REVISÃO

Contribuições da antropologia para as ciências da saúde e para compreensão do processo saúde-doença

 

Tarciso Feijó da Silva, M.Sc.*, Denise Cristina de Oliveira, D.Sc.**, Helena Maria Scherlowski Leal David, D.Sc.***, Susana Reis Ferreira, M.Sc.****, Tatiana Cabral da Silva Ramos*****

 

*Enfermeiro, Especialista em Gestão em Saúde da Família, Doutorando do Programa de Pós-Graduação de Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Docente da Universidade Estácio de Sá, **Professora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ, ***Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Enfermeira, ****Docente da Faculdade de Enfermagem São Camilo/RJ e Universidade Estácio de Sá/RJ, *****Enfermeira, Mestranda do Programa de Pós-Graduação de Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Enfermeira da Estratégia Saúde da Família de Queimados

 

Recebido em 18 de maio de 2018; aceito em 4 de outubro de 2018.

Endereço de correspondência: Tarciso Feijó da Silva, Av. Pastor Martin Luther King Júnior, 2012/104 Inhaúma, 20765-000 Rio de Janeiro RJ, E-mail: tarcisofeijo@yahoo.com.br; Helena Maria Scherlowski Leal David: helenalealdavid@gmail.com; Denise Cristina de Oliveira: dcouerj@gmail.com; Susana Reis Ferreira: susanareisesilva@yahoo.com.br; Tatiana Cabral da Silva Ramos: taticabralsilva@gmail.com

 

Resumo

Introdução: A antropologia na prática dos serviços de saúde que envolve a enfermagem e nas pesquisas científicas desta área emerge como potente ferramenta por compreender que a relação entre a ciência médica biologicista/fragmentária estabelece-se no cotidiano do cuidado pela dificuldade, dos próprios cuidadores, em disponibilizar no seu fazer o holismo metodológico. Objetivo: Identificar, a partir da literatura publicada em bases de dados eletrônicas na área da saúde, a relevância da antropologia para as ciências da saúde e para compreensão do processo saúde-doença. Métodos: Revisão integrativa da literatura desenvolvida mediante levantamento das publicações científicas em bases de dados eletrônicas na área da saúde. Foram utilizados como descritores: "Antropologia”, “processo saúde-doença” e “ciências da saúde”, sendo selecionados 10 estudos publicados entre 2009 e 2016. Resultados: Verificou-se que a Antropologia apresenta um arcabouço teórico-metodológico próprio, que permite análise abrangente e compreensão crítica do pensamento científico. Conclusão: A aproximação e a articulação entre Antropologia e o campo das ciências da saúde apresenta-se como essencial para a produção de rupturas significativas no modo de pensar e fazer saúde, assim como compreender o processo saúde-doença. Neste sentido, a abordagem da saúde pela lente da antropologia pode possibilitar um novo olhar epistemológico sobre as ciências da saúde.

Palavras-chave: antropologia, processo saúde-doença, ciências da saúde.

 

Abstract

Contributions of anthropology to health sciences and to the understanding of health-disease process

Introduction: Anthropology in the practice of health services involving nursing and scientific research emerges as a powerful tool for understanding the relationship between biologicist/fragmentary medical science and the difficulty of daily care in making the methodological holism available. Objective: To identify in the literature the relevance of anthropology to the health sciences and to understand the health-disease process. Methods: Integrative review of the literature developed by surveying the scientific publications in electronic databases in the health area. "Anthropology", "health-disease process" and "health sciences" were used as descriptors, being selected 10 studies published between 2009 and 2016. Results: It was verified that anthropology presents its own theoretical-methodological framework, which allows a comprehensive analysis and a critical understanding of scientific thought. Conclusion: The approximation and articulation between anthropology and the field of health sciences is essential for the production of significant ruptures in the way of thinking and doing health, as well as understanding the health process. In this sense, the approach of health through the lens of anthropology can provide a new epistemological perspective on the health sciences.

Key-words: anthropology, health-disease process, health sciences.

