ARTIGO
ORIGINAL
Características
sociodemográficas e clínicas de indivíduos com insuficiência cardíaca
associadas à classe funcional da doença
Fernanda Rafaela de
Carvalho Martins*, Glicia Gleide Gonçalves Gama, D.Sc.**, Andreia Santos Mendes, M.Sc.***
*Discente
do 6º semestre de Medicina da Escola Bahiana de
Medicina e Saúde Pública, **Adjunta da Escola Bahiana
de Medicina e Saúde Pública, ***Mestre em enfermagem pela EEUFBA
Recebido em 2 de junho
de 2019; aceito em 23 de dezembro de 2019.
Correspondência: Fernanda Rafaela de
Carvalho Martins, Av. Manoel Dias da Silva, 535, 41830-000 Salvador BA
Fernanda Rafaela de
Carvalho Martins: fernandamartins17.2@bahiana.edu.br
Andreia Santos Mendes:
mendes.msa@gmail.com
Glicia Gleide Gonçalves
Gama:gliciaggama@bahiana.edu.br
Resumo
Introdução: A insuficiência
cardíaca (IC) é uma síndrome que se apresenta com crescente prevalência,
podendo limitar o indivíduo quanto à capacidade físico-funcional, e condição
pulmonar. Objetivo: Descrever as
características sociodemográficas e clínicas de indivíduos com IC assistidos em
unidade cardiovascular segundo classe funcional da New York Heart Association (NYHA). Métodos: Estudo retrospectivo,
quantitativo, realizado a partir de dados coletados em 120 prontuários de
indivíduos com IC que estiveram hospitalizados na unidade cardiovascular de um
Hospital Universitário (HU), no município de Salvador/BA. Utilizou-se
instrumento próprio que incluiu dados sociodemográficos e clínicos da IC. Resultados: Dos 120 sujeitos estudados,
53% tinham mais de 60 anos, 28,5% correspondendo a classe funcional (CF) IV. A
distribuição foi equitativa entre os sexos, com uma pequena prevalência de
mulheres na CF III (36,7%). Os pacientes que possuíam fração de ejeção <50%
estavam entre as CF III (33,8%) e CF IV (31,0%). Além disso, 41,6% dos
pacientes permaneceram no hospital entre 8 e 30 dias, e 87,5% evoluiu com alta
hospitalar. Conclusão: Indivíduos
idosos e autodeclarados negros com IC apresentam evolução clínica mais grave
relacionada ao aumento da classe funcional da NYHA.
Palavras-chave: insuficiência
cardíaca, adulto, Enfermagem.
Abstract
Sociodemographic
and clinical characteristics of individuals with heart failure associated with
the functional class of the disease
Introduction:
Heart failure (HF) is a syndrome with increasing prevalence, restricting the
individual in function of his physical-functional capacity, and lung condition.
Aim: To describe the sociodemographic
and clinical features of patients with HF assisted in a cardiovascular unit
according to the New York Heart Association (NYHA) functional class. Methods: This was a retrospective,
quantitative study based on data collected from 120 records of patients with HF
hospitalized in the cardiovascular unit of a University Hospital, in the city
of Salvador, Bahia. We used our own instrument that included sociodemographic
and clinical data on HF. Results: Of
the 120 individuals studied, 53% were over 60 years old, 28.5% were functional
class (FC) IV. The distribution was fair among the genders, with a low
prevalence of women in FC III (36.7%). Patients who had ejection fraction
<50% were between FC III (33.8%) and FC IV (31.0%). In addition, 41.6% of
the patients remained in the hospital between 8 and 30 days, and 87.5% evolved
to hospital discharge. Conclusion:
Elderly and black self-reported patients with HF presented a more severe
clinical evolution related to the increase of NYHA functional class.
Key-words: heart failure,
adult, Nursing.
