ARTIGO ORIGINAL
Mulheres da maloca:
vivências no contexto das ruas
Keila Cristina Costa
Barros, M.Sc.*, Rita de Cássia Rocha Moreira, D.Sc.**, Mariana Silveira Leal, M.Sc.***,
Tânia Christiane Ferreira Bispo, D.Sc.****, Rosana
Freitas Azevedo, D.Sc.*****
*Enfermeira,
Enfermeira do Acolhimento e Classificação de Risco do
Hospital Municipal de Rafael Jambeiro, Rafael Jambeiro/BA,
**Enfermeira, Docente adjunto da Universidade Estadual de
Feira de Santana, Feira de Santana/BA, ***Enfermeira, Docente da
Faculdade Estácio, ****Enfermeira, Pós-doutora
em Saúde Coletiva, Docente titular da Universidade do Estado da Bahia,
*****Enfermeira, Docente titular da Universidade do Estado da Bahia
Recebido em 14 de abril
de 2020; aceito em 26 de outubro de 2020.
Correspondência: Keila Cristina Costa
Barros, Rua Monte Verde, 76, Parque Getúlio Vargas, Feira
de Santana BA
Keila Cristina Costa
Barros: keilaccosta@hotmail.com
Rita de Cássia Rocha
Moreira: ritahelio01@yahoo.com.br
Mariana Silveira Leal:
marianaleal.enf@hotmail.com
Tânia Christiane
Ferreira Bispo: taniaenf@uol.com.br
Rosana Freitas Azevedo:
rosanafazevedo@hotmail.com
Resumo
Introdução: A condição da mulher
em situação de rua representa uma fratura e vulnerabilidade social da
existência, pois está exposta a diversas violências. Objetivo:
Compreender a vivência de mulheres em situação de rua. Métodos:
Abordagem qualitativa, descritiva, à luz da fenomenologia de Martin Heidegger,
adaptada à área de saúde. Participaram dez depoentes. A técnica de coleta foi a
entrevista fenomenológica, com um roteiro semiestruturado. A análise
compreensiva seguiu os momentos metódicos: redução, construção e destruição
fenomenológica. Resultados: O existir de mulheres em situação de rua
representa seres lançadas ao mundo, com dificuldades, discriminação, violência,
preconceito, racismo e vulnerabilidade configurando uma violação da dignidade
humana. Conclusão: Existir nas ruas como mulher é viver ressignificando
seu modo de existir. São vidas nuas nas ruas, e necessitam de políticas
públicas de segurança à vida, por viverem em desigualdade de direitos.
Portanto, defende-se a busca de estratégias de acolhimento, em defesa da vida
dessas mulheres como um compromisso humanitário e social.
Palavras-chave: mulheres, pessoas em
situação de rua, filosofia.
Abstract
Maloca women: experiences in the street context
Introduction: The condition of homeless women represents a fracture and social
vulnerability of existence, and exposition to various types of violence. Objective:
To understand the experience of women living on the streets. Methods:
Qualitative, descriptive approach, in the light of Martin Heidegger's
phenomenology, adapted to the health field. Ten deponents participated. The
collection technique was the phenomenological interview, with a semi-structured
script. The comprehensive analysis followed the methodical moments: reduction,
construction and phenomenological destruction. Results: The existence of
women on the street represents beings launched into the world, with
difficulties, discrimination, violence, prejudice, racism and vulnerability,
constituting a violation of human dignity. Conclusion: To exist on the
streets as a woman is to live with a new meaning to her way of existing. They
are naked lives on the streets, and they need public policies for life
security, because they live in unequal rights. Therefore, we defend the search
for welcoming strategies, in defense of the lives of these women as a
humanitarian and social commitment.
Keywords: women, homeless persons, Philosophy.
Resumen
Mujeres de la maloca: experiencias en el contexto de la calle
Introducción: La condición de las mujeres sin hogar representa una fractura y vulnerabilidad social
de la existencia, ya que está expuesta a varios tipos de violencia. Objetivo: Comprender la experiencia de las mujeres que viven en la calle. Métodos: Enfoque cualitativo, descriptivo a la luz de la fenomenología
de Martin Heidegger, adaptada al campo de la salud. Participaron diez deponentes. La técnica de recolección
fue la entrevista
fenomenológica, con un guion semiestructurado. El análisis integral siguió los momentos metódicos: reducción,
construcción y destrucción
fenomenológica. Resultados: La existencia de mujeres en la
calle representa seres lanzados
al mundo, con dificultades,
discriminación, violencia, prejuicios, racismo y vulnerabilidad,
que constituyen una violación
de la dignidad humana. Conclusión: Existir en las calles como mujer es vivir dando un nuevo significado a su forma de existir. Son vidas
desnudas en las calles, y necesitan políticas
públicas para la seguridad
de la vida, porque viven en derechos desiguales. Por ello, defendemos la búsqueda de estrategias de acogida, en defensa de la vida de estas mujeres como compromiso humanitario y social.
