joaninha).

 

[...] A gente sofre muito porque tem o preconceito e as pessoas não convidam pra festas, não convida pra nada. A própria família às vezes exclui muito. Precisa da sociedade ver e aceitar os autistas, porque são seres humanos e que precisa de ter uma vida social, uma vida digna [...] (Borboleta).

 

[...] Não é fácil. Até na família, nem todo mundo entende, aceita. O preconceito ainda é muito grande, não só da família, mas das pessoas em geral. Porque tudo que é estranho incomoda mesmo, o diferente incomoda. As pessoas são muito intolerantes com o outro. Na minha família, as pessoas não entendem muito, mas não entendem porque eles não têm conhecimento [...] (Vespa).

 

[...] No começo eu chegava em casa chorando quase todo dia porque tudo que ele fazia na rua parecia um pra olhar, pra julgar, apontar o dedo. Com o tempo você vai percebendo como as pessoas são ignorantes, como são desinformadas. Ouvi muitas críticas da família porque achavam que eu tava caçando doença, coisas que não existiam [...] (Mariposa).

 

Após o diagnóstico de TEA de seus filhos, o ser-aí-mãe-de-autista passa a ocupar-se pelo autismo e a preocupar-se com o filho e com o ser-aí-com-os-outros que passa a ser deficiente trazendo dificuldades com familiares e desconhecidos [17]. A dedicação integral das mães pode culminar em um fechamento delas para outras vivências, mas por outro elas podem descobrir uma força que não conheciam, um amor incondicional e paciência, resultando em superação [18].

A falta de apoio psicológico, isolamento social, discriminação dos filhos pela sociedade desvelam a angústia e a (des)preocupação que sentem dos outros perante si mesmas [19].

Afirmaram aceitar o filho. Porém, ainda se admiram com o comportamento de crianças que não possuem o mesmo transtorno. Nesse movimento, mostraram que aceitaram quando ainda não aceitaram a facticidade do transtorno, mas ao mesmo tempo mostraram sua aceitação [20]. Esse fenômeno é caracterizado como a ambiguidade. A ambiguidade não esconde nada à compreensão de presença, mas só o faz para rebaixar o ser-no-mundo ao desenraizamento do “em toda parte e em parte alguma” [12].

Neste contexto, o modo existencial da autenticidade é alcançado então nesse movimento angustiante que permite ao ser-aí-mulher-mãe-de-autista ser livre para seu ser mais próprio. Nos depoimentos foi registrada essa transformação quando falaram que passaram a ver o mundo de maneira diferente, percebendo que o mundo em que todos vivemos é egoísta e impessoal. A sinceridade do modo de ser das pessoas com TEA desencadeou um sentido original de se mostrar dessas mulheres, que passam a comportar-se em público como querem, sem mais se preocupar com os outros.

A autenticidade desvelada permite ao ser-aí-mulher-mãe-de-autista agir de forma única, da sua maneira mais própria. Todavia, por se tratar de um movimento circular, ao desvelar a faceta autêntica, outras são veladas. O poder-ser só é determinado na oscilação entre a autenticidade e inautenticidade. A presença só é nessa ambiguidade. Deve-se, porém, advertir que a distinção e a oposição entre a autenticidade e a inautenticidade não implicam nenhuma valorização preferencial. A inautenticidade faz parte da estrutura do ser tanto quanto a autenticidade.

Esta investigação possui como limitação o fato ter sido realizada com um grupo de mães que estavam se reunindo visando se fortalecerem para criar uma associação de pais de crianças autista no município e não encontrar possíveis participantes no Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Juventude (CAPSI) da cidade, bem como a lacuna de pesquisas neste tema que dão voz às mães.

 

Conclusão

 

Neste estudo, pautado na fenomenologia à luz do pensamento heideggeriano foi possível compreender os significados e sentidos ao desvelar a vivência de mães de crianças com transtorno de espectro autista, evidenciando-se a difícil aceitação do diagnóstico de autismo para o filho. Além disso, ressaltou-se que sentimentos como o descaso, o preconceito da família e sociedade em geral são consistentes e que a dificuldade em sentirem-se acolhidas e amparadas pelos seus pode desenvolver prejuízos emocionais para a mãe de criança autista.

Destaca-se que mesmo com todas as dificuldades, a angústia que emerge na vida das mães permite a experimentação de uma nova maneira de ser e ver as coisas, pois tiveram a oportunidade de descobrir em si mesmas uma força e superação que não possuíam ou de que não tinham conhecimento.

Os resultados desvelados nesta pesquisa salientam a relevância do tema, bem como a importância da realização de novas pesquisas nessa área com enfoque direcionado aos enfermeiros e aos profissionais de saúde, de modo a conhecer a visão destes sobre esta situação, questões e discussões quanto ao modo de atuar e participar lado a lado com essas mães e famílias.

É preciso repensar as políticas públicas e as ações dos profissionais de saúde (multidisciplinar e multiprofissional) para que as famílias passem a ser efetivamente envolvidas nos tratamentos, melhor orientadas e acompanhadas permitindo assim uma parceria de cuidados e transmissão de conhecimentos.

 

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