REVISÃO
Contribuições
da antropologia para as ciências da saúde e para compreensão do processo saúde-doença
Tarciso Feijó da Silva, M.Sc.*, Denise Cristina de Oliveira,
D.Sc.**, Helena Maria Scherlowski Leal David, D.Sc.***, Susana Reis Ferreira, M.Sc.****,
Tatiana Cabral da Silva Ramos*****
*Enfermeiro, Especialista em Gestão em Saúde da Família, Doutorando
do Programa de Pós-Graduação de Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Docente da Universidade Estácio de Sá, **Professora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ, ***Professor Associado da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Enfermeira, ****Docente da Faculdade de
Enfermagem São Camilo/RJ e Universidade Estácio de Sá/RJ, *****Enfermeira, Mestranda
do Programa de Pós-Graduação de Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Enfermeira da Estratégia Saúde da Família de Queimados
Recebido em 18 de maio
de 2018; aceito em 4 de outubro de 2018.
Endereço
de correspondência:
Tarciso Feijó da Silva, Av. Pastor Martin Luther King Júnior, 2012/104 Inhaúma,
20765-000 Rio de Janeiro RJ, E-mail: tarcisofeijo@yahoo.com.br; Helena Maria Scherlowski Leal David: helenalealdavid@gmail.com; Denise Cristina
de Oliveira: dcouerj@gmail.com; Susana Reis Ferreira: susanareisesilva@yahoo.com.br;
Tatiana Cabral da Silva Ramos: taticabralsilva@gmail.com
Resumo
Introdução: A antropologia na prática
dos serviços de saúde que envolve a enfermagem e nas pesquisas científicas desta
área emerge como potente ferramenta por compreender que a relação entre a ciência
médica biologicista/fragmentária estabelece-se no cotidiano
do cuidado pela dificuldade, dos próprios cuidadores, em disponibilizar no seu fazer
o holismo metodológico. Objetivo: Identificar, a partir da literatura publicada em bases de
dados eletrônicas na área da saúde, a relevância da antropologia para as ciências
da saúde e para compreensão do processo saúde-doença. Métodos: Revisão integrativa da literatura desenvolvida mediante levantamento
das publicações científicas em bases de dados eletrônicas na área da saúde. Foram
utilizados como descritores: "Antropologia”, “processo saúde-doença” e “ciências
da saúde”, sendo selecionados 10 estudos publicados entre 2009 e 2016. Resultados: Verificou-se que a Antropologia
apresenta um arcabouço teórico-metodológico próprio, que permite análise abrangente
e compreensão crítica do pensamento científico. Conclusão: A aproximação e a articulação entre Antropologia e o campo
das ciências da saúde apresenta-se como essencial para a produção de rupturas significativas
no modo de pensar e fazer saúde, assim como compreender o processo saúde-doença.
Neste sentido, a abordagem da saúde pela lente da antropologia pode possibilitar
um novo olhar epistemológico sobre as ciências da saúde.
Palavras-chave: antropologia, processo
saúde-doença, ciências da saúde.
Abstract
Contributions of anthropology to health sciences and to the understanding
of health-disease process
Introduction: Anthropology in the practice of health services involving nursing and scientific
research emerges as a powerful tool for understanding the relationship between biologicist/fragmentary medical science and the difficulty of
daily care in making the methodological holism available. Objective: To identify in the literature the relevance of anthropology
to the health sciences and to understand the health-disease process. Methods: Integrative review of the literature
developed by surveying the scientific publications in electronic databases in the
health area. "Anthropology", "health-disease process" and "health
sciences" were used as descriptors, being selected 10 studies published between
2009 and 2016. Results: It was verified
that anthropology presents its own theoretical-methodological framework, which allows
a comprehensive analysis and a critical understanding of scientific thought. Conclusion: The approximation and articulation
between anthropology and the field of health sciences is essential for the production
of significant ruptures in the way of thinking and doing health, as well as understanding
the health process. In this sense, the approach of health through the lens of anthropology
can provide a new epistemological perspective on the health sciences.
