EDITORIAL
Lei e
direito no trabalho do enfermeiro como profissional liberal no Brasil
“As
leis são como as teias de aranha que apanham os pequenos insetos e são rasgadas
pelos grandes.” (Sólon)
Emilio Fasanelli Petreca*, Zaida Aurora Sperli Geraldes Soler, D.Sc.**
*Advogado,
pós-graduando em Direito Médico, Odontológico e da Saúde do Instituto Paulista
de Estudos Bioéticos e Jurídicos de Ribeirão Preto/SP (IPEBJ), **Obstetriz, enfermeira, livre-docente em enfermagem
obstétrica, docente e orientadora de graduação e pós-graduação lato sensu e
stricto sensu, orientadora da dissertação que incluirá conteúdo deste editorial
Correspondência: Emilio Fasanelli Petreca, Rua Luiz Antonio da Silveira, 449, 15025-020 São José do Rio Preto
SP
Emilio Fasanelli Petreca: emilio@fasanelli.adv.br
Zaida Aurora Sperli Geraldes Soler: zaidaaurora@gmail.com
O enfermeiro tem um
papel de destaque na assistência multiprofissional em saúde, cabendo a ele a
responsabilidade pelas ações da equipe de enfermagem e também, em regra, pela
interlocução com a equipe médica e demais profissionais de saúde. Assim, cabe a
ele o gerenciamento da assistência ao usuário e a gestão dos serviços de
atendimento em saúde, o que acarreta maior exposição no seu atuar. Com isto, há
possibilidade de ser responsabilizado por seus atos na atuação junto ao
paciente, com repercussões legais que podem se situar na área jurídica da
responsabilidade civil [1].
A enfermagem brasileira
é uma profissão regulamentada pela Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986 [2],
que traz em seu bojo, já como fundamento precípuo da atuação profissional da
classe, que “é livre o exercício da enfermagem em todo o território nacional,
observadas as disposições desta lei”. Acrescenta-se, ainda, no que diz respeito
à regulamentação da atuação do profissional de enfermagem, as disposições
constantes em seu código de ética profissional vigente, objeto da Resolução Cofen n° 564/2017 [3], o qual em seu Capítulo I – Dos
Direitos, já no artigo 1º, dispõe que é direito do profissional de
enfermagem, “exercer a Enfermagem com liberdade, segurança técnica,
científica e ambiental, autonomia, e ser tratado sem discriminação de qualquer
natureza, segundo os princípios e pressupostos legais, éticos e dos direitos
humanos”.
Essa reconhecida
liberdade e autonomia funcional, somada à necessária formação acadêmica e registro
junto ao conselho ou órgão profissional, diferem o enfermeiro do profissional
autônomo, conferindo-lhe o status de profissional liberal. Em que pese todas as
disposições legais e demais regulamentações que conferem ao enfermeiro essa
condição de profissional liberal, além dos recorrentes debates e pesquisas que
sustentam e defendem essa inquestionável autonomia profissional, na prática ela
ainda se revela muito mitigada. No entanto, cada vez mais tal condição é
discutida e enfrentada, não só nos órgãos de classe e ambientes profissionais,
mas também no interior das instituições de ensino, em pesquisas e na mídia,
mostrando a força e representatividade do enfermeiro e da enfermagem traduzida
em confiança para atuar com a autonomia que lhe é conferida por lei.
A responsabilização
civil do enfermeiro como profissional liberal tem a configuração de uma conduta
dolosa quando o dano decorrente de sua atividade profissional é intencional, ou
culposa quando o dano é causado por ação ou omissão, em qualquer de suas
modalidades (imprudência, negligência ou imperícia). Na análise da conduta
culposa do enfermeiro, é preciso que o ofendido faça a prova da ocorrência de
três requisitos fundamentais: a) ação culposa do ofensor; b) a existência do
dano; c) o nexo de causalidade entre a ação culposa do ofensor e o dano causado
à vítima.
O registro completo e
adequado das informações referentes à assistência prestada pelo enfermeiro, a
princípio é um dever ético, mas vai muito além disso, representa verdadeira e
fundamental prova em sua defesa, quando exposto a um procedimento
administrativo, civil ou mesmo penal. Então, ao negligenciar os registros de
seu ofício, o enfermeiro estará negligenciando, também, com sua própria defesa.