Palabras-clave: mujer,
personas sin hogar, Filosofía.
A pessoa em situação de
rua, segundo o Decreto 7.053 de 23 de dezembro de 2009, é definida como
heterogênea, tendo em comum a pobreza extrema; o rompimento ou fragilidade com
o vínculo familiar; ausência de moradia convencional; ocupação de espaços públicos
e áreas degradadas como forma de habitação e sustento. Pode ser de forma
temporária ou permanente, bem como utilizando locais de acolhimento para a
pernoite [1].
“A vida na/e da rua não
permite clichês, ela é múltipla e complexa, é lócus de conflitos e contradições
sociais” [2]. Viver na rua é, por si só, sofrer violência devido à desigualdade
de direitos em relação aos demais que vivem em sociedade [3].
Pessoas em situação de
rua destacam-se pela diversidade existencial que as compõem e que delas fazem
parte. Neste contexto, estão as mulheres da maloca e suas existências nas ruas,
que nos motivaram a realizar este estudo.
Maloca é a denominação
que os moradores de rua atribuem ao local e ao modo da sua existencialidade,
significa um caráter específico de viver e ser na rua [4]. Numa perspectiva
conceitual mais atual, maloca é uma categoria nativa que diz respeito a pessoas
que vivem em situação de rua [5].
Para a compreensão da existencialidade da mulher em situação de rua, aplicou-se a
perspectiva fenomenológica heideggeriana. Com um olhar atentivo para as
condições nas quais se encontram tais mulheres, faz-se entrever uma dupla
exclusão: por ser mulher e por estar em situação de rua. Esta realidade
excludente se manifesta por meio do estigma e da marginalização, com exposição
fraturada da condição social específica e heterogênea [6].
Uma
terceira nuance de
exclusão é a raça, pois a maioria das mulheres em
situação de rua são negras, o
que representa mais uma vulnerabilidade. Estudo realizado no
município estudado, aponta que 89% das pessoas que viviam nas
ruas, não se consideravam brancos, e sim, pretos e pardos [5].
Quanto às questões de
diferenças e desigualdades sociais no Brasil, os indicadores sociais e
marcadores da condição de vida dos segmentos sociais mostram que a raça negra
faz parte do quadro de piores níveis de educação, saúde, renda, habitação,
maior adoecimento, maior mortalidade, residem em áreas desprovidas de
infraestrutura básica, e tem o pior acesso aos serviços de saúde [7].
A condição da mulher em
situação de rua representa uma fratura e vulnerabilidade social da existência,
pois está exposta a diversas violências, tais como: estupro, abusos físicos,
compartilhamento do seu corpo pelos homens do grupo no qual ela está inserida
[8]. Vulnerabilidade se configura como um indicador da iniquidade e da
desigualdade social, com conceito multidisciplinar que inclui a detecção de
fragilidades de grupos e indivíduos, mas também a capacidade de enfrentamento
dos problemas e/ou agravos de saúde [9].
Os dados apresentados
no relatório do panorama de usuários de drogas em situação de rua no município
do estudo, publicado em 2016 pela equipe do projeto “Somos Invisíveis?
Conhecendo a população de Usuários (as) de Drogas em Situação de Rua de Feira
de Santana”, revelam que, em relação ao sexo, a predominância masculina nas
ruas foi de 85%, já a presença feminina foi de 15% [5]. Ou seja, o contexto das
ruas é hegemonicamente masculino, o que torna a mulher ainda mais vulnerável,
pois estão diante de um universo, em que sua maioria, é machista, tornando-as
expostas a diversas violências.
Dentre as
características das mulheres em situação de rua em relação a sua sobrevivência,
existem duas que chamou a atenção: 1) Preferem ter um parceiro, na tentativa de
se sentirem seguras, sendo fiel a ele, e em muitos casos lhe conferindo o papel
de subalternidade; 2) ou são mulheres sozinhas que assumem uma postura de
duronas, como forma de defesa. Geralmente andam armadas, e possuem performance
corporal com características masculinas, na busca do respeito do grupo [8,10].
A sobrevivência dessas
mulheres nas ruas implica o uso de práticas que extrapolam a dignidade humana,
muitas realizam a troca do ato sexual por droga, de modo que o consumo de droga
é uma rotina [6]. Dessa condição, apreende-se a possibilidade da gestação,
muitas vezes de forma não desejada. A maioria das mulheres, em situação de rua,
descobre que está gestante pelas mudanças corporais e por experiências de
outras gestações. Assim, a prática do uso de métodos contraceptivos e de
proteção sexual não são consideradas relevantes por muitas delas. Portanto, é
alta a possibilidade de engravidar, o que pode ser um problema de saúde
pública, além da contaminação pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e
outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) [5].