Key-words: anthropology,
health-disease process, health sciences.
Resumen
Contribuciones de la antropología
para las ciencias de la salud y para la comprensión del proceso salud-enfermedad
La antropología en la práctica
de los servicios de salud que involucra a la enfermería y en las investigaciones científicas de
esta área emerge como una potente herramienta por comprender que la relación entre la ciencia médica biologicista/fragmentaria
se establece en el cotidiano del cuidado por la dificultad, de los propios cuidadores, en poner a su
disposición el holismo metodológico. Objetivo:
Identificar, a partir de la literatura
publicada en bases de datos
electrónicos en el área de la salud, la
relevancia de la antropología para las ciencias de la salud y para la comprensión del proceso salud-enfermedad. Métodos: Revisión
integrativa de la literatura
desarrollada mediante el levantamiento de las publicaciones científicas en bases
de datos electrónicas en el área de la salud.
Se utilizaron como descriptores:
"Antropología", "proceso
salud-enfermedad" y "ciencias
de la salud",
siendo seleccionados 10 estudios publicados entre 2009 a 2016. Resultados: Se verificó que la Antropología
presenta un marco teórico-metodológico propio, que permite análisis más amplio
y comprensión crítica del pensamiento científico. Conclusión: El acercamiento y la
articulación entre Antropología
y el campo de las ciencias de la salud se presenta como esencial para
la producción de rupturas significativas
en el modo de pensar y hacer salud, así
como para comprender el proceso. En este sentido, el abordaje
de la salud por la lente de la antropología puede posibilitar una nueva mirada epistemológica
sobre las ciencias de la salud.
Palabras-clave: antropología,
proceso salud-enfermedad, ciencias de la
salud.
A antropologia como ciência
da humanidade é compreendida como aquele âmbito do saber que procura conhecer cientificamente
a pessoa humana na sua totalidade [1]. É uma forma de conhecimento sobre a diversidade
cultural, isto é, a busca de respostas para se entender o que se é a partir do espelho
fornecido pelo “outro”; uma maneira de se situar na fronteira de vários mundos sociais
e culturais, abrindo janelas entre eles, através das quais se podem alargar as possibilidades
de sentir, agir e refletir sobre o que torna os seres humanos singulares, humanos
[2]. Neste sentido, a antropologia é vista não apenas como o estudo de tudo que
compõe uma sociedade, mas como de todas as sociedades humanas, ou seja, das culturas
da humanidade como um todo em suas diversidades históricas e geográficas [3]. O
objetivo da mesma é o estudo da humanidade como um todo, bem como das suas diversas
manifestações e expressões. Presume-se que a antropologia preocupa-se com a pessoa
humana na sua condição de ser biológico, pensante, que produz culturas e é capaz
de se organizar em sociedades estruturadas [4].
A antropologia cultural
estuda o ser humano enquanto fazedor de cultura e busca compreender os relacionamentos
humanos, os comportamentos tanto instintivos como aqueles adquiridos pela aprendizagem,
sem deixar de analisar os aspectos biológicos que contribuem para o desenvolvimento
das capacidades culturais dos seres humanos. Desta forma, a antropologia cultural
tem como escopo conhecer o ser humano enquanto ser capaz de criar o seu ambiente
cultural através de formas bem diferenciadas de comportamento [5].
Sobre a antropologia da
saúde no Brasil, Minayo
[6] destaca que se realiza pela
contribuição de vários influxos. Do ponto de vista
histórico, pelas relações políticas,
sociais e ideológicas que contextualizam seu nascimento, pelo
espaço que consegue
criar na dinamicidade das instituições e pelos autores
que catalisa para conformar-se.
A antropologia da saúde no Brasil é dinâmica,
florescente, e se constitui com várias
peculiaridades, porém sempre em diálogo com o que
está sendo construído no campo
da saúde e no âmbito da antropologia.
