REVISÃO
Contributos da música
na reabilitação da pessoa após acidente vascular cerebral
Raquel
Alexandra Teixeira da Silva*, Olga Maria Pimenta Lopes Ribeiro**, Hugo Filipe
dos Santos Neves***
*Enfermeira no Centro
Hospitalar São João, Mestranda em Enfermagem de Reabilitação na Escola Superior
de Saúde de Santa Maria (ESSSM), Portugal, **Professora adjunta na Escola
Superior de Enfermagem do Porto, Investigadora integrada no Centro de
Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS), ***Enfermeiro no
Centro Hospitalar São João, Especialista em
Enfermagem de Reabilitação
Recebido
29 de abril de 2019; aceito 15 de setembro de 2019.
Correspondência: Raquel Alexandra
Teixeira da Silva, Escola Superior de Saúde de Santa MariaTv.
de Antero de Quental 173 175, 4049-024 Porto, Portugal
Raquel
Alexandra Teixeira da Silva: raquelalexsilva.silva@gmail.com
Olga
Maria Pimenta Lopes Ribeiro: olgaribeiro25@hotmail.com
Hugo
Filipe dos Santos Neves: hugoneves1988@gmail.com
Resumo
Objetivo: Determinar os
contributos da música na reabilitação da pessoa após acidente vascular
cerebral. Métodos: Trata-se de uma
revisão integrativa, cuja colheita de dados foi realizada em abril de 2019 nas
bases de dados Medline, Cinahl
e Pubmed. Resultados:
A análise dos 12 artigos incluídos no estudo permitiu identificar várias
intervenções com recurso à música que obtiveram como resultado melhorias a
diversos níveis entre eles, nomeadamente na marcha, força, equilíbrio,
habilidades motoras, humor e comunicação. Conclusão:
As evidências demonstram que o desenvolvimento e a implementação de programas
de reabilitação com recurso à música contribuem para a recuperação da pessoa
após AVC.
Palavras-chave: musicoterapia,
música, acidente vascular cerebral, reabilitação.
Abstract
Contributions of
music in the rehabilitation of people after stroke
Objective: To
determine the contributions
of music in the rehabilitation of people after
stroke. Methods: This is
an integrative review collected in April 2019 from the Medline,
Cinahl and Pubmed databases. Results: The analysis of the
12 articles included in the study allowed
us to identify
various interventions using music that
resulted in improvements at various levels,
including gait, strength, balance, motor skills, humor and
communication. Conclusion:
Evidence shows that the development and implementation of rehabilitation programs using music contribute to the recovery
of the person
after stroke.
Key-words: music
therapy, music, stroke, rehabilitation.
Resumen
Contribuciones de la
música en la rehabilitación de personas después
de un accidente cerebrovascular
Objetivo: Determinar las contribuciones de la música en la
rehabilitación de personas después
de un accidente
cerebrovascular. Métodos: Esta es una
revisión integradora, que se recopiló
en abril de 2019 de las
bases de datos Medline, Cinahl y Pubmed. Resultados: El análisis
de los 12 artículos incluidos
en el estudio
identificó varias
intervenciones usando música que dieron como
resultado mejoras en varios niveles, incluyendo
marcha, fuerza, equilibrio,
habilidades motoras, humor y comunicación. Conclusión: La evidencia muestra que el desarrollo y la implementación de programas de
rehabilitación que usan
música contribuyen a la recuperación de la persona después del accidente
cerebrovascular.
Palabras-clave: musicoterapia, música, accidente
cerebrovascular, rehabilitación.
O Acidente Vascular Cerebral (AVC) é
caracterizado por uma interrupção sanguínea a nível cerebral, podendo esta ser
causada pela existência de coágulos (AVC isquémico)
ou até mesmo rotura do vaso (AVC hemorrágico). Determinado pelo défice de
nutrientes e oxigénio, na região afetada, o AVC pode provocar várias
manifestações influenciadas pelo tipo, local e extensão da lesão [1].
De facto, apesar de a sintomatologia ser
variável, podemos afirmar que o AVC, de modo generalizado, poderá provocar
défices a vários níveis: consciência, visão, fala, linguagem, força,
sensibilidade, equilíbrio, marcha, incontinência de esfíncteres, etc. [2]. A
pessoa, após AVC, vivência diversos graus de incapacidade e morbilidade,
com consequente alteração do quotidiano da pessoa e família, com repercussões a
nível financeiro e sobrecarga familiar [3].
