ARTIGO
ORIGINAL
As
representações sociais de Iemanjá para seus devotos: apontamentos para o
cuidado de Enfermagem
Bruno Ferreira do
Serrado Barbosa, D.Sc.*, Antônio Marcos Gomes Tosoli, D.Sc.**, Magno Conceição
das Mercês, M.Sc.***, Gilmar Junker
Duarte****, Luiz Carlos Moraes França, M.Sc.*****,
Juliana de Lima Brandão******, Eudaci da Silva
Reis*******
*Enfermeiro,
Pós doutorando em Enfermagem pelo Programa de Pós-graduação em Enfermagem da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Docente da UniCBE e Fiscal do Coren/RJ,
**Enfermeiro, Professor Titular do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica
e do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ***Enfermeiro, Professor
Assistente do Departamento de Ciências da Vida e do Programa de Residência
Multiprofissional em Saúde da Universidade do Estado da Bahia(UNEB),
****Enfermeiro, graduado pela Universidade Gama Filho, *****Enfermeiro, Mestre
em Enfermagem pelo Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ******Enfermeira, Mestranda em Enfermagem pelo
Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), *******Enfermeira, Professora do Centro de Educação Limitada - Escola Técnica
Recebido em 6 de
fevereiro de 2019; aceito em 20 de abril de 2019.
Endereço
de correspondência:
Bruno Ferreira do Serrado Barbosa, Av. Boulevard 28 de Setembro, 157 Vila
Isabel, Sala 818, 20551-030 Rio de Janeiro RJ, E-mail: brunoenfe@gmail.com;
Antônio Marcos Gomes Tosoli: mtosoli@gmail.com; Magno
Conceição das Mercês: magnomerces@homail.com; Gilmar Junker
Duarte: gilmarjunker@yahoo.com.br; Luiz Carlos Moraes França:
lcmoraesfranca@hotmail.com; Juliana de Lima Brandão:
julianabrandao20@yahoo.com.br; Eudaci da Silva Reis:
novaiguaparaiso@gmail.com
Resumo
Objetivo: Identificar a
estrutura das representações sociais de Iemanjá na Cidade de Salvador para os
frequentadores de sua festa e analisar estas representações sociais como base
para o planejamento e a implementação do cuidado de enfermagem, em especial com
relação ao conforto na relação enfermeiro-paciente. Métodos: No contexto da psicologia social o presente configura-se
como estudo descritivo com abordagem qualitativa, alicerçado na teoria do
núcleo central das representações sociais, neste estudo sobre a representação
de Iemanjá. O campo da pesquisa foi a cidade de Salvador, Bahia, durante os
festejos de Iemanjá, onde 99 pessoas com idade superior a 18 anos participaram.
Resultados: O grupo estudado
compreendia devotos, fiéis ou simpatizantes de Iemanjá e outras pessoas que
estavam no local sem explicação definida e/ou trabalhavam na festa. O núcleo
central das representações sobre Iemanjá é constituído por conteúdos que
remetem três dimensões: prática, transcendental e afetiva. Conclusão: A estrutura representacional de Iemanjá entre os
participantes do estudo apresenta vertentes práticas, imagéticas e
transcendentais, que se estabelecem a partir de um processo dialógico-psico-contextual e os elementos que envolvem a
Iemanjá, principalmente a fé, pode ser imprescindível para vinculação,
compreensão e participação do paciente em dinâmicas assistências de Enfermagem.
Palavras-chave: religião, enfermagem,
espiritualidade.
Abstract
The
social representations of Iemanjá for its devotees:
notes for Nursing care
Objective: To identify
the structure of the social representations of Iemanjá
in the city of Salvador for the attendees of their party and to analyze these
social representations as a basis for the planning and implementation of
nursing care, especially with regard to the comfort in
the nurse-patient relationship. Methods:
In the context of social psychology the present is a descriptive study with a
qualitative approach, based on the central core theory of social
representations, in this study on the representation of Iemanjá.
The field of research was the city of Salvador, Bahia, during the celebrations
of Iemanjá, with 99 people over the age of 18
participated. Results: The group
studied was devotees, faithful or Iemanjá sympathizer
and other people who were in the place without definite explanation and / or
worked at the party. The central core of the representations on Iemanjá consists of contents that refer to three
dimensions: practical, transcendental and affective. Conclusion: Iemanjá's representational
structure among the participants of the study presents practical, imagistic and
transcendental aspects that are established through a
dialogical-psycho-contextual process and the elements that involve the Iemanjá entity, especially faith, may be indispensable for
linkage, understanding and participation of the patient in dynamic Nursing
care.