As ciências da saúde têm
adotado os diferentes significados, conceitos, métodos e técnicas de pesquisa da
antropologia pela capilaridade que caracteriza esta última e por sua contribuição
para produção do conhecimento e análise de diferentes objetos de estudo. Nas pesquisas
científicas relacionadas ao campo da saúde, a antropologia tem sido utilizada visando
entender o processo saúde-doença [6], o cuidado em saúde [7], a adesão de usuários
ao tratamento [8], assim como as relações estabelecidas entre os profissionais de
saúde e usuários [9].
A enfermagem, enquanto
ciência, tem como objeto o cuidado, sendo elemento necessário
e único, que consiste em conhecimento, crenças e valores que o sustentam, refletido
em comportamentos e modos de cuidar. A antropologia na prática dos serviços de saúde,
que envolve a enfermagem e nas pesquisas científicas desta área, num sentido complexo,
emerge como potente ferramenta por permitir compreender que a relação entre a ciência
médica biologicista/fragmentária estabelece-se no cotidiano
do cuidado pela dificuldade, dos próprios cuidadores, em disponibilizar no seu fazer
o holismo metodológico [10]. Sob esta ótica, espera-se
que, com o apoio da antropologia, os estudos que envolvem as ciências da saúde sejam
realizados na perspectiva de construir sentidos sobre as ações dos profissionais
de tal forma que elaborem processos tendo em mente a singularidade dos sujeitos
e os diferentes contextos que estão inseridos.
O objetivo deste artigo
é identificar, a partir da literatura publicada em bases de dados eletrônicas na
área da saúde, a relevância da antropologia para as ciências da saúde e para compreensão
do processo saúde-doença.
Trata-se de uma revisão
integrativa da literatura, a partir da qual se torna possível realizar a síntese
sobre o conhecimento relacionado a um determinado assunto, com a unificação dos
resultados obtidos em outros estudos ou pesquisas diversas. Neste sentido, foram
seguidas as seis etapas definidas para sua elaboração [11,12].
Na primeira etapa, elaborou-se
a pergunta norteadora da pesquisa, sobre: qual a relevância da antropologia para
a saúde e a enfermagem, e para compreensão do processo saúde-doença? A segunda etapa
consistiu na estruturação da busca na literatura, mediante levantamento das publicações
científicas no Portal da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), compreendendo artigos
científicos disponíveis nas seguintes bases de dados: Literatura Latino Americana
e do Caribe em Ciências de Saúde (Lilacs), Sistema Online
de Busca e Análise de Literatura Médica (Medline) e Base
de dados bibliográfica especializada na área de Enfermagem (BDENF). Para realização
da busca dos artigos, foram utilizados os descritores: "antropologia”, “processo
saúde-doença” e “ciências da saúde”.
Foram considerados critérios
de inclusão: texto de artigos originais, completos, idioma em português, disponível
para download nas bases eletrônicas e ter sido publicado entre 2009 e 2016. Emergiram
17 publicações, das quais 7 foram excluídas pelo fato de
3 serem repetidas e 4 não contemplarem os critérios estabelecidos. A partir da leitura
dos títulos, resumos e texto na íntegra, foram selecionadas 10 publicações que atendiam
ao objetivo da pesquisa.
Na terceira etapa, foi
utilizado um instrumento de coleta de dados para o registro das informações relevantes
acerca dos estudos selecionados, que possibilitou o levantamento das seguintes categorias
de análise: nome dos autores, título dos artigos, revista em que o artigo foi publicado,
ano de publicação, objetivo e relevância da antropologia para saúde, enfermagem
e compreensão do processo saúde-doença. Na etapa seguinte, procedeu-se à análise
dos dados coletados com base na identificação, convergências e divergências, o que
possibilitou a identificação de duas categorias temáticas intituladas “Antropologia
e sua relevância para a saúde e a enfermagem” e a “Importância da Antropologia para
compreensão do processo saúde doença", a fim de possibilitar a efetivação da
discussão dos resultados, a partir da interpretação e comparação com o referencial
teórico.
