ARTIGO ORIGINAL
Percepções de
enfermeiros sobre as relações interpessoais no cuidado de enfermagem
ambulatorial
Raquel de Oliveira Martins Fernandes, M.Sc.*, Edith Monteiro de Oliveira*, Anna Karla Nascimento Lima*, Louise Cândido Souza, M.Sc.*, Laércio Deleon de Melo, M.Sc.*, Thelma Spindola, D.Sc.**, Denise Barbosa de Castro Friedrich, D.Sc.***
*Enfermeira, Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora (FACENF-UFJF), Juiz de Fora/MG, **Enfermeira, Professora Associada pela Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro/RJ, ***Enfermeira, Professora Convidada pela Faculdade de Enfermagem e Professora Permanente do Programa de Mestrado da Universidade Federal de Juiz de Fora (FACENF-UFJF),
Recebido em 24 de março
de 2020; aceito em 21 de agosto de 2020.
Correspondência: Raquel de Oliveira
Martins Fernandes, Rua Ministro Amarílio Lopes
Salgado, 72/102, 36033-290 Juiz de Fora MG
Raquel de Oliveira
Martins Fernandes: raquel.omfernandes@gmail.com,
Denise Barbosa de Castro
Friedrich: denisefriedrichenf@gmail.com
Edith Monteiro de
Oliveira: enf.editholiveira@outlook.com
Anna Karla Nascimento
Lima: annakarla.enf@gmail.com
Louise Cândido Souza:
louisecandidosouza@yahoo.com.br
Laércio Deleon de Melo:
laerciodl28@hotmail.com
Thelma Spindola:
tspindola.uerj@gmail.com
Resumo
Introdução: As relações
interpessoais, por meio da ampliação do diálogo e da promoção da gestão
participativa, configuram-se como competência fundamental ao cuidado e ao
fortalecimento da humanização na assistência ambulatorial. Objetivo:
Compreender as percepções de enfermeiros sobre as relações interpessoais no
cuidado de enfermagem ambulatorial. Métodos: Investigação descritiva de
abordagem qualitativa, delineada sob a ótica da hermenêutica dialética.
Participaram 12 enfermeiros atuantes em duas Unidades de Pronto Atendimento,
tendo sido a entrevista estruturada realizada no mês de setembro de 2016, com
duração de ± 00:30:00 minutos. A análise de dados foi realizada segundo as
etapas da hermenêutica dialética. Atenderam-se todos os aspectos ético-legais
em pesquisa conforme legislação (inter)nacional. Resultados:
Foram identificados três núcleos de sentido: relações interpessoais no trabalho
em equipe multiprofissional de saúde; relações interpessoais x cuidado de
enfermagem; sentimentos dos usuários, julgamentos conflitantes e o cuidado de
enfermagem. Conclusão: A cooperação como ferramenta das relações
interpessoais pode contribuir para diminuir a insatisfação dos usuários, bem
como limitar os conflitos da prática médica hegemônica que impacta negativamente
o cuidado do enfermeiro ao usuário. Sugere-se a realização de novas
investigações com enfoque intervencionista, a exemplo das atividades de
educação permanente em saúde.
Palavras-chave: cuidados de
enfermagem, assistência ambulatorial, relações interpessoais.
Abstract
Nurses' perceptions of interpersonal relationships in outpatient nursing
care
Introduction: Interpersonal relationships, through the expansion of dialogue and the
promotion of participatory management, constitute a fundamental competence in
care and in strengthening humanization in outpatient care. Objective: To
understand nurses' perceptions of interpersonal relationships in outpatient
nursing care. Methods: Descriptive investigation of a qualitative
approach outlined from the perspective of dialectical hermeneutics. Twelve
nurses working at two Emergency Care Units participated, and the structured
interview was conducted in September 2016, lasting ± 00:30:00 minutes. Data
analysis performed according to the steps of dialectical hermeneutics. All
ethical and legal aspects of research were complied with according to (inter)
national legislation. Results: Three cores of meaning were identified:
interpersonal relationships in multi professional health teamwork;
interpersonal relationships x nursing care; users' feelings, conflicting
judgments and nursing care. Conclusion: Cooperation as a tool for
interpersonal relationships can contribute to reduce users 'dissatisfaction, as
well as limit the conflicts of hegemonic medical practice that negatively
impacts nurses' care for users. Further investigations with an interventionist
approach are suggested, such as permanent health education activities.