 

Resumen

Contribuciones de la antropología para las ciencias de la salud y para la comprensión del proceso salud-enfermedad

La antropología en la práctica de los servicios de salud que involucra a la enfermería y en las investigaciones científicas de esta área emerge como una potente herramienta por comprender que la relación entre la ciencia médica biologicista/fragmentaria se establece en el cotidiano del cuidado por la dificultad, de los propios cuidadores, en poner a su disposición el holismo metodológico. Objetivo: Identificar, a partir de la literatura publicada en bases de datos electrónicos en el área de la salud, la relevancia de la antropología para las ciencias de la salud y para la comprensión del proceso salud-enfermedad. Métodos: Revisión integrativa de la literatura desarrollada mediante el levantamiento de las publicaciones científicas en bases de datos electrónicas en el área de la salud. Se utilizaron como descriptores: "Antropología", "proceso salud-enfermedad" y "ciencias de la salud", siendo seleccionados 10 estudios publicados entre 2009 a 2016. Resultados: Se verificó que la Antropología presenta un marco teórico-metodológico propio, que permite análisis más amplio y comprensión crítica del pensamiento científico. Conclusión: El acercamiento y la articulación entre Antropología y el campo de las ciencias de la salud se presenta como esencial para la producción de rupturas significativas en el modo de pensar y hacer salud, así como para comprender el proceso. En este sentido, el abordaje de la salud por la lente de la antropología puede posibilitar una nueva mirada epistemológica sobre las ciencias de la salud.

Palabras-clave: antropología, proceso salud-enfermedad, ciencias de la salud.

 

Introdução

 

A antropologia como ciência da humanidade é compreendida como aquele âmbito do saber que procura conhecer cientificamente a pessoa humana na sua totalidade [1]. É uma forma de conhecimento sobre a diversidade cultural, isto é, a busca de respostas para se entender o que se é a partir do espelho fornecido pelo “outro”; uma maneira de se situar na fronteira de vários mundos sociais e culturais, abrindo janelas entre eles, através das quais se podem alargar as possibilidades de sentir, agir e refletir sobre o que torna os seres humanos singulares, humanos [2]. Neste sentido, a antropologia é vista não apenas como o estudo de tudo que compõe uma sociedade, mas como de todas as sociedades humanas, ou seja, das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades históricas e geográficas [3]. O objetivo da mesma é o estudo da humanidade como um todo, bem como das suas diversas manifestações e expressões. Presume-se que a antropologia preocupa-se com a pessoa humana na sua condição de ser biológico, pensante, que produz culturas e é capaz de se organizar em sociedades estruturadas [4].

A antropologia cultural estuda o ser humano enquanto fazedor de cultura e busca compreender os relacionamentos humanos, os comportamentos tanto instintivos como aqueles adquiridos pela aprendizagem, sem deixar de analisar os aspectos biológicos que contribuem para o desenvolvimento das capacidades culturais dos seres humanos. Desta forma, a antropologia cultural tem como escopo conhecer o ser humano enquanto ser capaz de criar o seu ambiente cultural através de formas bem diferenciadas de comportamento [5].

Sobre a antropologia da saúde no Brasil, Minayo [6] destaca que se realiza pela contribuição de vários influxos. Do ponto de vista histórico, pelas relações políticas, sociais e ideológicas que contextualizam seu nascimento, pelo espaço que consegue criar na dinamicidade das instituições e pelos autores que catalisa para conformar-se. A antropologia da saúde no Brasil é dinâmica, florescente, e se constitui com várias peculiaridades, porém sempre em diálogo com o que está sendo construído no campo da saúde e no âmbito da antropologia.

As ciências da saúde têm adotado os diferentes significados, conceitos, métodos e técnicas de pesquisa da antropologia pela capilaridade que caracteriza esta última e por sua contribuição para produção do conhecimento e análise de diferentes objetos de estudo. Nas pesquisas científicas relacionadas ao campo da saúde, a antropologia tem sido utilizada visando entender o processo saúde-doença [6], o cuidado em saúde [7], a adesão de usuários ao tratamento [8], assim como as relações estabelecidas entre os profissionais de saúde e usuários [9].

A enfermagem, enquanto ciência, tem como objeto o cuidado, sendo elemento necessário e único, que consiste em conhecimento, crenças e valores que o sustentam, refletido em comportamentos e modos de cuidar. A antropologia na prática dos serviços de saúde, que envolve a enfermagem e nas pesquisas científicas desta área, num sentido complexo, emerge como potente ferramenta por permitir compreender que a relação entre a ciência médica biologicista/fragmentária estabelece-se no cotidiano do cuidado pela dificuldade, dos próprios cuidadores, em disponibilizar no seu fazer o holismo metodológico [10]. Sob esta ótica, espera-se que, com o apoio da antropologia, os estudos que envolvem as ciências da saúde sejam realizados na perspectiva de construir sentidos sobre as ações dos profissionais de tal forma que elaborem processos tendo em mente a singularidade dos sujeitos e os diferentes contextos que estão inseridos.