Resumen
Características sociodemográficas y clínicas de
individuos con insuficiencia cardíaca asociadas
a la clase funcional de la enfermedad
Introducción: La insuficiencia
cardíaca (IC) es un síndrome que se presenta con una prevalencia creciente que puede limitar el individuo en cuanto a la capacidad
física-funcional, y la condición
pulmonar. Objetivo: Describir las características
sociodemográficas y clínicas de individuos con IC asistidos en unidad cardiovascular según clase funcional de la New York Heart Association (NYHA). Métodos:
Estudio retrospectivo, cuantitativo,
realizado a partir de datos recogidos
en 120 prontuarios de individuos con IC que estuvieron hospitalizados en la unidad cardiovascular de un Hospital Universitario (HU), en el municipio
de Salvador, Bahia. Se utilizó un
instrumento propio que incluyó
datos sociodemográficos y clínicos de la IC. El proyecto de investigación fue aprobado por el comité de ética del HU. Resultados:
De los 120 sujetos estudiados, 53% tenían más de 60 años, 28,5% correspondiendo a la clase funcional (CF) IV. La distribución fue equitativa entre
los sexos, con una pequeña prevalencia de mujeres en la
CF III (36,7%). Los pacientes que tenían fracción de eyección <50% estaban entre las CF III (33,8%)
y CF IV (31,0%). Además, el
41,6% de los pacientes permanecieron
en el hospital entre 8 y 30
días, y el 87,5% evolucionó con alta hospitalaria. Conclusión: Individuos ancianos y autodeclarados negros con
IC, presentan una evolución
clínica más grave relacionada al aumento de la clase funcional de la NYHA.
Palabras-clave: insuficiencia
cardíaca, adulto, Enfermería.
Doenças
cardiovasculares (DCV) estão entre as principais causas de óbito no Brasil e no
mundo. No ano de 2012 foi considerado um total de 17,5 milhões de mortes,
segundo World Health Organization
[1], e a American Heart Association (AHA) [2] estima que nos Estados Unidos
encontram-se cerca de 5,1 milhões de casos de insuficiência cardíaca (IC).
A IC representa um
importante problema de saúde pública, com altos índices de hospitalização
associados à morbimortalidade. Existem atualmente cerca de 6,5 milhões de
indivíduos com IC no Brasil [3]. Pacientes que sofreram infarto agudo do
miocárdio (IAM) ou possuem hipertensão arterial sistêmica (HAS) - duas grandes
causas de IC – são submetidos a tratamentos medicamentosos, cirúrgicos e
cuidados mais efetivos. Contudo, uma vez que estes fatores aumentam a
sobrevivência de pacientes cardiopatas resultam em maior prevalência da IC [3].
A etiologia da IC está
diretamente relacionada à presença de fatores de risco (FR) como hipertensão
arterial, insuficiência coronariana, diabetes mellitus, obesidade, síndrome
metabólica, valvopatias, doença de Chagas e história
familiar de cardiomiopatia. É considerada uma síndrome clínica complexa de
caráter sistêmico, e definida como uma disfunção cardíaca que ocasiona
inadequado suprimento sanguíneo para atender necessidades metabólicas do corpo.
Manifesta-se tanto de forma crônica como descompensada [4]. A presença destas
condições promove o remodelamento miocárdico e o desenvolvimento de alterações
estruturais cardíacas. A depender da agregação de FR a doença poderá ser
potencializada e o paciente apresentar alterações funcionais [5].
As alterações
funcionais apresentadas são classificadas através do sistema proposto pela New York Heart Association
(NYHA) que classifica a IC de acordo com a severidade dos sintomas relatados
pelo indivíduo, com escore que varia de I a IV conforme descrito: Classe I -
Ausência de sintomas (dispneia) durante atividades cotidianas. A limitação para
esforços é semelhante à esperada para indivíduos normais; Classe II - Sintomas
desencadeados por atividades cotidianas; Classe III - Sintomas desencadeados
por atividades menos intensas que as cotidianas ou aos pequenos esforços;
Classe IV - Sintomas em repouso [6].
Indivíduos com IC
encontram-se em faixas etárias mais elevadas, e a alta taxa de hospitalização
tem como causas principais o tratamento inadequado, seja por má aderência ou
por prescrição não melhorada ao longo do tratamento, o que representa alta taxa
de reinternação e consequentemente mortalidade [6].
Neste sentido, o
presente estudo tem como objetivo descrever as características
sociodemográficas e clínicas de indivíduos com IC assistidos em unidade
cardiovascular segundo classe funcional da NYHA.
Trata-se de um estudo
retrospectivo, do tipo descritivo de abordagem quantitativa, que foi realizado
a partir de dados coletados em prontuários de indivíduos que estiveram
hospitalizados na unidade cardiovascular de um Hospital Universitário (HU) do
município de Salvador, Bahia. O intervalo considerado para a observação foi
compreendido entre a admissão na unidade e a saída desta por alta ou óbito.