Key-words: religion,
nursing, spirituality.
Resumen
Las representaciones
sociales de Iemanjá para sus devotos: apuntes para el cuidado de Enfermería
Objetivo: Identificar la estructura de las representaciones sociales de Iemanjá en la Ciudad de Salvador para los asistentes de su fiesta y analizar
estas representaciones sociales
como base para la planificación
y la implementación del cuidado de enfermería, en especial con relación al confort en la relación
enfermero-paciente. Métodos: En el
contexto de la psicología
social el presente se configura como un estudio descriptivo
con abordaje cualitativo, basado en la teoría
del núcleo central de las representaciones sociales, en ese estudio
sobre la representación de
Iemanjá. El campo de la investigación
fue la ciudad
de Salvador, Bahía, durante los
festejos de Iemanjá, donde 99 personas mayores de 18 años participaron. Resultados: El grupo estudiado
comprendía devotos, fieles o simpatizantes de Iemanjá y otras
personas que estaban en el lugar sin explicación
definida y / o trabajaban en
la fiesta. El núcleo
central de las representaciones
sobre Iemanjá está constituido por contenidos que remiten tres dimensiones: práctica, trascendental y afectiva. Conclusión: La estructura representacional de Iemanjá entre los participantes del estudio presenta vertientes prácticas, imagéticas y trascendentales,
que se establecen a partir de un
proceso dialógico-psico-contextual
y los elementos que involucran
a la entidad Iemanjá,
principalmente la fe, puede ser imprescindible para vinculación, comprensión y participación del paciente en dinámicas asistencias
de Enfermería.
Palabras-clave: religión,
enfermería, espiritualidad.
Contextualizar sobre os
orixás e entidades perpassa por caminhos mais longos e distantes, que remetem
diretamente às religiões de matriz africana. Essa discussão é repleta de
simbolismos e interiorizações conceituais que devido ao preconceito e a
necessidade de respeito ao outro e suas crenças foi preciso promulgar a lei de
nº 10639/03, que institui a inclusão do ensino da cultura afro-brasileira e
indígena nas escolas de todo o país, lei esta que emergiu inerente à identidade
nacional, promovendo ações afirmativas em torno da identidade histórica e
social da população negra mediante uma educação que possibilite uma pluralidade
étnica e cultural na sociedade [1].
Quando citamos religião
de matriz africana a raiz destas discussões nos remete ao Candomblé, que tem
sua origem na Bahia, relacionada com a chegada dos negros como escravos vindos
de diversas regiões africanas. Estes foram catequizados pelos padres das
cidades e dos engenhos, e posteriormente os negros fundiram suas divindades com
os santos católicos, não deixando de adorar seus deuses originais [2].
Pode-se definir o
candomblé para a população escravizada africana como uma comunidade espiritual
que auxiliava aos seus membros a sentirem-se seguros e estáveis em um lugar
inóspito onde o culto a seus orixás, feito através de danças e cantos
tradicionais da cultura africana, ainda era realizado promovendo conforto. O
culto e a ritualística eram em sua própria língua sincretizado com os santos
católicos como São Jerônimo sendo Xangô, Santa Bárbara como Iansã, o senhor do
Bonfim como Oxalá, São Jorge como Oxossi e Maria como Iemanjá. Esse sincretismo
é considerado como o conector ao longo do tempo para a manutenção da tradição;
algo que possibilitou aos senhores de engenho satisfação pela ligação ao
catolicismo de seus escravos, sendo, porém, mantida a realização de cantos e
danças voltadas as divindades visando receber os louvores. Tanto os senhores de
Engenho quanto o governo incentivavam a ritualística como batuques temendo que
o exílio/escravidão criasse entre os negros originários de nações africanas
rivais entre si a união para o enfrentamento desta díficil e degradante
situação [3].
Dentre essas divindades
africanas aqui nos cabe falar de Iemanjá, em que seus cultos se aportaram no
Brasil aproximadamente entre o final do século XVII e início do século XVIII.