Keywords: nursing care, ambulatory care, interpersonal relations.
Resumen
Percepciones
de las enfermeras sobre las
relaciones interpersonales en la atención de enfermería ambulatoria
Introducción: Las relaciones interpersonales, a través de la ampliación del diálogo y la promoción de la gestión participativa, se configuran como competencia fundamental en el cuidado y fortalecimiento de la humanización en la atención ambulatoria. Objetivo: Comprender
la percepción de las enfermeras sobre las relaciones interpersonales en la atención
ambulatoria de enfermería. Metodología: Investigación descriptiva con enfoque cualitativo, planteada desde la
perspectiva de la hermenéutica
dialéctica. Participaron 12
enfermeros que laboraban en dos Unidades de Emergencias, y
la entrevista estructurada
se realizó en septiembre de 2016, con una duración de ± 00:30:00 minutos. El análisis
de los datos se realizó según los
pasos de la hermenéutica dialéctica. Todos los aspectos éticos y legales de la investigación se cumplieron de acuerdo con la legislación
(inter) nacional. Resultados: Se identificaron tres núcleos de significado:
relaciones interpersonales en
el trabajo en equipos multiprofesionales de salud; relaciones interpersonales
x cuidados de enfermería; sentimientos
de los usuarios, juicios conflictivos y cuidados
de enfermería. Conclusión:
La cooperación como herramienta
para las relaciones interpersonales
puede contribuir a reducir la insatisfacción de los usuarios, así
como limitar los conflictos
de la práctica médica
hegemónica que impacta negativamente en la atención de las enfermeras a los usuarios. Se sugiere que se realicen nuevas investigaciones con un enfoque intervencionista,
como las actividades de educación permanente en salud.
Palabras-clave: atención
de enfermería, atención ambulatoria, relaciones interpersonales.
O enfermeiro não atua
isoladamente, mas por meio de interações com outros profissionais de saúde para
alcançar seus objetivos [1,2]. Destarte, a habilidade de saber relacionar-se
com as pessoas é fundamental para a sua prática, pois pode contribuir para a
humanização no ambiente de trabalho e melhoria da qualidade do atendimento às
pessoas que são assistidas nos diferentes níveis de saúde [3,4].
A conservação de
relacionamentos interpessoais saudáveis pode ser facilitada por diálogo aberto
e claro, respeito e confiança entre os profissionais e entre estes e usuários.
Além disso, as relações interpessoais, por meio da ampliação do diálogo e da
promoção da gestão participativa, surgem como competência fundamental para o
cuidado e para o fortalecimento da humanização na assistência ambulatorial
[5,6].
O cuidado exige do
profissional que aspira realizá-lo algumas qualidades: ética, solidariedade e
confiança, uma vez que tem como objetivo o alívio, o conforto do ser cuidado,
podendo promover a cura, o bem-estar e, quiçá, a mudança de estilo de vida
deste [1,2,7]. O cuidado humanizado está regulado no respeito à individualidade
dos usuários e na dissociação de comportamentos sociais negativos,
discriminação e medo [3,8]. Apesar de o Sistema Único de Saúde (SUS) e suas políticas
focalizarem a tentativa de alcance do cuidado humanizado, a formação dos
profissionais de saúde, em sua maioria, segue a lógica de um cuidado
fragmentado, especializado, biologizante e focado no
modelo liberal [5,7].
A assistência
ambulatorial aqui se refere ao atendimento nas Unidades de Pronto Atendimentos
(UPAs), que são estruturas de complexidade
intermediária entre as Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e a rede hospitalar,
funcionando 24h por dia, todos os dias da semana. Ela é composta por uma rede
organizada de atenção a urgências e emergências, com pactos e fluxos
previamente definidos, com o objetivo de garantir o acolhimento aos usuários,
intervir em sua condição clínica e contrarreferenciá-los
para os demais pontos de atenção [5,9].