Os critérios de
inclusão foram: 1) Apresentar diagnóstico de insuficiência cardíaca descrito em
prontuário em qualquer classe funcional na evolução médica (CID 10: I50); 2)
Indivíduos de ambos os sexos e sem limite de idade; 3) Possuir um período igual
ou superior a 24 horas de hospitalização na unidade cardiovascular. Os de
exclusão: 1) Prontuários incompletos, com mais de três variáveis ausentes; 2)
Prontuários de pacientes com diagnóstico a esclarecer; 3) Prontuários não
encontrados no arquivo ou faturamento.
A seleção dos
prontuários, que ocorreu no mês de agosto de 2017, foi realizada mediante
consulta ao censo hospitalar no Aplicativo de Gestão para Hospitais
Universitários (AGHU), após autorização do setor através da assinatura do termo
de anuência e da aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa. A seguir, os
prontuários foram solicitados ao Serviço de Arquivo Médico e Estatística (SAME)
da instituição. A amostra foi selecionada por método não probabilístico.
A
coleta dos dados foi
realizada utilizando instrumento próprio que inclui
informações sobre: Dados
sociodemográficos (idade, sexo, raça/cor);
Características clínicas da IC
(etiologia da IC, fração de ejeção do
ventrículo esquerdo); Evolução clínica na
unidade (tempo de hospitalização na unidade e desfecho da
hospitalização).
Sabendo que o prognóstico da IC está diretamente
relacionado à perda da
capacidade funcional conforme demonstrado no BREATHE [7], neste estudo
foi
utilizada para classificação funcional a proposta da NYHA
que é universalmente
utilizada [8].
Os dados coletados
foram tabulados e processados por meio do software SPSS (Statistical Package for Social Science), versão 18.0
for Windows. As variáveis foram apresentadas descritivamente em tabelas
contendo frequências absolutas (n) e relativas (%).
O projeto de pesquisa
foi aprovado pelo comitê de ética do Hospital Universitário. A pesquisa
respeitou os princípios éticos de acordo com a Resolução 466 de 12 de dezembro
de 2012 [9], que regulamenta as pesquisas que envolvem seres humanos. Como os
dados foram coletados em prontuários, não houve termo de consentimento livre e
esclarecido (TCLE). Os dados foram mantidos em sigilo quanto à identidade
pessoal dos sujeitos, conforme descrito no termo fiel depositário.
Através da análise de
120 prontuários de usuários com IC, foi observado maior prevalência da classe
funcional (CF) III e IV (60,8%).
A média de idade dos
pacientes foi de 59,58 (DP ± 17,2 anos), com 53,0% acima dos 60 anos, e destes
28,5% estavam na CF IV. Dos 39 pacientes com idade entre 40 e menos de 60 anos
41,0% se encontrava na CF III. A distribuição entre os sexos foi equitativa, no
grupo das mulheres a maioria apresentou CF III (36,7%) e dos homens CF IV
(30,0%). Houve predomínio de indivíduos da raça/cor parda autorreferida
(60,8%), e os mesmos apresentaram, predominantemente, CF III (34,2%). Dos 13
sujeitos que se autodeclaram brancos, 30,8% se encontrava na CF IV (Tabela I).
Tabela I - Características sociodemográficas de indivíduos com insuficiência
cardíaca segundo classe funcional da NYHA. Salvador, Bahia, Brasil, 2017.
Foi possível verificar
que as etiologias chagásicas (25%) e reumáticas (20,8%) foram predominantes na
população estudada. Indivíduos com essas etiologias apresentaram, em sua
maioria, CF III (30% e 48%, respectivamente). Dos 120 pacientes, apenas 13,3%
apresentaram cardiomiopatia isquêmica, mais da metade deles se encontravam
divididos entre a CF II e CF III correspondendo a 31,2 % nas duas
classificações (Tabela II).
Com
relação à fração de
ejeção do ventrículo esquerdo, os
indivíduos que possuíam fração de
ejeção
<50% estavam entre as CF III (33,8%) e CF IV (31,0%). Já os
indivíduos que
tinham fração de ejeção maior igual a 50%
encontravam-se na sua maioria na CF
II (32,6%), (Tabela II).
Tabela II - Características clínicas de indivíduos com insuficiência cardíaca
segundo classe funcional da NYHA. Salvador, Bahia, Brasil, 2017.
A maioria dos
indivíduos permaneceram internados entre 8 e 30 dias (42,0%) e nesse grupo
predominou a CF III (38,0%). Os indivíduos da CF IV foram os que permaneceram
mais tempo hospitalizados (maior que 30 dias), representando 37,4% da amostra
nesse grupo. São consequentemente os pacientes mais graves e, apesar de 34,3%
desses pacientes terem tido como desfecho a alta hospitalar, é também a classe
que mais evolui para óbito (60,0%). As CF II e CF III apresentaram como
desfecho predominante alta hospitalar, correspondendo a 25,7% e 34,3%,
respectivamente (Tabela III).