Essa divindade veio com a chegada da etnia Ebá, uma das últimas inseridas no
Brasil. Iemanjá, assim como todos os orixás africanos foram familiarizados e
tiveram forças/poderes atribuídos, logo se tornou a Rainha do Mar e dona de
tudo em relação aos mares brasileiros; e somado a isso “embranqueceu”, ganhou
traços europeus, reduziu suas formas, ganhou vestes, trocou a bacia na cabeça
por uma coroa, o corpo nu foi vestido, dessa forma Iemanjá abrasileirou-se [4].
A tradicional festa à
iemanjá em Salvador não tem sua fundação católica e muito menos vinda dos
cultos do candomblé, tendo nascido da iniciativa dos pescadores do Rio
Vermelho, em meados de 1920. Trata-se da Festa de Nossa Senhora Santana, mais
especificamente, que veio sendo re-significada ao longo do tempo: sem a lavagem
da igreja, a procissão que acontecia ao seu redor, aos sábados, e até mesmo a
romaria das jangadas, também deixada de lado. Temendo perder a possibilidade de
exaltar sua crença o mesmo que aconteceu com as outras festas das praias de
Salvador e até o possível esquecimento da Festa no Rio Vermelho, alguns
pescadores reunidos resolveram eleger um dia para presentear a Mãe-d’Água; que
foi Dois de Fevereiro, definido como dia de Nossa Senhora das Candeias [5].
Entender e discutir as
festas populares como um todo requer o usoo de uma teoria que norteie seu
desvelar, sendo assim tem-se na Teoria das representações sociais uma grande
aliada. Serge Moscovici, em 1961, na França, deu início ao que entendemos por
Teoria das Representações Sociais, com a pesquisa “La Psychanalyse: son image
et son public” [6]. Moscovici menciona que “a representação social é uma
modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de
comportamentos e a comunicação entre os indivíduos” [6], sendo esta uma teoria
utilizada para explicar as percepções que já existem acerca de realidades ou
fenômenos sociais. Neste sentido, este mesmo autor refere que por
representações sociais entendemos um conjunto de conceitos, proposições e
explicações originado na vida cotidiana no curso de comunicações interpessoais.
Elas são o equivalente, em nossa sociedade, dos mitos e sistemas de crenças das
sociedades tradicionais; podem também ser vistas como a versão contemporânea do
senso comum [7].
Com relação às
representações sociais, Jodelet [8] considera que são sistemas de interpretação
que regem a nossa relação com o mundo e com os outros, orientam e organizam as
condutas e as comunicações sociais. Da mesma forma, elas intervêm em processos
variados, tais como a difusão e a assimilação de conhecimentos, o
desenvolvimento individual e coletivo, a definição das identidades pessoais e
sociais, a expressão dos grupos e as transformações sociais. A representação
social é uma forma de saber eminentemente prático que realiza a conexão entre
um sujeito e um objeto. A partir daí, podemos afirmar que uma representação
social pode ser entendida como uma visão de mundo expressa em determinado
fenômeno social, impregnada de concepções individuais, da história individual e
social de cada pessoa que se transforma num pensamento coletivo [8].
Considerando a
existência de referenciais na literatura que mostram que atos coletivos
religiosos estabelecem nexos concretos com suas representações [9];
considerando os grandes números devotos que se reúnem em Salvador com o
objetivo de comemorar e festejar Iemanjá todos os anos, bem como a importância
da utilização de referenciais teóricos para a investigação e elucidação de
objetos de pesquisa, essas concepções orientaram e justificam preliminarmente a
motivação para a elaboração do presente estudo, que tem por objeto de
investigação as representações sociais de Iemanjá entre devotos na Cidade de
Salvador.
Não se esquecendo da
necessidade de se perpassar pelo contexto da espiritualidade e seus reflexos no
cotidiano da Enfermagem, uma vez que saiba perceber, discutir e vivenciar
estará apta a auxiliar ao paciente dentro das mais diversas perspectivas,
incluindo a espiritual.
Desta forma, os
objetivos deste estudo consistem em: identificar a estrutura das representações
sociais de Iemanjá na Cidade de Salvador para os frequentadores de sua festa e
analisar estas representações sociais como base para o planejamento e a
implementação do cuidado de enfermagem, em especial com relação ao conforto na
relação enfermeiro-paciente.