As mulheres em situação
de rua encontram inúmeras barreiras para acessar ações e serviços públicos.
Isso decorre de várias ausências, tais como: dificuldade de informação, de
documentação e de endereço fixo, apesar da não obrigatoriedade da documentação,
como comprovante de residência e cartão do Sistema Único de Saúde (SUS),
prevista no Decreto Nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009, e recentemente pela Lei
Nº 13.714, de 24 de agosto de 2018, que expõe:
“Parágrafo
único. A atenção integral à saúde, inclusive a dispensação de medicamentos e
produtos de interesse para a saúde, as famílias e indivíduos em situações de
vulnerabilidade ou risco social e pessoal, nos termos desta Lei, dar-se-á
independentemente da apresentação de documentos que comprovem domicílio ou
inscrição no cadastro no Sistema Único de Saúde (SUS), em consonância com a
diretriz de articulação das ações de assistência social e de saúde a que se
refere o inciso XII deste artigo” [11].
As pessoas em situação
de rua, inclusive as mulheres, ainda se deparam com a obrigatoriedade desses
documentos. Esse contexto é um reflexo da falta de capacitação dos
profissionais que não conhecem as leis e das pessoas em situação de rua, que
não se apropriam desse conhecimento, gerando um cenário de uma violação aos
direitos garantidos. No âmbito do SUS e do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), visando a inclusão social, gestores e profissionais podem dar atenção
especial às singularidades dessas mulheres, com a eliminação/flexibilização
dessas barreiras e, do mesmo modo, permitir o acesso universal e igualitário às
ações e serviços [12].
Trata-se de um estudo
de abordagem qualitativa, descritiva, com eixo de aproximação ao método
fenomenológico heideggeriano, adaptado à área de saúde, e sua característica
resvala na compreensão interpretativa dos fenômenos, desvelamento de sentidos e
significados da vida cotidiana [13].
No contexto de uma
investigação qualitativa, realizar uma pesquisa fenomenológica representa
compreender ser-no-mundo, como se apresentam os fenômenos da existencialidade de ser, muitas vezes não expressos por
palavras, mas por gestos e comportamentos [14].
A Fenomenologia busca
sentido de ser, algo que se torna manifesto, compreendido e conhecido para o
humano, denominado por ele de ser-aí (Dasein),
ser-no-mundo [15].
A pesquisa foi
realizada no município de Feira de Santana/BA, situada na região Centro-Norte.
De acordo com o último Censo e Pesquisa Nacional sobre a População em Situação
de Rua, realizado em 2007/2008, estipula-se que a proporção dessas pessoas em
relação à população total de Feira de Santana foi de 237 pessoas [16].
Atualmente, nesse lócus, existe um quantitativo estipulado de mais ou menos 300
pessoas em situação de rua. Um dado não confirmado, apesar de documentado pela
sociedade civil organizada - Movimento Nacional da População de Rua - Núcleo
Feira de Santana, movimento esse que contribuiu de forma significativa na
realização deste estudo.
As participantes desta pesquisa foram dez mulheres que vivem em situação de rua, idade superior aos 18
anos, residentes em espaços públicos do município estudado. Foi assegurado o
uso de codinome, escolhido pelas mesmas que contemplou nomes de praças do
munícipio pesquisado, por se compreender que muitas pessoas que integram essa
situação existencial, localizam-se e agrupam-se nesses locais.
A coleta foi realizada
nos meses de março, abril e maio de 2019. A técnica foi a entrevista
fenomenológica, uma forma de acesso que o observador dispõe para penetrar nos
objetos vividos. O instrumento foi um roteiro semiestruturado [17].
O processo analítico
envolveu os momentos metódicos adaptados em Heidegger [18]. No primeiro -
redução fenomenológica, foi realizada a transcrição das entrevistas, leitura
atentiva dos depoimentos. O segundo diz respeito à construção fenomenológica.
Nesta etapa, buscou-se a compreensão de sentidos, a percepção de como é ser no
mundo, para o desvelamento do fenômeno: vivência de mulheres em situação de
rua. O terceiro momento, a destruição fenomenológica, trata-se da reconstrução.
É quando emerge a construção de novo conhecimento a partir do desvelar de ser,
da existencialidade do outro, do fenômeno estudado.
Neste estudo foram
respeitados os aspectos éticos, com a Resolução 466/2012 e 510/2016 do Conselho
Nacional de Saúde (CNS), Ministério da Saúde (MS).
