RELATO DE CASO
Refletindo a
assistência no Consultório na Rua
Denicy de Nazaré Pereira
Chagas*, Edna Aparecida Barbosa de Castro, D.Sc.**,
Anderson Da Silva Rosa, D.Sc.***, Paula Miranda de
Oliveira****, Tatiana Oliveira Pereira Tavares*****, Laércio Deleon de Melo, M.Sc.******
*Doutoranda
em Saúde
Coletiva da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Minas Gerais,
**Professora da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz
de Fora
(FACENF-UFJF), Minas Gerais, ***Professor da Escola Paulista de
Enfermagem da
UNIFESP, São Paulo, ****Assistente Social do Consultório
na Rua do Município de
Juiz de Fora/MG, *****Psicanalista, Psicóloga e coordenadora do
Consultório na
rua do município de Juiz de Fora/MG, ******Professor da
Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora
(FACENF-UFJF), Juiz de Fora/MG
Recebido em 6 de
setembro de 2019; aceito em 30 de abril de 2020.
Correspondência: Denicy
de Nazaré Pereira Chagas, Rua Doutor Kalil Abrahão Hallack,
14
Denicy de Nazaré Pereira
Chagas: dchagas.enf@gmail.com
Edna Aparecida Barbosa
de Castro: ednabdecastro@gmail.com
Anderson Da Silva Rosa:
anderson.rosa@unifesp.br
Paula Miranda de
Oliveira: paula-sersocial@hotmail.com
Tatiana Oliveira
Pereira Tavares: tatiana.optavares@gmail.com
Laércio Deleon de Melo:
laerciodl28@hotmail.com
Introdução: A equipe
interdisciplinar deve lidar com as diferentes demandas em saúde da população em
situação de rua. Objetivo: Refletir o cuidado em saúde no Consultório na
Rua através de um relato de caso. Apresentação do
caso: Relato de experiência da equipe no cuidado a um usuário em situação
de rua com diferentes vulnerabilidades, demandas de saúde e déficits de
autocuidado. Resultados: O cuidado idealizado e praticado no Consultório
na Rua deve ocorrer de forma interdisciplinar e ser regido pelos princípios da
integralidade, equidade e universalidade, tendo o vínculo e o respeito como
ferramentas potencializadoras do cuidado. Conclusão: Profissionais de
saúde devem refletir sobre o cuidado humano na perspectiva do conceito ampliado
de saúde em conformidade com os princípios/diretrizes das políticas públicas de
saúde.
Palavras-chave: cuidado, práticas
interdisciplinares, pessoas em situação de rua.
Abstract
Reflecting on assistance in the Street Clinic
Introduction: The interdisciplinary team must deal with the different health demands
of the homeless population. Objective: To reflect on the health care in
the Street Clinic through a case report. Case presentation: Report of
team experience in caring for a homeless user with different vulnerabilities,
health demands and self-care deficits. Results: The care idealized and
practiced in the street office should occur in an interdisciplinary way and be
governed by the principles of integrality, equity and universality, with
bonding and respect as potential tools for care. Conclusion: Health
professionals should reflect on human care from the perspective of the expanded
concept of health in accordance with the principles/guidelines of public health
policies.
Keywords: care, interdisciplinary placement, homeless persons.
Resumen
Reflexionando
la atención médica en clínica en
la calle
Introducción: El equipo interdisciplinario debe ocuparse de las diferentes demandas de salud de la población
sin hogar. Objetivo: Reflejar la atención médica en Clínica
en la calle
a través de un informe de caso. Presentación
del caso: Informe de la
experiencia del equipo en el cuidado de un usuario sin hogar
con diferentes vulnerabilidades, demandas de salud y déficit de autocuidado. Resultados: La atención idealizada y practicada en la oficina de la calle debe
ocurrir de manera interdisciplinaria y regirse por los principios de integralidad, equidad y universalidad, con la vinculación y el respeto como herramientas potenciales para la atención. Conclusión:
Los profesionales de la salud deben reflexionar sobre la atención humana desde la perspectiva del concepto
ampliado de salud de acuerdo
con los principios/directrices de las políticas de salud pública.