Considerando o exposto,
releva-se o caráter deste estudo: as suas possibilidades de contribuição e
aprofundamento sobre o assunto, à medida que possa ampliar a literatura
existente sobre a temática e, ao mesmo tempo, favorecer a reflexão e a geração
de novos conhecimentos que possam contribuir para fomentar argumentos
necessários ao seu debate no âmbito do ensino e da pesquisa em Psicologia
Social e áreas afins, facilitando a compreensão do que é observado em relação
ao fenômeno na cidade de Salvador, proporcionando outras maneiras de pensar,
agir.
No contexto da
psicologia social o presente estudo configura-se como um estudo descritivo com
abordagem qualitativa, alicerçado na teoria do núcleo central (TNC) das
representações sociais [10,11].
Pode-se definir a
Teoria das Representações Sociais como uma agregação de crenças, de opiniões,
de informações e de atitudes a propósito de um dado objeto social, logo a
representação se estrutura com elementos que formam um núcleo central de
maneira específica que dão significado à representação. Ao redor desse núcleo
central, com uma conotação mais concreta e acessível com funções de regulação,
concretização e defesa desse núcleo têm-se elementos periféricos [10].
O estudo integra o
projeto intitulado “Religares - Religiosidade e Espiritualidade no Contexto do
Cuidado de Enfermagem e Saúde: Produção discursiva e Representações Sociais”,
aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com o parecer nº
06246419.7.1001.8144.
O campo da pesquisa foi
à cidade de Salvador na Bahia, durante os festejos de Iemanjá, onde 99 pessoas
com idade superior a 18 anos participaram. Não participaram aqueles que não
tiveram disponibilidade para responder aos instrumentos de coleta de dados e/ou
não acataram o termo de consentimento livre e esclarecido. Os dados foram
coletados no mês de fevereiro, dia 02, no ano de 2017, por meio das técnicas de
questionário e de evocações livres de palavras, para a obtenção,
respectivamente, dos dados sociodemográficos e dos conteúdos semânticos da
representação. A técnica de evocação, diferentemente de outras técnicas de
coleta de dados, possibilita a obtenção dos conteúdos de maneira rápida e
objetiva [12]. Aplicou-se inicialmente a técnica de evocação solicitando aos
participantes, individualmente, que falassem cinco palavras ao termo indutor
“Iemanjá” e em seguida que preenchessem o questionário.
Foram registrados na
planilha do software Excel e depois organizados em tabelas com frequências
absolutas e relativas todos os dados das evocações. Esses dados foram
organizados em um corpus e analisado pela técnica do Quadro de Quatro Casas com
o software EVOC 2005, que calcula a frequência de ocorrência de cada palavra
evocada e sua média ponderada de ocorrência em função da ordem de evocação,
além apresentar a média das ordens médias ponderadas do conjunto das palavras
evocadas, direcionando a formação do Quadro de Quatro Casas [12].
Os conteúdos ficam
dispostos em quatro quadrantes como elementos centrais que ficam apresentados no
quadrante superior esquerdo como possível núcleo central da representação e os
periféricos, que se organizam em torno do núcleo central sendo os componentes
mais acessíveis e concretos da representação [10]. Sob a égide da Teoria do
Núcleo Central e com esta organização em quadro de casas, os conteúdos foram
analisados visando apurar a quantidade de laços ou enlaces existentes entre os
elementos identificados como participantes da representação social em tela.
No grupo estudado, composto
por 99 participantes que estavam compreendidos entre devotos, fiéis ou
simpatizantes de Iemanjá e outras pessoas que estavam no local sem explicação
definida e /ou trabalhavam na festa 35 (35,3%) são do sexo masculino e 64
(64,6%) do sexo feminino, a faixa etária encontrada varia de 18 a 80 anos de
idade Em relação à religião, 50 (50,5%) se declararam católicos, 12 (12,1%)
umbandistas, 11 (11,1%) candomblecistas, 7 (7,07%) espíritas, 3 (3,03%)
protestantes, 1 (1,01 %) espiritualistas, 1 (1,01%) budistas e 14 afirmaram não
professar nenhuma religião, destes 11 (78,5%) afirmaram acreditar em Deus. Em
relação à escolaridade podemos constatar 18 (18,1%) possuem ensino fundamental,
33 (33,3%) possuem ensino médio, 47 (47,4%) possuem ensino superior e 1 (1%)
não relatou seu nível de escolaridade.