O trauma psicológico é também descrito como uma
consequência do AVC, em que a pessoa experimenta sentimentos negativos, entre
eles a ansiedade, alterações do humor, medo, frustração e tristeza [4].
O AVC, pelas suas manifestações e
consequências, é considerado a principal causa de incapacidade a longo prazo a
nível mundial [5]. Estima-se que cerca de 80% da carga econômica de doenças
cerebrais é devido a custos de tratamento e respetivos cuidados [6]. Razões
estas que reforçam a necessidade de avanços científicos na recuperação da
pessoa após AVC.
O início de um programa de reabilitação o mais
precoce possível é crucial na recuperação após AVC, devendo envolver a família
e uma equipe multidisciplinar, facilitando assim a transição para a nova
condição de vida [7]. Alguns autores defendem que na fase aguda do AVC os
ganhos funcionais advêm de um processo espontâneo de recuperação, associado à
redução do edema cerebral, absorção no tecido lesado e aumento do fluxo
sanguíneo [8]. Porém, vários investigadores comprovam, através de estudos
experimentais, que a reabilitação na fase crônica do AVC é um desafio que permite
alcançar ganhos em saúde, nomeadamente a nível motor e cognitivo [9,10]. Um
estudo de grande escala, realizado nos Estados Unidos da América, revela que
poderão existir melhorias funcionais até um ano após AVC [7].
A música é, historicamente, vista como uma
forma de expressão do ser humano e desde o século V a.C. que existe
conhecimento de que a música afeta a saúde e o bem-estar [11]. Todavia, apenas
na II Guerra Mundial, nos Estados Unidos da América, é que a música foi
utilizada em contexto hospitalar com o objetivo de relaxar e proporcionar
efeitos sedativos aos feridos, surgindo assim a necessidade de investigar sobre
os benefícios da música [12].
A utilização da música por profissionais de
saúde com fim terapêutico tem permitido identificar diversos benefícios, porém
denota-se uma grande heterogeneidade no método utilizado e na intervenção
escolhida [12]. Considerando que até o nível da nomeação da intervenção com
recurso à música existem diferenças, para garantir a uniformização emergiu a necessidade
de identificar os tipos de intervenções existentes, bem como a sua definição.
Tabela I – Intervenções terapêuticas com recurso à música.
Fonte:
Sihvonen et al.
[6].
Partindo do princípio da neuroplasticidade
foram efetuados diversos estudos experimentais que comprovam benefícios da
música na reabilitação neurológica, nomeadamente: melhorias cognitivas e na
comunicação; ganhos na força, equilíbrio e marcha; diminuição do grau de
dependência; melhoria na qualidade de vida e melhoria do estado emocional [8].
Neste
sentido e atendendo ao potencial de
recuperação é espectável que o Enfermeiro
Especialista em Enfermagem de
Reabilitação (EEER) foque a sua ação na
manutenção e promoção do bem-estar e
qualidade de vida, na melhoria da funcionalidade,
maximização das capacidades e
prevenção de complicações [13], permitindo
que o processo de transição ocorra
de forma saudável e consciente [14].
Dada a relevância dos fatos acima descritos e
de modo a justificar a pertinência da música nos programas de reabilitação,
considerou-se imperativo reunir a evidência existente sobre os contributos da
música na reabilitação da pessoa após AVC.
Com vista a sintetizar o conhecimento existente
sobre o contributo da música na reabilitação da pessoa após AVC considerou-se
relevante efetuar uma revisão integrativa sobre o tema.
Assim, seguindo a metodologia PICO para a
realização desta revisão integrativa foi efetuada uma pesquisa nas bases de
dados: Cinahl, Medline e Pubmed. Para tal, foi tido como foco as pessoas após AVC
(participantes), as intervenções com musicoterapia (tipo de intervenção(s)/
fenômenos de interesse) e os resultados relativos à eficácia da implementação
das intervenções com musicoterapia, num programa de reabilitação (outcomes).