O Quadro 1, a seguir, apresenta a síntese dos principais elementos dos
artigos selecionados para o desenvolvimento deste estudo e, com base nele, apresenta-se,
inicialmente, breve caracterização descritiva do conjunto de publicações selecionadas.
Quadro I – Distribuição dos estudos incluídos segundo título,
autores, idioma, ano e país; objetivos e relevância da antropologia para saúde,
enfermagem e compreensão do processo saúde-doença. (ver anexo em PDF).
Sobre o período de publicação,
os anos de 2009, 2010 e 2013 destacaram-se por terem concentrado a metade da amostra
estudada. Dentre os artigos, 06 foram publicados em revistas de Enfermagem vinculadas
a instituições públicas. Quanto ao método utilizado, 01 dos artigos está relacionado
a uma entrevista, 02 artigos são de revisão da literatura e 7artigos
são de reflexão teórica. Quanto à
formação dos autores, 83% são enfermeiros,
e os 17% restantes estão distribuídos entre 01 dentista,
01 sociólogo, 01 antropólogo,
01 cientista social, 01 médico, 01 farmacêutico e 01
pedagogo. Desses, 81% são doutores
ou doutorandos, 16% são mestres ou mestrandos, e 3% são
graduados.
A priori, observou-se
que a antropologia apresenta como objetivo entender o ser humano e suas práticas
em uma perspectiva comparativa, ou seja, de uma perspectiva que reconheça e respeite
a diversidade de soluções que as diversas culturas têm construídas para explicar
e atender os problemas de saúde e doença [15]. Permitiu também identificar os padrões
culturais repartidos pelos coletivos de indivíduos; inferir sobre o que há em comum
nas ações, atribuições de sentido, significados e simbolismo projetados pelos indivíduos
sobre o mundo material e “natural”; e ponderar sobre a experiência de viver em sociedade,
sobre adoecer e se cuidar, definindo-a como experiência eminentemente intersubjetiva
e relacional, mediada pelo fenômeno cultural [16]. É possível também compreender
a relevância da antropologia para estudos da área da saúde, especificamente para
a Enfermagem, que possui como objeto de sua prática o cuidado. Neste sentido, pela
lente da antropologia é possível analisar hábitos de vida, rotinas, procura pelo
serviço de saúde, assim como para compreender o significado de saúde e doença por
parte dos profissionais e usuários dos serviços de saúde.
A análise inicial sob
outra perspectiva possibilitou considerar que a antropologia como ciência no campo
da saúde tem contribuído de forma teórica e metodológica para uma melhor compreensão
acerca da influência dos fatores culturais nas dinâmicas sociais e como isso condiciona
as práticas, os costumes e os hábitos associados à busca pela cura e à concepção
de saúde por diferentes grupos populacionais [22]. Sob esta ótica, foi possível
verificar uma abordagem da antropologia nos artigos como ferramenta para análise
do processo saúde-doença, sendo a cultura apontada como elemento que permeia as
ações de saúde e os constructos dos profissionais e usuários.
Categoria
1: Antropologia e sua relevância para a saúde e a enfermagem
Ao realizar a aproximação
entre as concepções biomédica e cultural, a antropologia deixa claro que os homens
que atuam nas dimensões biopsicossocial e econômico-política do
processo saúde/doença fazem-no por meio de processos ideológicos baseados
na experiência pessoal e grupal, em crenças, percepções, atitudes e práticas, dadas
social e historicamente. Dessa forma, reconhece-se que o que cada indivíduo sente
é percebido e valorizado de acordo com a sociedade da qual
faz parte [13].
A importância da antropologia
para a saúde e a enfermagem se afirma pelo fato da mesma ampliar o olhar, permitindo
mudanças na relação profissional-usuário/cliente, e esse novo olhar pode resultar
em cuidados e práticas como uma escuta atenta, com interesse pelo outro (usuário)
e a disponibilidade para juntos buscarem formas singulares para enfrentar a situação
vivenciada [13], além de interferir nas interpretações empíricas, factuais, prontas
e acabadas da construção de sujeito e objeto, norteando os estudos por meio de reflexões,
apresentando as incertezas inerentes ao homem, à sociedade e a espécie [14].