O enfermeiro é indicado
pelo Ministério da Saúde (MS) como sendo o responsável pela avaliação inicial
do usuário que chega à UPA e determina a prioridade de atendimento assim como o
tempo de espera, organizando o fluxo de triagem e promovendo um cuidado
humanizado. Ressalta-se que todos os profissionais de saúde devem realizar o
acolhimento do usuário e sua família, mas cabe ao enfermeiro a atividade de
classificação de risco [10,11].
Nessa perspectiva, o
enfermeiro contribui para o SUS de forma diversificada ao contabilizar, em sua
força de trabalho, mais de um milhão de trabalhadores, inseridos nos diferentes
níveis de atenção à saúde no território brasileiro, com assistência
ininterrupta, com estabelecimento de vínculo direto com os usuários dos
serviços de saúde, equipe interdisciplinar e sociedade civil [2]. Isso
justificou a realização deste estudo com enfoque na assistência ambulatorial
visto suas peculiaridades referentes às características do ambiente terapêutico,
às configurações de organização do trabalho e às relações interpessoais
estabelecidas.
Foram elaboradas duas
questões de pesquisa, a saber: Como os enfermeiros percebem as relações
interpessoais durante a realização da assistência ambulatorial? Essas
percepções são capazes de influenciar a qualidade do cuidado de enfermagem
prestado? Sendo assim, as relações interpessoais no cuidado de enfermagem
ambulatorial percebidas pelos enfermeiros foram consideradas objeto do presente
estudo.
Desse modo,
objetivou-se compreender as percepções de enfermeiros sobre as relações
interpessoais no cuidado de enfermagem ambulatorial.
Investigação de
delineamento qualitativo de abordagem descritiva, fundamentada no método Hermenêutico-dialético
como aporte à análise e tratamento dos dados [12,13], com base no protocolo Consolidated Criteria
for Reporting Qualitative Research (COREQ) [14].
A pesquisa foi realizada em duas UPAs da cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, consideradas
como referências macrorregionais no atendimento de urgência e emergência aos
usuários do SUS. Cabe mencionar que, nos dois cenários de investigação, o
enfermeiro é o responsável pela triagem, classificação de risco e acolhimento
dos usuários.
Foram critérios de elegibilidade: os
enfermeiros atuantes nas duas UPAs, cenários
investigados (N = 13). Foram critérios de exclusão: estarem em período de
férias ou de licença médica, ou ainda se recusarem a participar ou adiarem a
entrevista por ≥ 3 abordagens. Houve apenas uma perda, um enfermeiro por
recusa, totalizando-se 12 participantes inclusos na investigação.
O instrumento de coleta
de dados, da entrevista semiestruturada, foi composto de: 1) Dados de
caracterização sociodemográfica; 2) Questões norteadoras consideradas
disparadoras sobre sua percepção individual a respeito das relações
interpessoais relacionadas ao cuidado de enfermagem realizado no contexto
ambulatorial da UPA e 3) Diário de campo. Cabe mencionar que o instrumento foi
elaborado pelos pesquisadores após revisão prévia da literatura e levantamento
dos pontos relevantes referentes às relações interpessoais no cuidado de
enfermagem.
Após aquiescência,
externada mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE) pós-informado, no horário agendado, as entrevistas ocorreram em sala com
privacidade, evitando-se possíveis constrangimentos e proporcionando maior
entrosamento da díade pesquisador-participante. O processo de coleta de dados
foi antecedido por agendamento individual realizado pessoalmente, em horário de
serviço pela pesquisadora principal, conforme disponibilidade do binômio
pesquisador-participante. A coleta de dados ocorreu em setembro de 2016, com
duração estimada de ± 00:30:00 minutos.
Cabe mencionar que os
dados de caracterização sociodemográfica foram registrados em impresso próprio,
os provenientes das questões norteadoras tiveram seu conteúdo total gravado em
áudio para posterior transcrição e as informações complementares relevantes,
assim como as impressões da pesquisadora, obtidas durante a entrevista, foram
registradas em diário de campo.