O objetivo deste artigo é identificar, a partir da literatura publicada em bases de dados eletrônicas na área da saúde, a relevância da antropologia para as ciências da saúde e para compreensão do processo saúde-doença.

 

Material e métodos

 

Trata-se de uma revisão integrativa da literatura, a partir da qual se torna possível realizar a síntese sobre o conhecimento relacionado a um determinado assunto, com a unificação dos resultados obtidos em outros estudos ou pesquisas diversas. Neste sentido, foram seguidas as seis etapas definidas para sua elaboração [11,12].

Na primeira etapa, elaborou-se a pergunta norteadora da pesquisa, sobre: qual a relevância da antropologia para a saúde e a enfermagem, e para compreensão do processo saúde-doença? A segunda etapa consistiu na estruturação da busca na literatura, mediante levantamento das publicações científicas no Portal da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), compreendendo artigos científicos disponíveis nas seguintes bases de dados: Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências de Saúde (Lilacs), Sistema Online de Busca e Análise de Literatura Médica (Medline) e Base de dados bibliográfica especializada na área de Enfermagem (BDENF). Para realização da busca dos artigos, foram utilizados os descritores: "antropologia”, “processo saúde-doença” e “ciências da saúde”.

Foram considerados critérios de inclusão: texto de artigos originais, completos, idioma em português, disponível para download nas bases eletrônicas e ter sido publicado entre 2009 e 2016. Emergiram 17 publicações, das quais 7 foram excluídas pelo fato de 3 serem repetidas e 4 não contemplarem os critérios estabelecidos. A partir da leitura dos títulos, resumos e texto na íntegra, foram selecionadas 10 publicações que atendiam ao objetivo da pesquisa.

Na terceira etapa, foi utilizado um instrumento de coleta de dados para o registro das informações relevantes acerca dos estudos selecionados, que possibilitou o levantamento das seguintes categorias de análise: nome dos autores, título dos artigos, revista em que o artigo foi publicado, ano de publicação, objetivo e relevância da antropologia para saúde, enfermagem e compreensão do processo saúde-doença. Na etapa seguinte, procedeu-se à análise dos dados coletados com base na identificação, convergências e divergências, o que possibilitou a identificação de duas categorias temáticas intituladas “Antropologia e sua relevância para a saúde e a enfermagem” e a “Importância da Antropologia para compreensão do processo saúde doença", a fim de possibilitar a efetivação da discussão dos resultados, a partir da interpretação e comparação com o referencial teórico.

 

Resultados e discussão

 

O Quadro 1, a seguir, apresenta a síntese dos principais elementos dos artigos selecionados para o desenvolvimento deste estudo e, com base nele, apresenta-se, inicialmente, breve caracterização descritiva do conjunto de publicações selecionadas.

 

Quadro IDistribuição dos estudos incluídos segundo título, autores, idioma, ano e país; objetivos e relevância da antropologia para saúde, enfermagem e compreensão do processo saúde-doença. (ver anexo em PDF).

 

Sobre o período de publicação, os anos de 2009, 2010 e 2013 destacaram-se por terem concentrado a metade da amostra estudada. Dentre os artigos, 06 foram publicados em revistas de Enfermagem vinculadas a instituições públicas. Quanto ao método utilizado, 01 dos artigos está relacionado a uma entrevista, 02 artigos são de revisão da literatura e 7artigos são de reflexão teórica. Quanto à formação dos autores, 83% são enfermeiros, e os 17% restantes estão distribuídos entre 01 dentista, 01 sociólogo, 01 antropólogo, 01 cientista social, 01 médico, 01 farmacêutico e 01 pedagogo. Desses, 81% são doutores ou doutorandos, 16% são mestres ou mestrandos, e 3% são graduados.

A priori, observou-se que a antropologia apresenta como objetivo entender o ser humano e suas práticas em uma perspectiva comparativa, ou seja, de uma perspectiva que reconheça e respeite a diversidade de soluções que as diversas culturas têm construídas para explicar e atender os problemas de saúde e doença [15]. Permitiu também identificar os padrões culturais repartidos pelos coletivos de indivíduos; inferir sobre o que há em comum nas ações, atribuições de sentido, significados e simbolismo projetados pelos indivíduos sobre o mundo material e “natural”; e ponderar sobre a experiência de viver em sociedade, sobre adoecer e se cuidar, definindo-a como experiência eminentemente intersubjetiva e relacional, mediada pelo fenômeno cultural [16]. É possível também compreender a relevância da antropologia para estudos da área da saúde, especificamente para a Enfermagem, que possui como objeto de sua prática o cuidado. Neste sentido, pela lente da antropologia é possível analisar hábitos de vida, rotinas, procura pelo serviço de saúde, assim como para compreender o significado de saúde e doença por parte dos profissionais e usuários dos serviços de saúde.