Em relação à questão de
logradouro dos 99 participantes, temos que 91 (91,9%) residiam no estado da
Bahia, e destes 75 (82,4%) eram da cidade de Salvador e 16 (17,5%) de outras
localidades, além destes 7 (7,07%) residiam em outros estados do Brasil (três
em São Paulo, três no Rio de Janeiro e um em Minas Gerais. Um participante (1%)
residia em Nova Iorque, Estados Unidos. Acredita-se que o fato da maior parte dos participantes do estudo residirem na
cidade de Salvador, por ser localidade da festa, cabe ressaltar que a presença
de pessoas de outras localidades deve-se tipicamente ao turismo com vistas a
conhecer patrimônios históricos e vivenciar outras culturas [13].
Em relação ao motivo
pelo qual participavam da festa, 34 participantes (34,3%) referiram que sempre
frequentam; 23(23,2%) afirmaram que foram agradecer graças alcançadas; 13
(13,1%) atrelaram sua presença por terem sido convidados por amigos /
familiares / conhecidos; 05 (5,05%) porque foram cumprir promessas e 01 (1,01%)
declararam ter ido pela primeira vez e 17 (17,1%) referiram outros motivos,
tais como trabalho, sonhos, fé, desejo, cultura e herança familiar. Destaca-se
que as representações dos participantes acabam por incentivar e se tornar fonte
de motivação para as pessoas agirem e, dessa forma, seguirem no desenvolvimento
do evento [14].
Quando
questionados, em
relação aos momentos de dificuldade vivenciados e
alegrias no seu dia-a-dia,
qual das divindades/entidades são mais próximas,
destacam-se: a figura de Deus foi apontada por 31 (31,3%),
Iemanjá
apontada por 23 pessoas (23,2%), Jesus por 10 (10,1%), Nossa senhora
por 7
(7,07%), São Jorge por 6 (6,06%) e Iansã por 2 (2,02%).
Caboclos por 1 (1,01%)
e Espírito Santo por 1 (1,01%) também foram referidos
pelos membros desse
grupo. Nove participantes (9,09%) citaram outras divindades (Ogum, Omulu, Oxalá, Logun Edé) e um (1,01%) não respondeu à questão.
Em
relação aos
resultados das evocações livres, o software EVOC
versão 2005 contabilizou 503
palavras evocadas, sendo 137 diferentes. Considerando que se adotou
como
frequência mínima 7, encontrou-se a frequência
média igual a 21, e a média das ordens médias
de evocação (O.M.E) igual a 2,9, numa
escala de 1 a 5. A análise combinada desses dados resultou na
organização dos
conteúdos apresentada no Quadro 1, a seguir.
Quadro 1 - Quadro de Quatro Casas dos conteúdos evocados pelas pessoas com o termo
indutor “Iemanjá”. Salvador, Bahia, Brasil, 2019. (n = 99 participantes).
O Quadro de Quatro
Casas revela que no quadrante superior esquerdo estão os termos mar, mãe e ter-fé que, pela combinação dos critérios de frequência (≥
21) e de ordem média de importância (≤ 2,9) compõem o provável núcleo
central da representação social do grupo. O núcleo central possui função
geradora, à medida que é elemento através do qual se cria e também se modificam
outros elementos da representação; função organizadora, a partir do momento em
que une e organiza os elementos de uma representação e função estabilizadora,
pois estabiliza a representação, sendo mais resistente a mudanças [10,11].
Organizados ao redor do
núcleo central, os elementos periféricos mais acessíveis possuem uma associação
às características individuais e às vivências do cotidiano [15]. Essa periferia
pode denotar a diversidade do grupo de participantes do estudo e expor as
próprias contradições, cabendo ainda a possibilidade de ser evolutivo e
sensível ao contexto imediato de inserção destes na sociedade [11].
Na zona de contraste,
no quadrante inferior esquerdo notamos a evocação de termos com baixa
frequência, não menos importantes e/ou insignificantes aos participantes na
construção de suas representações acerca de Iemanjá, uma vez que foram
prontamente evocados, apresentando O.M.E. < 2,9.
Na primeira periferia,
no quadrante superior direito, nota-se a presença do termo amor. Embora esse
termo apareça no quadrante 22 vezes, ele não foi tão prontamente evocado,
apresentando uma O. M. E > 2,9. Neste quadrante habitualmente estão os
elementos periféricos, os mais importantes da representação, com elevado
potencial para reforçar os elementos do núcleo central.