Os dados foram
transcritos na íntegra em Software Word for Windows 2016 e elaboradas as
categorias analíticas segundo o conteúdo [14], sendo o tratamento de dados
conforme o método Hermenêutico-dialético [13]. Essa análise foi realizada
seguindo as etapas: 1) Elaboração das categorias analíticas no início da
pesquisa para o desvendamento dos aspectos mais abstratos e mediadores do
contexto da pesquisa. Foram elas: o trabalho do enfermeiro na assistência
ambulatorial; percebendo as relações interpessoais com o usuário na assistência
ambulatorial; relações interpessoais como limitantes ao cuidado de enfermagem.
2) Organização dos dados, em que todas as entrevistas foram transcritas e,
posteriormente, fez-se a leitura flutuante do material, o que possibilitou que
a pesquisadora fosse impregnada pelo seu conteúdo. 3) Classificação dos dados –
teve por objetivo a identificação dos núcleos de sentido a partir das falas dos
entrevistados, denominadas aqui unidades de sentido. Os núcleos de sentido são
estruturas de relevância que possibilitaram a interpretação e inter-relação das
ideias centrais, bem como a identificação do que foi relatado com mais
evidência pelos entrevistados, que são as unidades de sentido [12].
O número de
entrevistados foi definido pelo adensamento teórico que foi identificado pela
repetição e frequência com que emergiram os conteúdos categóricos e ausência de
novas informações complementares a respeito do objeto investigado. Foi
concebido que a amostra qualitativa foi ideal pela capacidade de refletir, em
quantidade e intensidade, as múltiplas dimensões de determinado fenômeno,
garantindo a qualidade e integração dos dados [15,16].
O projeto de pesquisa
foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz
de Fora (CEP-UFJF) da pesquisa intitulada “Relações interpessoais no
acolhimento com usuários na classificação de risco: percepção do enfermeiro”,
sob o parecer consubstanciado nº 1.698190 aprovado em 25/08/2016, e atendeu os
aspectos ético-legais de pesquisa em seres humanos conforme legislação (inter)nacional. O anonimato dos participantes foi
garantido, mediante a adoção de códigos alfanuméricos compostos pela
abreviatura da palavra enfermeiro “ENF” e dois dígitos que corresponderam à
ordem de realização das entrevistas.
Dos 12 enfermeiros
entrevistados, sete eram do sexo feminino (58,33%), com idade compreendida
entre 27 e 48 anos, o tempo de formado variou entre três e 12 anos, e a atuação
no contexto de urgência e emergência nas UPAs variou
entre um e seis anos. Do total de participantes, nove trabalhavam como
plantonistas em esquema 12x36h e três em regime diarista, dois (16,66%) tinham
mais de um vínculo empregatício, e apenas seis deles (50%) possuíam alguma
pós-graduação.
Os núcleos de sentidos
que emergiram das falas foram: “Relações interpessoais no trabalho em equipe
multiprofissional de saúde”; “Relações interpessoais como assistência ao
usuário”; “O cuidado de enfermagem: sentimentos dos enfermeiros no acolhimento”
que foram discutidos em forma de categorias analíticas.
O trabalho do
enfermeiro na assistência ambulatorial - Núcleo de Sentido: Relações
interpessoais no trabalho em equipe multiprofissional de saúde
Os participantes
destacaram as relações interpessoais no trabalho da equipe multiprofissional de
acordo com as unidades de sentido:
Então,
eu tenho que ter um bom relacionamento. Se eu tenho esse bom relacionamento, eu
ajudo eles e eles me ajudam [equipe de enfermagem]. E, com os médicos, é a
mesma coisa. ENF06.
Eu
tenho que me dar bem com o meu colega de trabalho. Fica um ambiente bom,
tranquilo de trabalhar. ENF10.
[...]
Então a relação interpessoal é muito importante. Porque eu saber lidar com o
meu colega, né, o serviço dele adiciona e quem vai se sentir melhor é o
paciente que vem procurar a unidade, né? ENF11.
Os participantes também
destacaram que adequadas relações interpessoais impactam positivamente o
cuidado de enfermagem ao usuário:
Eu
acho que é aqui ele se sente acolhido. Não é só ele vem para ser medicado. Mas,
na maioria das vezes, por trás de uma simples dor de cabeça, às vezes, tem um
problema familiar, entendeu? Então assim, o simples fato dele ver que está todo
mundo junto ele já se sente acolhido. ENF01.