Palabras-clave: cuidado, prácticas interdisciplinarias,
personas sin hogar.
O cuidado para com
saúde da População em Situação de Rua (PSR) inclui compreensões que englobam
diferentes modos de vida; distintas relações com a rua (ausência de endereço
fixo ou viver em logradouros públicos); por vezes, sem quaisquer referências
(domiciliar/familiar) [1]. No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) um serviço
específico para a PSR é o Consultório na Rua (CR), um dispositivo móvel de
abordagem interdisciplinar, que tem por objetivo direcionar o atendimento à
saúde desse grupo de forma integrada aos componentes e diretrizes da Atenção
Básica (AB) [2-3].
Dentre os objetivos da
equipe do CR destacam-se: abordagem das diferentes necessidades de saúde;
realizar busca ativa; adoção de tecnologias leves, sendo o acolhimento e o
vínculo, cuidados prioritários [4]. Estimula-se o deslocamento da equipe e da
própria Rede de Assistência à Saúde (RAS) para fora da zona de conforto das
estratégias de cuidado domiciliar, propiciando vivências com situações
observadas/sentidas para as quais nem sempre se tem respostas. Esse processo
reconfigura-se em novos desafios à efetivação do SUS [5]. Sendo assim o
objetivo desta investigação foi refletir o cuidado em saúde no Consultório de
Rua através de um relato de caso.
Relato de experiência
da equipe interdisciplinar do CR na assistência a uma PSR (amostra por
tipicidade) cuja coleta de dados ocorreu em fevereiro/2015. Atendidos todos os
aspectos ético-legais e investigação matriz aprovada (parecer consubstanciado
n° 691.118) em 25/05/2014.
A abordagem ocorreu por
solicitação do Serviço Especializado para PSR. O usuário se autodenominava
“Matrix” e apresentava perda significativa da visão esquerda e fortes dores nas
pernas, que exigiam o uso de muleta e dificultavam sua locomoção, porém
rejeitava veemente vínculo com os equipamentos da Assistência Social.
No primeiro atendimento
explicaram-se os objetivos do trabalho e a equipe se dispôs a ouvi-lo,
desprovida de qualquer comportamento prescritivo e excesso de orientações e
propostas. Combinaram que semanalmente estaria ali. Assim, o comportamento de
negação, foi substituído pela confiança fortalecida ao perceber que a relação
que se pretendia estabelecer tinha como premissa fundamental o respeito à
disponibilidade do outro. “Matrix” nasceu em São Paulo, porém não mantinha
contato familiar. Percorreu grande parte do país, escolhendo um município
mineiro, como sua parada. Seu lugar de vida: um banco de cimento na beirada de
um rio em umas das principais avenidas da cidade. Seus pertences: um carrinho
de supermercado, uma garrafa de “cachaça” e um cobertor.
Iniciou-se seu processo
de cuidado, atento aos limites e possibilidades da pessoa, operando por meio do
vínculo, escuta das demandas, dificuldades, descontentamentos e até mesmo falar
da vida cotidiana. Ele começou a se corresponsabilizar
pelo seu autocuidado e reconheceu as necessidades de saúde já apontadas e ainda
acrescentou novas demandas, como requerimento de documentação e de benefícios
assistenciais, os quais lhe eram de direito.
“Matrix” foi inserido
na RAS, que procedeu nos cuidados para a atenção integral a saúde e nos
referenciamentos especializados que o caso exigia. Para cada desdobramento,
como realização de exames gerais e ou específicos, encaminhamentos e outros, a
equipe estava lá; e parcerias com a rede iam se estabelecendo em busca da
garantia dos demais direitos.