No quadrante de segunda
periferia, o inferior direito do quadro de quatro casas, podemos observar os
seguintes termos: alegria, axé, cultura, devoção, festa, luz, prosperidade e
religião. Sobre esses termos, podemos inferir que possuem menor frequência e
mais tardiamente evocados, podendo assim serem considerados menos importantes
para a conformação do significado da representação [10,12].
A superação da
dicotomia sujeito e objeto pode ser observada como o alicerce da Teoria das
Representações Sociais, sendo este objeto disposto em um contexto ativo aceito
pelo indivíduo ou pelo grupo, toda a realidade, assim, pode ser representada
[15].
[...]
nós propomos que não existe uma realidade objetiva a priori, mas sim que toda
realidade é representada, quer dizer, reapropriada
pelo indivíduo ou pelo grupo, reconstruída no seu sistema cognitivo, integrada
no seu sistema de valores, dependente de sua história e do seu contexto social
e ideológico que o cerca [15].
Pode-se definir a
representação social como um horizonte funcional do mundo, que viabiliza aos
indivíduos e grupos nortearem suas condutas e compreenderem, a partir de seus
próprios cenários de referência, a realidade. Dessa maneira:
A
representação funciona como um sistema de
interpretação da realidade que rege
as relações dos indivíduos com o seu meio
físico e social, ela vai determinar
seus comportamentos e suas práticas. A
representação é um guia para a ação,
ela
orienta as ações e as relações sociais. Ela
é um sistema de pré-decodificação
da realidade porque ela determina um conjunto de
antecipações e expectativas
[15].
Através destas
concepções é possível compreender mais facilmente os conteúdos
representacionais dos participantes dos festejos de Iemanjá que ocorrem na
cidade de Salvador, na Bahia.
Verifica-se que o
provável núcleo central das representações sobre Iemanjá, exposto no quadro de Quatro
Casas, é constituído por conteúdos que remetem a três dimensões: prática,
transcendental e afetiva. Em relação à dimensão prática temos a expressão ter
fé, que é uma expressão do pensamento social entranhada em uma relação de
crença, produzida de forma coletiva e historicamente determinada. Essa evocação
expressa um modo de viver, que garante a identidade e a motivação do grupo de
participantes em estarem como devotos no local da festa para homenagear a divindade
[15].
Para
a Enfermagem,
compreender o que é fé e o que a mesma representa na vida
de um indivíduo ou
coletividade é de suma importância, uma vez que deve ser
respeitada e é algo implícito ao ser humano.
Contextos que permeiam a fé como a espiritualidade
e a religião podem auxiliar a pacientes que passam pelo processo
de adoecimento
e também a equipe de enfermagem a lidar com o processo
de morte e morrer nas diversas situações e condições que este pode ocasionar
[16]. A palavra fé vem do grego ”pistia”
que denota a ação de crer em algo e no latim “fides”, que remete para uma ação
de ser fiel [17].
“Ter-fé”,
conteúdo evocado entre os participantes de forma majoritária, é o elemento que
sustenta o provável núcleo central, visto como a parte não negociável da representação
[15]. Apresentado como uma ação humana de enraizamento integral na realidade,
“ter fé” é poder conferir sentido ao passado, e no que diz respeito ao futuro
remeter a paciência e esperança. Ter fé, em Iemanjá pode ser visto como ato de acreditar
na sua existência e também na sua onisciência [17].
São mantidas as
dimensões transcendentais, a partir da fé, que podem promover a paz e a
proteção para vivenciar o cotidiano. Esse cotidiano, no que tange a área da
saúde, as crenças espirituais e religiosas tão ligadas à fé têm sido
apresentadas como importantes elementos de qualidade de vida nas sociedades.
Profissionais de saúde, especificamente a Enfermagem, pesquisadores e a
população em geral têm reafirmado a magnitude da dimensão religiosa e
espiritual para a saúde física e mental das pessoas [18].
Os conteúdos
representacionais estabelecem sentidos concretos com o imaginário consensual
que envolve o caráter religioso. Destaca-se que suas crenças configuram uma
forma de aproximação com suas consciências espirituais, sem deixar de estarem
inseridas em sua cultura [17].