Tabela
III - Evolução clínica de indivíduos com
insuficiência cardíaca segundo classe funcional da NYHA. Salvador, Bahia,
Brasil, 2017.
A idade avançada
representa um fator de risco relevante, e indivíduos com idade acima de 60 anos
compuseram uma parcela importante da amostra (53,0%). Os dados obtidos reforçam
o que já vem sendo apresentado pela literatura, tendo em vista que a ocorrência
da IC possui relação direta com a idade e com as comorbidades que são mais
comuns no envelhecimento [10]. No Brasil, a IC já se tornou a primeira causa de
internação hospitalar em pacientes acima de 60 anos de idade [7].
Este estudo identificou
que em relação ao sexo há uma distribuição equivalente. Resultado que diverge
de outras pesquisas cujos achados apontam a IC como sendo uma patologia mais
comum em homens, inclusive considerando ser do sexo masculino um fator de risco
[11,12].
Segundo Machado et al. [13], a etnia negra é um dos
fatores de risco com papel importante para o desenvolvimento de IC,
corroborando a evidência de 60,8% da amostra ter autorreferido
raça/cor negra (preto e/ou pardo) e 37,9% em CF III e 27,6% na CF IV. Esses
achados podem ter relação com a região investigada, pois dados do IBGE apontam
que no Nordeste 72,5% da população se autodeclara como preta ou parda [14].
Na amostra estudada, a
cardiomiopatia chagásica, se apresenta como principal fator etiológico para IC,
sendo a mais presente entre todas as classes funcionais, 56,6% dos pacientes
eram CF III ou IV, o que pode ser explicado pelo local onde a coleta de dados
foi realizada, uma vez que a região nordeste é considerada umas das áreas
endêmicas da doença no Brasil [11]. É possível observar que entre 10% a 40% dos
indivíduos com doença de Chagas, o órgão afetado é o coração, o que compromete
física e psicologicamente o indivíduo [15]. Além da cardiomiopatia chagásica, a
cardiomiopatia reumática como etiologia para IC, também, é uma das mais
prevalentes, sendo mais presente na CF III (48%) e acometendo 21% da amostra.
Nos casos de IC, apesar
da identificação da causa ser fundamental e indispensável para a projeção
prognóstica, na maioria dos casos os exames complementares são indispensáveis
para confirmação do diagnóstico, caracterização do comprometimento causal e
avaliação da intensidade da lesão [16].
O ecocardiograma é o
exame complementar de maior utilidade na avaliação dos pacientes com IC, por
fornecer informações importantes em relação à morfologia cardíaca, quantifica a
função sistólica e diastólica, e auxilia na definição etiológica, nos
parâmetros prognósticos e na resposta às diversas intervenções terapêuticas
[17]. Nesse estudo, 61,7% dos pacientes apresentaram fração de ejeção <50%,
desses 33,8% encontravam-se na CF III e 30,4% na CF IV.
Em relação ao tempo de
hospitalização, o período de permanência entre 8 e 30 dias prevaleceu em todas
as CF, mas principalmente na CF III 38% e na CF IV 32%. Este tempo de
permanência se assemelha ao de um estudo nacional que buscou avaliar a história
natural da IC por meio da taxa de mortalidade e de re-hospitalizações
na mesma população, cujos resultados mostraram que o tempo médio de internação
foi de 25,1±16,7 dias [18].
Quanto ao desfecho da
doença, a maior parte da amostra recebeu alta da unidade (87,5%), corroborando
os achados de Ximenes [19] que verificou 85,8% de alta hospitalar no seu
estudo. Foi possível observar que a prevalência de óbitos é muito maior nas CF
IV do que nas demais, correspondendo a 60% no estudo, e não se obteve nenhum
registro de mortalidade por pacientes da CF I.
Indivíduos idosos e
autodeclarados negros com IC apresentam evolução clínica mais grave relacionada
ao aumento da classe funcional da NYHA.
Espera-se que os
resultados deste estudo contribuam e favoreçam para elaboração de um plano de
cuidados individualizado e criterioso, a fim de melhorar a qualidade da
assistência, a qualidade de vida destes indivíduos, diminuição do número de
hospitalizações e ou desfechos fatais, melhorando, assim, o manejo e a
terapêutica dispensada aos indivíduos com essa patologia.