A análise inicial sob outra perspectiva possibilitou considerar que a antropologia como ciência no campo da saúde tem contribuído de forma teórica e metodológica para uma melhor compreensão acerca da influência dos fatores culturais nas dinâmicas sociais e como isso condiciona as práticas, os costumes e os hábitos associados à busca pela cura e à concepção de saúde por diferentes grupos populacionais [22]. Sob esta ótica, foi possível verificar uma abordagem da antropologia nos artigos como ferramenta para análise do processo saúde-doença, sendo a cultura apontada como elemento que permeia as ações de saúde e os constructos dos profissionais e usuários.

 

Categoria 1: Antropologia e sua relevância para a saúde e a enfermagem

 

Ao realizar a aproximação entre as concepções biomédica e cultural, a antropologia deixa claro que os homens que atuam nas dimensões biopsicossocial e econômico-política do processo saúde/doença fazem-no por meio de processos ideológicos baseados na experiência pessoal e grupal, em crenças, percepções, atitudes e práticas, dadas social e historicamente. Dessa forma, reconhece-se que o que cada indivíduo sente é percebido e valorizado de acordo com a sociedade da qual faz parte [13].

A importância da antropologia para a saúde e a enfermagem se afirma pelo fato da mesma ampliar o olhar, permitindo mudanças na relação profissional-usuário/cliente, e esse novo olhar pode resultar em cuidados e práticas como uma escuta atenta, com interesse pelo outro (usuário) e a disponibilidade para juntos buscarem formas singulares para enfrentar a situação vivenciada [13], além de interferir nas interpretações empíricas, factuais, prontas e acabadas da construção de sujeito e objeto, norteando os estudos por meio de reflexões, apresentando as incertezas inerentes ao homem, à sociedade e a espécie [14].

Costa [14] acrescenta a esse pensamento os objetivos principais da antropologia que são a sua preocupação em fundamentar a necessidade da reflexão antropológica no contexto das ciências da saúde, nomeadamente da Medicina; a valorização da centralidade da pessoa, enquanto sujeito cultural e social; o discurso nos processos relativos à prevenção e promoção da saúde e à prestação de cuidados; e, por fim, a transmissão e contribuição que a Antropologia Médica, nas suas duas correntes, filosófica e cultural, oferece à Saúde Pública.

Desde a sua origem a antropologia marcou seu lugar como disciplina no concerto das ciências, empreendendo investigações para evidenciar os modos como sociedades, populações e grupos específicos produzem, reproduzem e simbolizam suas instituições e estruturas, relações, sistemas classificatórios, técnicas, manifestações estéticas, memória e experiências acumuladas. Além do arcabouço teórico-metodológico que a disciplina detém, as análises antropológicas abrangem, também, a compreensão e a crítica do pensamento científico produzido por ela própria. Ou seja, a antropologia se distingue por exercitar uma prática compreensiva das realidades sociais e também uma prática epistemológica sobre a cientificidade de suas próprias descobertas [23].

Neste sentido, Minayo [6] apoiada em teóricos como Levi-Strauss e Mauss corrobora os achados dos artigos ao apresentar algumas contribuições da antropologia para o campo da saúde e da enfermagem, a saber: a antropologia contribui para relativizar conceitos biomédicos; para desvendar a estrutura dos mecanismos terapêuticos; para mostrar relações entre saúde/doença e realidade social; para evidenciar de forma ampla e significativa os fenômenos que recobrem o campo da saúde e da doença; para a contextualização dos sujeitos; com formas de abordagem dos processos de saúde/doença.

A relevância da antropologia deve ser considerada ainda na formação dos profissionais de saúde. Não se pode, no contexto acadêmico, desvincular a antropologia de outras disciplinas que compõe a grade curricular, em especial dos cursos que formam profissionais de saúde, pois esta traz inúmeras contribuições que envolvem as reflexões em torno do processo saúde/doença, cultura e sociedade, bem como são fundamentais para se repensar em formulação de políticas públicas e planejamento dos serviços de saúde. Contribui profundamente também para os profissionais da saúde, uma vez que proporciona reflexões em torno do fenômeno saúde/doença, bem como relaciona aspectos sociais e culturais dos povos, ressaltando que o conhecimento biológico, por si só, não é suficiente para entender a complexidade desse fenômeno [19].