Organizados em torno do
núcleo central estão os elementos periféricos, que são os componentes mais
acessíveis e associados às características individuais e às experiências
cotidianas. Elementos estes que desempenham as funções de concretização, de
regulação, de prescrição de comportamentos, de proteção do núcleo central e de
personalização [15].
Podemos dizer que estas
funções são expostas nos outros quadrantes do Quadro de Quatro Casas, onde se
pode inferir que a elaboração de valores que norteiam e definem a conduta na
dimensão pessoal do viver são fomentados pela ligação das pessoas com suas
comunidades religiosas e espirituais [17]. O termo amor, evocado e disposto no
quadrante superior direito como primeira periferia reforçando o núcleo central
reafirma a existência de uma dimensão afetiva da representação e, ao mesmo
tempo, normativa, comum e recomendada historicamente como ação a ser praticada
entre os homens no que concerne à igreja Católica
(maior incidência de católicos no estudo) e também por
outras religiões.
No quadrante inferior
esquerdo são revelados os conteúdos representacionais e, no presente caso, não apresentam
elementos de contraste com o núcleo central. Pelo contrário, ratificam as
funções supramencionadas acerca do sistema periférico. Tem uma imagem remetendo
a prática como força e proteção, além do elemento paz que promove
ligação com o transcendente e o termo orixá que traz consigo a
delimitação como força natural e também elemento
representacional de religiões de matriz africana. Assim podemos destacar que no
cerne das religiões há um ethos da
transcendência, capaz de colocar um referencial supremo além do indivíduo e,
sobretudo, além do individualismo [17].
As
práticas religiosas
podem intervir no processo saúde-doença ao
atingirem conotações de
integração ou até de desintegração,
saber e compreender a questão da relação
deste indivíduo com a religião é importante,
principalmente para a Enfermagem,
porque têm grande significado nos rituais de nascimento, morte e
visões sobre
saúde e doença [19,20]. Como elementos importantes para a
prática da enfermagem
a religião e a espiritualidade são pressupostos que
permeiam a trajetória da profissão ao longo dos anos e está embutida no pensar, no ser e
no fazer da
profissão. Esta
ligação com o
transcendente, expostos no quadrante inferior esquerdo, se apresentam
como requisito
necessário à prática profissional como meta a ser
cumprida. Watson, em sua
Teoria do Cuidado Transpessoal, destaca que “a força
interna do ser, sua força
espiritual, é capaz de transformar, de curar. [...] para que
isso seja
possível, os cuidadores devem reconhecer primeiro em si mesmo
esse potencial,
como uma postura filosófica, de forma a acreditarem na
força interna de todo
ser humano” [21]. Entender essa ligação,
devoção espiritual requer compreender
a influência que cada época e lugar podem fomentar.
No quadrante inferior
direito (segunda periferia), elementos práticos também podem ser observados.
Nessas dimensões práticas, ligadas à fé, a divindade é considerada milagrosa
e existe uma correlação de gratidão a ela. Ainda no campo prático temos a
evocação dos termos devoção e axé.
Nota-se ainda neste
quadrante os elementos de institucionalização como o termo religião, isso sem
deixar de citar os termos que popularizam a entrada de Iemanjá no contexto do
indivíduo e coletividade como festa e cultura. Não se trata de pensar ou
repensar a realidade de Iemanjá, mas sim de compreender como os
participantes vivem a partir das representações por eles construídas [22].
Faz-se imperioso
compreender que as necessidades espirituais se tornam
mais fortes em ocasiões em que doenças ameaçam modificar a vida ou seu modo de
viver. O buscar apoio e conforto na religião
e nas divindades, a exemplo de Iemanjá, podem vir a reduzir o estresse emocional, causado por perdas
ou mudanças derivadas de adoecimento, pois através desse suporte, o paciente
pode remeter ao transcendente o foco de seus problemas e/ou compreender que o adoecimento
é algo necessário a se passar e assim o sofrimento ganha conotação de plausível
e suportável.
Os elementos que
envolvem Iemanjá, principalmente a fé, podem ser imprescindíveis
para vinculação, compreensão e participação do paciente em dinâmicas
assistências de Enfermagem. Uma vez que o enfermeiro saiba observar tais
elementos e inserir no seu cotidiano do cuidado, atrelado a teorias, como a de
Watson [23,24], por exemplo, a melhora na condição clínica ou simplesmente a
compreensão do caráter, por vezes paliativo de um cuidado, será fundamental na
relação enfermeiro-paciente.