Em que pese ainda não
ser uma rotina aos enfermeiros, a manutenção de consultórios e clínicas vem
ganhando espaço entre eles, nas mais diversas especialidades. Surge, então, a
indagação quanto a responsabilidade da pessoa jurídica constituída, perante os
pacientes e terceiros atendidos. Cabe lembrar que uma vez constituída a clínica
ou consultório de enfermagem, tendo, portanto, personalidade jurídica, faz-se
necessário o seu registro junto ao Conselho Regional de Enfermagem,
definindo-se o responsável técnico, responsabilizando-se também pelos
profissionais de enfermagem atuantes na sua clínica/consultório, como
empregador.
A responsabilização do
empregador ou comitente advém do fato dos empregados ou prepostos, de forma ou
outra, estarem prestando os seus serviços sob as ordens de outro ou dele
dependendo. E justamente em consequência dessa relação, que responderão eles,
pelos danos causados ao paciente, de forma solidária. Isto, devido à
responsabilidade “in eligendo” (responsabilidade
civil, ao eleger os seus funcionários, pela conduta danosa ao paciente
daqueles, na execução de suas tarefas, tanto do ponto de vista técnico como
moral) e “in vigilando” (responsabilidade civil nos mesmos aspectos referidos,
mas no que tange à vigilância – fiscalização – da sua correta atuação na
assistência aos pacientes). A legislação, contudo, não deixou os empregadores
ou superiores hierárquicos à sorte, dispondo, nesses casos de assunção de
responsabilidade por ato de terceiro, quanto ao denominado direito de regresso.
Há, nesse contexto, e desde que comprovada a conduta culposa de seu empregado
ou preposto, o denominado direito de regresso, pelo qual poder-se-á reaver do
profissional apontado como causador do dano indenizado, as quantias
despendidas, o que encontra respaldo legal no artigo 934, do Código Civil
Brasileiro, pelo qual, aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode
reaver o que tiver pago, daquele por quem pagou.
O atuar do enfermeiro,
invariavelmente, demandará o uso de equipamentos, materiais e substâncias a
serem utilizadas no paciente. No escólio de Neri Tadeu Câmara Souza [1], a
utilização do objeto confunde-se com a tarefa executada pelo enfermeiro no seu
trabalho cotidiano. Nas demandas em que haja uma reclamação em razão de dano
causado por equipamento, material, substância ou mesmo medicação utilizada no
paciente submetido a um determinado procedimento de assistência em enfermagem,
caberá ao julgador avaliar se está caracterizada ou não a conduta culposa do
enfermeiro, considerando que na situação de erro cada profissional responde no
nível de sua culpa. A essa espécie de responsabilidade civil dá-se a
denominação de responsabilidade pelo fato da coisa, já que é inerente não à
conduta do enfermeiro propriamente dita, mas ao meio por ele utilizado.
Afere-se, também, ainda
que persista um pequeno dissenso a respeito, que a relação entre o enfermeiro e
o paciente espelha uma relação de consumo, a qual se formaliza, em regra, por
meio de um contrato de vontades, nem sempre expresso, pelo qual o profissional assume
uma obrigação perante o assistido. Tal obrigação está que, ressalvadas os
procedimentos puramente estéticos, será sempre de meio, em face do que deve o
enfermeiro agir com o maior zelo e diligência, valendo-se da melhor prática
recomendada e disponível naquela circunstância e perante aquela assistência
assumida, para, então, ver afastada a sua responsabilização.
Temos, por fim, que a diligência
profissional, atrelada a uma constante evolução técnica, e a observância aos
direitos do paciente assistido encerram uma atuação profissional do enfermeiro
isenta de falhas ou condutas culposas, o que refletirá na ausência de sua
responsabilização civil, ainda que qualquer insatisfação seja levada a Juízo
pelo paciente ou seu representante legal. Para isso, também, é inquestionável a
importância do acesso a condições adequadas de trabalho, nem sempre colocadas à
disposição do enfermeiro. No Relatório da Comissão de Peritos em Ensino de
Enfermagem, da OMS, que se reuniu em Genebra, em 1953, com a participação da
Dra. Glete de Alcântara, está contido o seguinte:
"no
país em que a evolução da enfermagem se encontra nos primeiros estágios, a
formação básica profissional da enfermeira incluirá preparo para ensino e
supervisão. Ao desenvolver-se mais, a assistência de enfermagem e a relação
enfermeira/paciente receberão maior ênfase na formação da enfermeira".