Costa
[14] acrescenta
a esse pensamento os objetivos principais da antropologia que
são a sua preocupação
em fundamentar a necessidade da reflexão antropológica no
contexto das ciências
da saúde, nomeadamente da Medicina; a valorização
da centralidade da pessoa, enquanto
sujeito cultural e social; o discurso nos processos relativos à
prevenção e promoção
da saúde e à prestação de cuidados; e, por
fim, a transmissão e contribuição que
a Antropologia Médica, nas suas duas correntes,
filosófica e cultural, oferece à
Saúde Pública.
Desde
a sua origem a antropologia
marcou seu lugar como disciplina no concerto das ciências,
empreendendo investigações
para evidenciar os modos como sociedades, populações e
grupos específicos produzem,
reproduzem e simbolizam suas instituições e estruturas,
relações, sistemas classificatórios,
técnicas, manifestações estéticas,
memória e experiências acumuladas. Além do
arcabouço
teórico-metodológico que a disciplina detém, as
análises antropológicas abrangem,
também, a compreensão e a crítica do pensamento
científico produzido por ela própria.
Ou seja, a antropologia se distingue por exercitar uma prática
compreensiva das
realidades sociais e também uma prática
epistemológica sobre a cientificidade de
suas próprias descobertas [23].
Neste sentido, Minayo [6] apoiada em teóricos como Levi-Strauss
e Mauss corrobora os achados dos artigos ao apresentar
algumas contribuições da antropologia para o campo da saúde e da enfermagem, a saber:
a antropologia contribui para relativizar conceitos biomédicos; para desvendar a
estrutura dos mecanismos terapêuticos; para mostrar relações entre saúde/doença
e realidade social; para evidenciar de forma ampla e significativa os fenômenos
que recobrem o campo da saúde e da doença; para a contextualização dos sujeitos;
com formas de abordagem dos processos de saúde/doença.
A relevância da antropologia
deve ser considerada ainda na formação dos profissionais de saúde. Não se pode,
no contexto acadêmico, desvincular a antropologia de outras disciplinas que compõe
a grade curricular, em especial dos cursos que formam profissionais de saúde, pois
esta traz inúmeras contribuições que envolvem as reflexões em torno do processo
saúde/doença, cultura e sociedade, bem como são fundamentais para se repensar em
formulação de políticas públicas e planejamento dos serviços de saúde. Contribui
profundamente também para os profissionais da saúde, uma vez que proporciona reflexões
em torno do fenômeno saúde/doença, bem como relaciona aspectos sociais e culturais
dos povos, ressaltando que o conhecimento biológico, por si só, não é suficiente
para entender a complexidade desse fenômeno [19].
Jodelet [7], ao propor a abordagem
multidimensional da saúde também colabora com este pensamento, concluindo que a
antropologia amplia a possibilidade para a compreensão da saúde e da enfermagem,
já que permite dar conta da complexidade dos processos que intervêm nas relações
de saúde e na diversidade de experiência dos indivíduos e de sua participação nos
cuidados.
Segundo a autora supracitada,
para realizar este tipo de abordagem é necessário: entender o conceito de cultura
e sua aplicabilidade; examinar os pontos de intervenção da cultura; examinar as
pessoas implicadas na gestão da saúde e suas relações, tendo em vista que eles estão
inscritos na sociedade, são portadores da cultura e constituem o sistema de ancoragem
das evoluções da medicina e das redefinições de saúde e doença [7].