Ele
está com uma queixa, aí a gente conversando, descobre que o problema dele não é
a dor de cabeça, porque ele está com uma pressão alta. É alguma coisa que
aconteceu com ele e está gerando essa dor de cabeça. ENF03.
Positivamente.
Porque eles acreditam muito na gente. A nossa palavra, para eles, vale muito.
ENF04.
Percebendo as relações
interpessoais no cuidado de enfermagem - Núcleo de Sentido: Relações
interpessoais x cuidado de enfermagem
Os participantes
percebem que a interação com os usuários é necessária para que o cuidado de
enfermagem se realize efetivamente, como observado nas unidades de sentido.
Alguns
vêm fragilizados, que choram, que contam a sua vida ali. Em poucos minutos,
você fica conhecendo o paciente. Mas tem outros que, se você não perguntar,
eles não soltam, são mais retraídos, entendeu? Principalmente homens, idosos
(risos). “Minha filha, não gosto de vir em médico”. Aí, se você não perguntar,
não cutucar, não libera. ENF05.
Ah,
passa um relacionamento do profissional com o paciente. Que é um
relacionamento, assim, de acolher mesmo, de saber o que está se passando, de
tratamento, de cuidado [...] isso reflete até nas pessoas, na hora da triagem
em si. ENF12.
Além disso, os
enfermeiros percebem que as relações interpessoais emergem da escuta
qualificada, que é um elemento essencial na assistência ambulatorial como
descrevem as unidades de sentido.
Normalmente,
modéstia à parte, eu venho recebendo alguns elogios da maneira pela qual eu
trabalho. Por quê? Eu escuto o paciente. ENF04.
É
a conversa que você tem no dia a dia. É paciente que a gente já pega até uma
amizade. ENF05.
E,
muitas das vezes, não é o atendimento imediato que você precisa prestar, mas é
mais a escuta, é uma dor que já é crônica, você precisa mesmo de acolher mesmo,
do que de propriamente assistir imediatamente. ENF07.
As relações
interpessoais e o limite ao cuidado de enfermagem - Núcleo de Sentido:
Sentimentos dos usuários, julgamentos conflitantes e o cuidado de enfermagem
Os participantes
relatam que os sentimentos dos usuários limitam o cuidado de enfermagem como
citado nas unidades de sentido a seguir:
Bom,
para mim, a dificuldade é essa questão de cultura mesmo. Enquanto uns que
entendem [...]. Igual tinha um ali, um já trabalhava na saúde e a outra não. A
outra que é mais ligada à filha. Ela entendeu um pouco o nosso lado, que nem
tudo é a gente que resolve. A gente depende também de outras pessoas para
ajudar. ENF02.
É,
eu acho que eles não gostam muito da triagem. Sentem um pouco de resistência.
“Ainda tem que passar pela triagem?” Aí, às vezes, a gente faz a classificação:
“Por que que a minha classificação é verde? É urgência o meu atendimento”.
ENF03.
[...]
Os pacientes acabam ficando um pouco agressivos com a gente que está na
triagem. Então, às vezes, acaba indispondo com a gente por uma coisa que não é
nem culpa nossa. É questão médica (médicos demorando a atender). ENF07.
Os participantes
relatam que outras categorias profissionais avaliam de forma equivocada o
cuidado de enfermagem na assistência ambulatorial:
[...]
existem alguns médicos que não curtem muito essa coisa da triagem do
enfermeiro. Mas o médico ele acha que ele tem o direito de colocar o dedo na
sua triagem ou de falar que a sua triagem não está certa e tal. Isso já
aconteceu comigo e já aconteceu com vários outros funcionários. Eu acho isso um
problema. ENF05.
Eu
acho que precisa, aí sim, do relacionamento interpessoal, mais afetivo com o
médico. Ele prefere questionar a triagem a pegar o paciente ou refazer a
triagem. Ou assim, eu acho que não existe uma retriagem
para menos, né? Só para mais. Mas, às vezes, o médico acha que o paciente está
triado de uma coisa que é menos e não valoriza a nossa triagem. Eu acho que o
que prejudica é o relacionamento interpessoal com o médico. ENF08.