Os descritores utilizados para a pesquisa
foram: Stroke, Music Therapy,
Rehabilitation, Music e Stroke
Rehabilitation. Relativamente às frases a boleanas, na base de dados Cinahl®
foi: ((MH "Stroke+") AND (MM "Music Therapy") AND (MH "Rehabilitation+"));
na Medline®: ((MH "Stroke+")
AND ((MM "Music Therapy") OR (MM
"Music")) AND ((MM "Stroke Rehabilitation") OR (MH "Rehabilitation+")))
; na Pubmed®: ((music therapy) AND stroke) AND rehabilitation.
A pesquisa e identificação dos estudos a
incluir na revisão integrativa da literatura foi realizada por dois revisores,
de forma independente, a 4 de abril de 2019. A triagem foi concretizada por
meio da validação dos critérios inseridos na questão de investigação:
participantes, intervenção e resultados.
Para a seleção dos estudos e tendo como
objetivo identificar a evidência atual, foi considerado o período de publicação
compreendido entre 1 de janeiro de 2017 e 4 de abril de 2019. Foram incluídos
artigos em inglês, português e espanhol, com referências disponíveis em texto
integral.
Os dados foram extraídos por dois revisores com
consenso de um outro, de forma independente, após construção de um instrumento
de extração de dados [15] que incluiu informações sobre: autores, ano, país
onde foi implementado o estudo, características dos participantes, tipo de
estudo, intervenções e resultados obtidos.
Tal como explanado na figura 1, da pesquisa suprarreferida resultaram 68 artigos: 20 da base de dados Cinahl, 13 da base de dados Medline
e 35 da base de dados Pubmed. Com apoio do Endnote, e após compilação dos artigos mencionados
anteriormente, verificaram-se 12 artigos duplicados. Após leitura de título e
abstract foram excluídos 32 artigos, visto não contribuírem para a resposta à
pergunta de investigação definida. Porém, dos 24 artigos, foram utilizados para
a revisão 13 estudos por estarem disponíveis em completo integral. Na
consequente leitura dos artigos foi excluído um, por informar que o seu
conteúdo não poderia ser apresentado ou relatado por outros investigadores que
não os próprios autores do estudo.
Os 12 estudos selecionados foram avaliados
metodologicamente, após aplicação da Checklist
for Cohort Studies, Checklist for Quasi-Experimental
Studies e Checklist
Randomized Controlled Trial of Joanna Briggs Institute, tendo
integrado a revisão integrativa por cumprirem os critérios de avaliação
metodológica previamente definidos [15].
Os estudos incluídos nesta revisão são oriundos
de diversos países, focando duas publicações na Suécia, Estados Unidos da
América e França e uma publicação em Itália, Grécia, Coreia do Sul, Alemanha,
Inglaterra e Bélgica. Importa referir que em todos os estudos foram respeitados
os critérios éticos referentes à investigação realizada.
Fonte:
os autores
Figura 1 - Diagrama do processo de seleção.
Na tabela II são apresentados, de forma sucinta
e esquematizada, os estudos que compõe esta Revisão, e nela constam: os autores
dos estudos, o ano de publicação, o país, as características dos participantes,
as intervenções e os resultados dos estudos incluídos.
Tabela II – Sumarização dos estudos incluídos na revisão. (ver PDF em anexo)
No decurso da leitura, análise e avaliação dos
12 artigos que constituem esta revisão verificou-se uma grande heterogeneidade
dos mesmos, no que concerne ao tipo de estudo, às características da população,
bem como às intervenções implementadas e ao período de implementação. No
entanto, verifica-se que os dois estudos realizados na Suécia, em 2017 e 2018,
o desenho de estudo é o mesmo.
Embora a diversidade de estudos seja uma
característica evidente, existem fatores comuns nos 12 artigos selecionados, o
que permite dar resposta à pergunta de investigação proposta para esta revisão.
Todos os artigos abordam os benefícios e/ ou contributos da música num programa
de reabilitação na pessoa após AVC.
Dando enfoque às intervenções que constituem os
programas de reabilitação estudados nos artigos primários supracitados,
verifica-se que a estimulação auditiva e rítmica foi a mais utilizada
[17,18,21,23,26], seguindo-se da terapia com suporte musical [16,18,19,27], a
terapia de entonação melódica [21] e a musicoterapia [25]. Nas duas revisões
foram incluídos estudos primários com intervenção da musicoterapia, terapia de
entonação melódica, terapia com suporte musical e estimulação auditiva rítmica.