É cientificamente necessário
que uma verdadeira antropologia da saúde tenha o foco no paciente, que deve ser
encarado como um autêntico polo de conhecimentos, e realizar uma adequação das diferentes
concepções de cultura aos problemas de saúde. A Teoria da Diversidade e Universalidade
do Cuidado Cultural (TDUCC) e a etnoenfermagem, orientados
pela antropologia propostas por Madeleine Leininger, são
outros potentes instrumentos que emergiram a partir da análise dos artigos e que
são utilizados para análises no campo da saúde, especificamente no campo da enfermagem
[18].
Categoria
2: Importância da antropologia para compreensão do processo
saúde- doença
A abordagem interpretativa
proposta por alguns autores que trabalham com a antropologia da saúde tem se mostrado
adequada para ampliar a compreensão do complexo processo de adoecimento e sofrimento
[13]. A antropologia considera a saúde e tudo a ela relacionado como fenômenos culturalmente
construídos e interpretados. Os estudos dessa disciplina buscam revelar a complexidade
da experiência do processo saúde-doença, lançando mão da etnografia para descrever
esse processo, que adquire relevância na voz, sob a forma narrativa, daqueles que
compartilham a experiência de vivenciar, explicar e interpretar os fenômenos [17].
Sobre isto, Campos [24]
adverte que a saúde é um traço cultural. Os valores, as concepções que se tem sobre
saúde são sempre um traço cultural. Pensa-se em saúde muito na perspectiva da sobrevivência,
anos de vida ganhos, defesa da vida. Do ponto de vista cultural, vida é também ligada
ao prazer, ou seja, à intensidade da vida, à qualidade de vida. Quando a saúde valoriza
muito a segurança, o interesse de sobreviver, sacrifica
a intensidade de viver; quando se joga muito no gozo e no desejo, sacrifica-se a
saúde. É a cultura que define os padrões sociais sobre o quê e quando comer, assim
como a relação entre tipos de alimentos que devem ser combinados ou não, e, por
conseguinte, a experiência de saciar a fome ou não é sociobiologicamente
determinadas.
Costa
e Gualda revelam
que os comportamentos de uma população perante seus
problemas de saúde, incluindo
a utilização dos serviços médicos
disponíveis, são construídos e partilhados a
partir
de universos socioculturais específicos e apontam a abordagem
antropológica, a etnografia
e o uso das narrativas como formas para apreender o modo de viver dos
sujeitos em
seu ambiente e favorecer a compreensão dos eventos relacionados
ao processo saúde-doença
[17].
A biomedicina como ciência
trabalha com universais, no sentido que as doenças são concebidas como unidades
universais cujas manifestações são independentes do contexto onde acontecem. Os
pesquisadores da ciência biomédica acreditam que seus métodos positivistas revelam
a vida objetivamente e aproxima ao que pode ser considerado "verdade",
livre de valores, subjetividades e especificidades culturais. A visão de
que existe um conhecimento único sobre doença e saúde torna-se uma barreira para
entender as contribuições e implicações do relativismo antropológico. Guiado pelo
princípio de relativismo, a antropologia entende que os saberes e práticas de qualquer
sistema médico são construções socioculturais. Dessa forma, a própria ciência, como
todos os sistemas de conhecimento, emergiu através de processos históricos e socioculturais,
e não através da descoberta de leis únicas e universais que regem sobre o mundo
real.
Já
a antropologia busca
não invalidar outros conhecimentos, mas relativizá-los,
reconhecendo que existem
outras maneiras de produzir o conhecimento sobre saúde e
doença, e não só o da biomedicina.
Existem sistemas médicos diversos e todos são
construções socioculturais. Todos
têm suas limitações em resolver os problemas de
saúde [15]. A
padronização/reestruturação
das ações dos profissionais deve ter como objetivo ajudar
os clientes a modificarem
seus hábitos de vida para outros que sejam mais
saudáveis, porém essas ações devem
respeitar os padrões culturais destes clientes [20]. O cuidado
deve ser permeado
para que se possa assumir uma posição de observador das
percepções que o indivíduo
pode possuir sobre si mesmo e sobre o momento de adoecer. Quando o
profissional
reconhece o cliente deste processo, aproxima-se da
formação de vínculos, do estabelecimento
de uma relação, que deve possuir um caminho acolhedor e
resolutivo, para se considerar
uma assistência à saúde que garanta efetividade
[20].