Um perfil similar de
caracterização sociodemográfica e profissional foi encontrado em outra
investigação realizada com enfermeiros da Atenção Básica [17]. Entre os
inúmeros espaços em que ocorrem cuidados de enfermagem, os serviços de
assistência ambulatorial constituem-se em um dos segmentos da saúde em que os
enfermeiros exercem sua prática como integrantes da equipe multiprofissional e
interdisciplinar [18].
Embora haja alinhamento
teórico entre a equipe multiprofissional com os fundamentos da assistência
ambulatorial, é necessário ampliar a sua concepção para além de uma atividade
específica, exigindo novos investimentos sobre a habilidade do cuidar e do
estar atento para acolher, o que potencializa o atendimento das demandas de
cuidados e necessidades básicas dos usuários [19]. Isso é condição para
favorecer o cuidado humanizado na atuação do enfermeiro na assistência
ambulatorial, uma vez que parte dessas habilidades são as boas relações
interpessoais na equipe multiprofissional, o bem-estar do enfermeiro, o
trabalho reconhecido e valorizado, a formação e a capacitação [20].
As unidades de sentido
demonstraram que boas relações interpessoais com os demais profissionais da
equipe de saúde viabilizam a criação de um ambiente de colaboração tranquilo e
fazem com que o usuário se sinta bem. Além disso, relações interpessoais adequadas
com os usuários são positivas ao aumentarem a confiança destes com relação ao
enfermeiro, resultando, por exemplo, em uma anamnese mais abrangente [18-20].
Pode-se
inferir que o
trabalho do enfermeiro na assistência ambulatorial, sob a
perspectiva das
relações interpessoais, não é uma
prática simples, uma vez que depende de
múltiplos fatores: sociais, históricos, culturais,
econômicos, enfim, exige uma
equipe multiprofissional que atue de forma interdisciplinar e tenha uma
formação adequada e educação permanente em
saúde, além de condições laborais e
de trabalho reconhecido e valorizado [1,2].
A percepção é um fator
de ordem psicológica, como a aprendizagem, as crenças e as atitudes. O
enfermeiro, por vezes, não consegue perceber tudo relacionado ao seu processo
de trabalho, ele usa a exposição seletiva, isto é, interpreta a mensagem e a
adapta aos seus valores para decidir quais estímulos irá notar e quais irá
ignorar. Ao decidir, esta ação perpassa por influências conscientes, inconscientes,
intencionais ou não. Destarte, um comportamento pode ser induzido pela
influência, que habitualmente ocorre nas relações interpessoais [21].
No que concerne ao
cuidado de enfermagem no ambulatório, observa-se que ele é marcado por
ambiguidades e por relações interpessoais conflitantes, que podem culminar em
vivências de angústia e de sofrimento, bem como em um cuidado de enfermagem
inadequado [22]. Destaca-se que a percepção do enfermeiro abrange um processo
pelo qual ele seleciona, organiza e interpreta estímulos, traduzindo-os em uma
imagem significativa e coerente para o cuidado a ser prestado [2,21].
A manutenção de
relações interpessoais saudáveis no cuidado de enfermagem é possibilitada por
um diálogo franco e transparente, respeito e confiança entre enfermeiro e
usuário. Este se constitui num instrumento ímpar para alcançar melhorias na
assistência oferecida ao indivíduo e, consequentemente, atingir resultados
terapêuticos bem-sucedidos [6].
Neste estudo, o cuidado
de enfermagem foi o enfoque, no entanto cabe destacar que o cuidado é uma
função que deve perpassar todas as categorias profissionais inseridas no âmbito
da saúde. Todos os membros da equipe interdisciplinar de saúde devem ter o
cuidado em suas práxis, considerando que essa é uma área que está sujeita a
condições políticas, econômicas, ideológicas e tecnológicas. Esse cuidado exige
ética, solidariedade e confiança, tendo como objetivo o alívio, o conforto,
podendo promover a cura, o bem-estar e melhorias nos hábitos de vida dos
usuários [2,7].