As comemorações que
envolvem o dia de Iemanjá na cidade de Salvador na Bahia apresentam momentos de
caráter especiais na existência da cidade e de todos aqueles que participam dos
eventos dedicados a esta divindade. Verificou-se que a estrutura
representacional de Iemanjá entre os participantes do estudo apresenta
vertentes práticas, imagéticas e transcendentais, que se estabelecem a partir
de um processo dialógico-psico-contextual. Portanto,
os conteúdos representacionais estabelecem nexos sociais, políticos, culturais
e religiosos que modulam o seu universo de crenças e valores, sendo capazes de
influenciar suas formas de ser, de lidarem e darem sentido às vivências do
cotidiano e de se conectar com o próprio divino.
Interpretar e encontrar
subsídios para desvelar os conteúdos das representações sociais de Iemanjá
através das evocações dos participantes nos eventos comemorativos que ocorrem
na Cidade de Salvador na Bahia, dada a complexidade do assunto, as
peculiaridades do tema e as próprias dinâmicas internas que se apresentam nas
interações que se processam no cenário social, não são consideradas fáceis. As
aproximações teóricas da abordagem estrutural, porém, possibilitaram o estabelecimento
de nexos concretos que facilitaram a compreensão dos conteúdos que fomentam a
construção das representações sociais, enquanto um processo dinâmico, fluido e
de típica recriação humana.
Dessa forma, a
utilização da abordagem estrutural da Teoria das Representações Sociais
mostrou-se oportuna, pois ratificou heuristicamente o valor da abordagem e da
teoria utilizada para fundamentar essa investigação, como contribuintes para a
elaboração de instrumentos conceituais para pensar criticamente e conhecer de
maneira mais aprofundada a realidade, as relações e interações estabelecidas
entre os participantes do estudo com a divindade em questão, sobretudo no espaço
sagrado em que os dados foram coletados.
Especificamente no
campo da saúde a percepção das necessidades de ordem espiritual é
significativamente importante. Mesmo sendo de difícil mensuração do impacto da
espiritualidade sobre a saúde, é possível notarmos um grande interesse por
parte da comunidade científica na área da saúde, que sinalizam a relação
positiva entre a espiritualidade e a saúde, sem delimitar a vertente religiosa;
uma vez que potencializam a ampliação dos níveis de felicidade.
Falar de
espiritualidade em relação à saúde e não falar de imagens e
símbolos/instituições religiosas ainda é um grande obstáculo, quando essa
imagem se trata de uma divindade de matriz africana como Iemanjá os preconceitos
e os obstáculos, que sempre existiram quando se trata de pesquisar o efeito da
espiritualidade na saúde, é ampliado. A associação se deve as formas como se
construíram essas ideias que hoje geram os preconceitos e a consequente
dificuldade dos profissionais de saúde em abordar esse tema dentro do contexto
biomédico. Essa preparação do profissional de saúde, em nosso estudo o de Enfermagem,
deve ocorrer ainda em seu processo de formação com vistas a compreensão dos
significados da espiritualidade para auxiliá-lo no cotidiano da profissão.
Ao falarmos
especificamente de Iemanjá, os elementos que a envolvem pode
servir de subsídio na maximização da relação enfermeiro-paciente e assim
subsidiar o cuidado de Enfermagem em seus diversos cenários: desde a atenção
básica até os cuidados de maior complexidade, perpassando pelo processo de
morte e morrer.
O conforto e a
renovação, esse trazido pela imagem do mar, podem ser utilizados como
ferramentas na relação e obtenção de resultados positivos ao cuidar.
Independente do seguimento religioso do profissional de Enfermagem, este deve
conhecer as religiões dos pacientes não deixando de encorajar e reforçar essas
crenças. Trazer à tona a imagem Iemanjá como mãe reforça a ideia de conforto,
apoio e segurança, algo que pode ser extremamente positivo na relação
enfermeiro-paciente e para fins de adesão ao processo terapêutico.
Ressaltamos a vigente
escassez de produções que nos direcionem aos caminhos da abordagem da
espiritualidade na saúde, sendo essa escassez reflexo do pudor em se tratar do
tema, algo que esperamos ampliar com o advento deste estudo.