Jodelet [7], ao propor a abordagem multidimensional da saúde também colabora com este pensamento, concluindo que a antropologia amplia a possibilidade para a compreensão da saúde e da enfermagem, já que permite dar conta da complexidade dos processos que intervêm nas relações de saúde e na diversidade de experiência dos indivíduos e de sua participação nos cuidados.

Segundo a autora supracitada, para realizar este tipo de abordagem é necessário: entender o conceito de cultura e sua aplicabilidade; examinar os pontos de intervenção da cultura; examinar as pessoas implicadas na gestão da saúde e suas relações, tendo em vista que eles estão inscritos na sociedade, são portadores da cultura e constituem o sistema de ancoragem das evoluções da medicina e das redefinições de saúde e doença [7].

É cientificamente necessário que uma verdadeira antropologia da saúde tenha o foco no paciente, que deve ser encarado como um autêntico polo de conhecimentos, e realizar uma adequação das diferentes concepções de cultura aos problemas de saúde. A Teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural (TDUCC) e a etnoenfermagem, orientados pela antropologia propostas por Madeleine Leininger, são outros potentes instrumentos que emergiram a partir da análise dos artigos e que são utilizados para análises no campo da saúde, especificamente no campo da enfermagem [18].

 

Categoria 2: Importância da antropologia para compreensão do processo saúde- doença

 

A abordagem interpretativa proposta por alguns autores que trabalham com a antropologia da saúde tem se mostrado adequada para ampliar a compreensão do complexo processo de adoecimento e sofrimento [13]. A antropologia considera a saúde e tudo a ela relacionado como fenômenos culturalmente construídos e interpretados. Os estudos dessa disciplina buscam revelar a complexidade da experiência do processo saúde-doença, lançando mão da etnografia para descrever esse processo, que adquire relevância na voz, sob a forma narrativa, daqueles que compartilham a experiência de vivenciar, explicar e interpretar os fenômenos [17].

Sobre isto, Campos [24] adverte que a saúde é um traço cultural. Os valores, as concepções que se tem sobre saúde são sempre um traço cultural. Pensa-se em saúde muito na perspectiva da sobrevivência, anos de vida ganhos, defesa da vida. Do ponto de vista cultural, vida é também ligada ao prazer, ou seja, à intensidade da vida, à qualidade de vida. Quando a saúde valoriza muito a segurança, o interesse de sobreviver, sacrifica a intensidade de viver; quando se joga muito no gozo e no desejo, sacrifica-se a saúde. É a cultura que define os padrões sociais sobre o quê e quando comer, assim como a relação entre tipos de alimentos que devem ser combinados ou não, e, por conseguinte, a experiência de saciar a fome ou não é sociobiologicamente determinadas.

Costa e Gualda revelam que os comportamentos de uma população perante seus problemas de saúde, incluindo a utilização dos serviços médicos disponíveis, são construídos e partilhados a partir de universos socioculturais específicos e apontam a abordagem antropológica, a etnografia e o uso das narrativas como formas para apreender o modo de viver dos sujeitos em seu ambiente e favorecer a compreensão dos eventos relacionados ao processo saúde-doença [17].

A biomedicina como ciência trabalha com universais, no sentido que as doenças são concebidas como unidades universais cujas manifestações são independentes do contexto onde acontecem. Os pesquisadores da ciência biomédica acreditam que seus métodos positivistas revelam a vida objetivamente e aproxima ao que pode ser considerado "verdade", livre de valores, subjetividades e especificidades culturais. A visão de que existe um conhecimento único sobre doença e saúde torna-se uma barreira para entender as contribuições e implicações do relativismo antropológico. Guiado pelo princípio de relativismo, a antropologia entende que os saberes e práticas de qualquer sistema médico são construções socioculturais. Dessa forma, a própria ciência, como todos os sistemas de conhecimento, emergiu através de processos históricos e socioculturais, e não através da descoberta de leis únicas e universais que regem sobre o mundo real.