Nos estudos primários que experimentaram a
estimulação auditiva e rítmica variou o método bem como o tempo de intervenção.
Nos cinco artigos constam os seguintes métodos: os participantes ouviam música
enquanto executavam um ritmo coordenado, movimentos corporais (metodologia mais
utilizada); num outro estudo as pessoas ouviam música enquanto caminhavam em
cima de uma esteira. O tempo de implementação dos programas de reabilitação variaram
entre 4 semanas e 6 meses, havendo estudos que abordavam o grupo de exercício
duas vezes por semana e outros entre 4 e 5. Todas as sessões eram realizadas em
grupo, com durabilidade variando entre 15 e 90 minutos. Apesar de alguma
diversidade entre os estudos, conclui-se, de um modo genérico, que houve
melhorias em nível motor e cognitivo, e a melhoria da marcha foi descrita em 4
estudos, havendo ainda registos de melhoria do equilíbrio e da força
[17,18,21,23,26].
Nos estudos experimentais em que a intervenção
foi a terapia com suporte musical utilizou-se maioritariamente o piano,
seguindo-se da bateria, instrumentos de percussão e iPads®.
O objetivo da utilização dos instrumentos não era apenas reproduzir músicas,
era essencialmente seguir uma sequência/ esquema criado pelo investigador. O
intervalo de tempo de implementação dos programas variou entre 8 e 18 semanas,
com sessões entre 2 e 3 vezes por semana, em que cada uma poderia durar entre
20 minutos e 1 hora. Os resultados obtidos não são todos consensuais, no
entanto são descritos ganhos nas habilidades motoras, cognitivas, melhorias na
comunicação e no desempenho das Atividades de Vida Diárias (AVDs)
[16,19,20,27].
No que diz respeito à terapia de entonação
melódica, foi inserida num programa de reabilitação em simultâneo com a
estimulação auditiva e rítmica. Os participantes eram incentivados a cantar
sentados e enquanto andavam. Não sendo possível saber os resultados obtidos
através da terapia de entonação melódica, isoladamente, podemos afirmar que
através do programa instituído foi possível melhorar a marcha [21].
A musicoterapia num dos artigos selecionados
para a revisão, foi aplicada concomitantemente com um programa de reabilitação
convencional, num período de 2 meses, duas vezes por semana com uma duração de
40 minutos por sessão. Os participantes do grupo afirmaram que a musicoterapia
influencia positivamente os seus sentimentos, descrevendo após a sessão como
“relaxado”, “leve” e “descansado”. Quando questionados os cuidadores, para além
de unanimemente acreditarem na viabilidade da musicoterapia e nos seus
benefícios para os participantes, 53% visualizaram melhorias no humor, na
motivação, na autoestima, na expressão oral e no comportamento [25].
Os resultados obtidos nos estudos primários,
publicados de 2017 a 2019, selecionados para esta revisão, corroboram os
mencionados nas duas revisões incluídas no estudo, pelo que é possível concluir
que a música quando inserida num programa de reabilitação influencia positivamente
o participante, obtendo-se ganhos em saúde.
Refletindo no impacto que o AVC tem a nível
pessoal, econômico e social é notória a necessidade iminente de prosseguir na
procura de novos métodos de reabilitação eficazes.
Com esta revisão foi possível compilar o
conhecimento existente sobre os contributos da música na reabilitação da pessoa
após AVC, identificando-se benefícios a diversos níveis, nomeadamente: na
marcha, na força muscular, no equilíbrio corporal, nas habilidades motoras e
cognitivas, no humor e comunicação; com consequentes repercussões na qualidade
de vida e independência da pessoa.
Assim sendo, as evidências demonstram que o
desenvolvimento e a implementação de programas de reabilitação com recurso à música
contribuem para a recuperação da pessoa após AVC. Considera-se, então,
imprescindível investir neste método para obter ganhos na reabilitação da
pessoa após AVC.
Apesar dos investigadores dos estudos
selecionados não serem Enfermeiros Especialistas de Reabilitação, no contexto
português, esta revisão integrativa traz como principal contribuição à prática
dos enfermeiros especialistas em enfermagem de reabilitação o conhecimento
recente dos contributos da música na reabilitação do doente após AVC,
justificando a sua integração nos programas de reabilitação concebidos e
implementados por estes profissionais.