Dentre as situações
vivenciadas, o choro de “Matrix” ao receber em suas mãos a certidão de
nascimento e em cada novo documento, ele sentia que voltava a andar e a
percorrer a estrada da vida. O lugar de quem perdeu o seu lugar, agora era,
sobretudo, local de acesso e onde ele esperava pela equipe. Após muitas
esperas, emergiu a fala: “Matrix já está cansado”, mediada por conflitos
pessoais, dores etc.
Ele solicitou o
encaminhamento para a Casa da Cidadania (moradia para PSR). Isso significou o
“coroamento” da confiança na equipe, sendo otimizadas as possibilidades de um
prognóstico favorável. Por alguns meses ele permaneceu naquele ressinto,
demonstrando o engajamento do paciente no processo de cuidado compartilhado com
a equipe do CR.
Meses depois, “Matrix”
estava de volta à rua, no mesmo lugar. Aguardava vaga para realização de
cirurgia, em uso de colírio e em acompanhamento junto aos serviços
socioassistenciais, a espera de seus benefícios. A intenção da equipe
interdisciplinar foi garantir acesso a saúde a partir da construção de
estratégias de cuidado considerando a realidade do usuário de habitar os
espaços onde a vida acontece, sintonizar com as experiências de vida,
produzindo intervenções a partir dela, e operar por meio do vínculo, o alcance
das políticas públicas.
O caso “Matrix” retrata
as diversas dificuldades de acesso a RAS vivenciadas pela PSR e a efetivação
dos princípios do SUS. Por outro lado, mostra a importância do vínculo, do
respeito à diferença e em especial, da escuta diferenciada, sensível e capaz de
mudar, libertar e cuidar.
Ainda que todo cidadão
tenha direito estabelecido em leis internacionais e nacionais [6,7], a PSR
sofre diferentes dificuldades de acesso aos serviços de saúde e comorbidades
associadas, remetendo à discussão das vulnerabilidades programática e
individual, e também, à vulnerabilidade social, ao trazer dados de indicadores
sociais, econômicos e culturais, que influenciam nas oportunidades de acesso a
bens e serviços e na visão da dimensão social do adoecimento [8].
Assim, falar da PSR é
se referir a equidade, que no âmbito do SUS, exige que os serviços de saúde
considerem que em cada população existem grupos com problemas específicos e
diferenças no modo de viver, de adoecer e de ter oportunidades de satisfazer as
suas necessidades de vida [9].
Ao se implantar o SUS,
as práticas de saúde não incorporaram de modo rápido todo o seu ideário e as
propostas de promoção da saúde e prevenção de doenças. Ao refletir sobre a
questão da intersetorialidade, tem-se a possibilidade de abordar amplamente as
questões e dificuldades sociais mais complexas, nas múltiplas dimensões,
gerando a necessidade de inclusão dos demais equipamentos e instâncias
envolvidas na vida do sujeito [9].
A concepção da oferta
de serviços de saúde e do trabalho multiprofissional e interdisciplinar em rede
amplia-se para além da simples reunião de serviços que integram um determinado
território, diz respeito a um novo modo de conceber e praticar o cuidado, que
inclua uma articulação entre as diferentes instâncias e as demandas de quem é
cuidado [1,9,10].
Leininger, que em sua teoria
baseada na visão antropológica destacou diferenças no cuidado humano, que
demandam por ajustes de crenças, valores, modos de vida e culturas. O cuidado
cultural é expressivo, unificador e dominante para se conhecer, compreender e
prever o cuidado terapêutico popular [11].
Assim, as lógicas do
cuidado acontecem nas práticas da RAS, tendo como ponto comum a PSR e seu modo
de se relacionar com o território, fazendo que a organização do cuidado e a
estruturação dos serviços aconteçam sob a perspectiva do usuário.
A PSR tem acesso
limitado às políticas públicas de saúde e assistência social. Neste contexto,
os profissionais de saúde devem refletir sobre o cuidado humano na perspectiva
do conceito ampliado de saúde em conformidade com os princípios/diretrizes das
políticas públicas de saúde.