Com base nos resultados
apresentados, observa-se que a interação entre enfermeiros e usuários é
necessária para que o cuidado de enfermagem se realize, pois alguns destes
últimos relatam sua vida em poucos minutos. Entretanto, a interação com outros
usuários, ao contrário, exige que o enfermeiro tenha uma maior habilidade para
tanto. A escuta qualificada deve ser considerada como elemento essencial na
assistência ambulatorial [1], conforme evidenciado no discurso dos participantes.
Nessa perspectiva, a
percepção do enfermeiro, as relações interpessoais entre o enfermeiro e o
usuário e o cuidado de enfermagem estão intimamente relacionados e são, por
conseguinte, indissociáveis da equipe interdisciplinar. Destaca-se que o
enfermeiro, mesmo que de forma incipiente, percebe que o cuidado de enfermagem
está articulado com as peculiaridades da assistência ambulatorial [5].
Os sentimentos
negativos existentes na assistência ambulatorial têm origem na diferença que se
reflete entre cuidado e intervenção de enfermagem. Intervir aqui assume o
significado de fazer algo para o usuário, desconsiderando a subjetividade da
interação enfermeiro-usuário. Por conseguinte, o cuidado de enfermagem deve
ressaltar a subjetividade dessa interação, valorizando-a na interpretação do
processo saúde-doença do usuário [7].
Na atualidade, os
julgamentos conflitantes perpassam pelo modelo biomédico ainda engessado, que
corrobora a construção de uma interpretação do cuidado de enfermagem como uma
práxis fragilizada. Essa interpretação culmina em concepções do senso comum,
por vezes percebida nos próprios profissionais de enfermagem e nas relações
interpessoais constituintes da assistência ambulatorial [23].
Os participantes
relataram que alguns usuários, devido a características culturais, por
desconhecimento, apresentam resistência com relação à assistência ambulatorial
oferecida, outros, “mais esclarecidos”, compreendem o processo. Cabe mencionar
ainda a exteriorização de uma insatisfação quanto à conduta de alguns
profissionais da classe médica em relação à percepção de um julgamento sobre o
cuidado de enfermagem de forma depreciativa e, por vezes, equivocada e
desrespeitosa.
Desse modo, vale
destacar que sentimentos negativos de usuários, bem como julgamentos
conflitantes com relação ao cuidado de enfermagem, trazem prejuízos não só à
categoria de enfermagem, mas também às relações interpessoais da equipe
multiprofissional e ao usuário. Além disso, repercute no sistema como um todo,
aumentando o tempo de atendimento e os custos dos serviços com o retrabalho.
Enfim, isso pode gerar um círculo vicioso nocivo para a assistência
ambulatorial [1,2].
Ao compreender as
percepções de enfermeiros sobre as relações interpessoais no cuidado de
enfermagem ambulatorial, evidenciou-se que estes reconhecem ferramentas
essenciais a essas relações, a exemplo de humanização, ética, acolhimento,
escuta qualificada, e atuação interdisciplinar respeitosa. A cooperação deve ocorrer
como ferramenta das relações interpessoais e pode contribuir para diminuir a
insatisfação dos usuários, bem como limitar os conflitos da prática médica
hegemônica que impacta negativamente o cuidado do enfermeiro ao usuário.
Como contribuições desta
investigação foram apresentadas percepções dos profissionais de enfermagem a
respeito do cuidado ambulatorial e de suas relações interpessoais na tríade
enfermagem, equipe interdisciplinar e usuários de modo a proporcionar reflexões
sobre a assistência de enfermagem no contexto ambulatorial para o planejamento
de ações educativas que visem à otimização do cuidado humanizado e holístico,
tendo como base a melhoria das relações interdisciplinares.
Foram considerados
limites desta investigação o número reduzido de participantes, que foi
justificado pela abordagem apenas de enfermeiros, e a não inclusão de todas as UPAs pertencentes à cidade investigada. É recomendação dos
autores a realização de novas investigações sobre a temática, que abordem todos
as UPAs da região e novos delineamentos de
investigação, a exemplo do método quantitativo e misto.