Já a antropologia busca não invalidar outros conhecimentos, mas relativizá-los, reconhecendo que existem outras maneiras de produzir o conhecimento sobre saúde e doença, e não só o da biomedicina. Existem sistemas médicos diversos e todos são construções socioculturais. Todos têm suas limitações em resolver os problemas de saúde [15]. A padronização/reestruturação das ações dos profissionais deve ter como objetivo ajudar os clientes a modificarem seus hábitos de vida para outros que sejam mais saudáveis, porém essas ações devem respeitar os padrões culturais destes clientes [20]. O cuidado deve ser permeado para que se possa assumir uma posição de observador das percepções que o indivíduo pode possuir sobre si mesmo e sobre o momento de adoecer. Quando o profissional reconhece o cliente deste processo, aproxima-se da formação de vínculos, do estabelecimento de uma relação, que deve possuir um caminho acolhedor e resolutivo, para se considerar uma assistência à saúde que garanta efetividade [20].

É necessário considerar que, sob a perspectiva antropológica, o universo sociocultural do doente é visto não mais como obstáculo maior à efetividade dos programas e práticas terapêuticas, mas como o contexto em que se enraízam as concepções sobre as doenças, as explicações fornecidas e os comportamentos diante delas. Essa perspectiva reorienta a percepção dos aspectos relacionados à efetividade das intervenções em saúde, considerando que a efetividade de uma política, programa, projeto, serviços e ações de saúde dependam da extensão em que a população aceita, utiliza e participa dos mesmos [21]. A ação de saúde inicia-se no encontro de subjetividades, objetivadas em ações concretas, em palavras que concordam ou discordam, manifestadas pelo silêncio ou por orientações, que podem ser seguidas ou não, e, às vezes, transformadas. Verifica-se que o olhar sobre o processo saúde-doença e as escolhas no processo de cuidar ocorrem em macros e microcontextos determinados socialmente e sob a égide de dimensões subjetivas e culturais [13]. Com isso, fenômeno do adoecimento deve ser compreendido como decorrente de uma relação do homem pelo seu entorno, considerando além dos fatores biológicos, a interação destes com o meio em que vivem, configurando-se este processo em uma relação multicausal. As concepções de saúde e doença são intrinsicamente influenciadas por fenômenos complexos que conjugam diversos fatores além dos biológicos, atualmente denominados de determinantes sociais da saúde [21].

 

Conclusão

 

Historicamente, a compreensão sobre saúde e doença, a relação existente entre ambas, suas determinações e seus condicionamentos envolveu diferentes aspectos que foram se conformando ao longo dos anos, de acordo com fatores sociais, culturais, políticos e econômicos. A cada conformação, uma nova concepção sobre saúde e doença emergia e trazia no seu bojo uma ressignificação para as ações e práticas desenvolvidas.

A saúde e a enfermagem são ciências que pressupõem uma ação, um agir, e um modus operandi. No entanto, é conveniente questionar qual ação, agir e modus operandi estas ciências abraçam. Seria a saúde? A doença? Ambas de forma isolada ou justapostas? Seria o contexto em que elas se apresentam? Ou, talvez, o universo de agentes envolvidos com a produção das mesmas?

Nesta revisão, a ciência da antropologia emerge como importante ferramenta para responder estas questões ao apresentar diferentes métodos e técnicas de pesquisa que podem ser utilizados para análise destes campos de conhecimento, assim como permitir uma compreensão ampliada sobre o processo saúde doença. Foi possível perceber a importância da antropologia para uma abordagem para além do biológico, já que a mesma considera a doença como uma construção social influenciada pela cultura e pela subjetividade, o que torna indispensável sua aproximação com as ciências da saúde. Identificou-se ainda que é possível superar as limitações do modelo biomédico, compreender melhor os modelos biopsicossocial e da determinação social da doença, assim como buscar maior integração entre os diferentes modelos existentes, já que a existência de um não exclui a importância do outro.

Apreendeu-se ainda que a saúde é um traço cultural orientada por valores, concepções e modos de vida, e que a cultura contribui para a construção social do que é saúde e doença. Legitima a forma como o ser humano lida com a vida, com seus interesses, assim como orienta o cuidado em saúde, as condutas dos profissionais de acordo com os diferentes contextos em que estão inseridos e o agir dos pacientes. A cultura, desta forma, orienta o dever dos profissionais e dos pacientes.

Conclui-se que os instrumentos metodológicos apresentados pela antropologia mostram-se essenciais na atualidade para compreensão e análise da saúde e da enfermagem. A aproximação e articulação entre os diferentes campos é essencial para produção de rupturas significativas no modo de pensar e fazer saúde.

 

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