É necessário considerar
que, sob a perspectiva antropológica, o universo sociocultural do doente é visto
não mais como obstáculo maior à efetividade dos programas e práticas terapêuticas,
mas como o contexto em que se enraízam as concepções sobre as doenças, as explicações
fornecidas e os comportamentos diante delas. Essa perspectiva reorienta a percepção
dos aspectos relacionados à efetividade das intervenções em saúde, considerando
que a efetividade de uma política, programa, projeto, serviços e ações de saúde
dependam da extensão em que a população aceita, utiliza e participa dos mesmos [21].
A ação de saúde inicia-se no encontro de subjetividades, objetivadas em ações concretas,
em palavras que concordam ou discordam, manifestadas pelo silêncio ou por orientações,
que podem ser seguidas ou não, e, às vezes, transformadas. Verifica-se que o olhar
sobre o processo saúde-doença e as escolhas no processo de cuidar ocorrem em macros e microcontextos
determinados socialmente e sob a égide de dimensões subjetivas e culturais [13].
Com isso, fenômeno do adoecimento deve ser compreendido como decorrente de uma relação
do homem pelo seu entorno, considerando além dos fatores biológicos, a interação
destes com o meio em que vivem, configurando-se este processo em uma relação multicausal.
As concepções de saúde e doença são intrinsicamente influenciadas por fenômenos
complexos que conjugam diversos fatores além dos biológicos, atualmente denominados
de determinantes sociais da saúde [21].
Historicamente, a compreensão
sobre saúde e doença, a relação existente entre ambas, suas determinações e seus
condicionamentos envolveu diferentes aspectos que foram se conformando ao longo
dos anos, de acordo com fatores sociais, culturais, políticos e econômicos. A cada
conformação, uma nova concepção sobre saúde e doença emergia e trazia no seu bojo
uma ressignificação para as ações e práticas desenvolvidas.
A saúde e a enfermagem
são ciências que pressupõem uma ação, um agir, e um modus operandi. No entanto,
é conveniente questionar qual ação, agir e modus operandi estas ciências abraçam.
Seria a saúde? A doença? Ambas de forma isolada ou justapostas? Seria o contexto
em que elas se apresentam? Ou, talvez, o universo de agentes envolvidos com a produção
das mesmas?
Nesta revisão, a ciência
da antropologia emerge como importante ferramenta para responder estas questões
ao apresentar diferentes métodos e técnicas de pesquisa que podem ser utilizados
para análise destes campos de conhecimento, assim como permitir uma compreensão
ampliada sobre o processo saúde doença. Foi possível perceber a importância da antropologia
para uma abordagem para além do biológico, já que a mesma considera a doença como
uma construção social influenciada pela cultura e pela subjetividade, o que torna
indispensável sua aproximação com as ciências da saúde. Identificou-se ainda que
é possível superar as limitações do modelo biomédico, compreender
melhor os modelos biopsicossocial e da determinação social da doença, assim como
buscar maior integração entre os diferentes modelos existentes, já que a existência
de um não exclui a importância do outro.
Apreendeu-se ainda que
a saúde é um traço cultural orientada por valores, concepções
e modos de vida, e que a cultura contribui para a construção social do que é saúde
e doença. Legitima a forma como o ser humano lida com a vida, com seus interesses,
assim como orienta o cuidado em saúde, as condutas dos profissionais de acordo com
os diferentes contextos em que estão inseridos e o agir dos pacientes. A cultura,
desta forma, orienta o dever dos profissionais e dos pacientes.
Conclui-se
que os instrumentos
metodológicos apresentados pela antropologia mostram-se
essenciais na atualidade
para compreensão e análise da saúde e da
enfermagem. A aproximação e articulação
entre os diferentes campos é essencial para produção de
rupturas significativas no modo de pensar e fazer saúde.