Esta investigação está
vinculada ao Núcleo de Pesquisa e Extensão em Saúde da Mulher da Universidade
Estadual de Feira de Santana (NEPEM-UEFS) no projeto de pesquisa Atenção à
saúde da mulher nos serviços públicos do município de Feira de Santana/BA. Tem
aprovação no CEP/UEFS - parecer 2.686.905/2018 com emenda nº 2.031.634.
A fenomenologia
possibilita compreender a existência humana. A existência não significa o que
se encontra no mundo, mas o que emerge, consolidando-se em três aspectos: a
facticidade, como o estar-aí, lançado no mundo, sem
alternativas de escolhas; a decadência, como modo de ser no cotidiano, sujeito
no domínio do impessoal e caracterizado pelo falatório, curiosidade e
ambiguidade; e a transcendência, um modo de projetar-se para além de si e
descobrir-se [19].
O humano é existência, ser-aí, ser-no-mundo, ser-com, é facticidade que se mostra
em temporalidade e espacialidade, compreendendo dessa forma um ser histórico. O
ser-aí não é um atributo de algo já constituído, mas
um ente cuja essência reside na existência, concebida em ter-que-ser. Esse ser
do humano é relacional ao seu próprio ser como forma de possibilidade, que
constitui o ser do humano como existência [15].
Foi possível compreender
que o existir nas ruas sendo mulher encontra-se no mundo de dificuldades, estão
expostas a tudo e a todos. Situação perversa, dentro de um sistema que as
compreendem muitas vezes como inexistentes factuais a este mundo, tal como
narrado nas falas a seguir:
[...]
Ai, meu Deus, é uma dificuldade. [...] é muita coisa na mente, muita coisa na
vida da pessoa (pensativa, olhos lacrimejando) (Praça da Kalilândia
1).
[...]
A mulher sozinha na rua ela fica à mercê de tudo e de todos (Praça da Matriz
1).
[...]
é estar vulnerável a tudo e a todos (Praça da Kalilândia
2).
[...]
o povo me dava as coisas, mas me humilhava (Praça da Bandeira 1).
[...]
É difícil, é! [...] Porque a gente é muito discriminada! A gente é muito
apontada! (Praça da Kalilândia 3).
As falas acima
descrevem ser-no-mundo como mulher em situação de rua. É viver no modo da
facticidade como fenômeno da existência. A “facticidade diz respeito a um
conceito que abriga em si o ser-no-mundo de um ente cujo destino está ligado ao
dos outros, entes que lhe vêm ao encontro dentro de seu próprio mundo”
[18:102]. O conceito fenomenológico de fenômeno propõe, como se mostra, o ser
dos entes, seu sentido, suas modificações e derivados, pois o mostrar-se não é
um mostrar-se qualquer e, muito menos, uma manifestação. O ser dos entes nunca
pode ser uma coisa “atrás” da qual esteja outra coisa “que não se mostre” [18].
A rua, para as
mulheres, passa a ser um espaço de referências, onde criam as suas relações e a
identificação com esse novo modo de vida, pois encontram pessoas no igual
limite de vulnerabilidade [20].
Nesse convívio
itinerante, pouco a pouco, a mulher vai aprendendo os mecanismos de
sobrevivência e as regras existentes na rua, como relatado:
[...]
...O Centro Pop dá o café da manhã, a gente toma banho, a gente lava a roupa da
gente, pra quem quer lavar né? [...] tem até o Centro de Abastecimento que eu
cato comida, [...] acha no lixo, ou vai catar lá nas latas de lixo do Centro de
Abastecimento, tem um monte de frutas, depois pede um dinheirinho a um, um
dinheirinho a outro, pra comprar uma comida, e eles dão (Praça da bandeira 3).
Nas falas a seguir, foi
desvelado que o fenômeno existir nas ruas é permeado pela circularidade da
violência (física, sexual, fatal, simbólica, emocional), insurgindo de todos os
lados (companheiros, outras pessoas em situação de rua, comerciantes), e de
múltiplas formas: preconceito, racismo, discriminação. Na maioria das vezes são
invisibilizadas e possivelmente originadas nas pessoas
que deveriam manter a segurança. Os relatos a seguir expõem essa fratura
vivenciada em relação a segurança pública:
[...]
Às vezes existe a violência sexual, existe a violência corporal. Existem várias
formas de violência com a mulher na rua (Praça da Matriz 2).
[...]
A violência é muito [...] a violência é facada, é paulada, é quando o homem
parte para tiro, pega a mulher e faz barbaridade [...] e a polícia não faz
nada, fica tudo por isso mesmo (Praça da Matriz 4).
[...]
A polícia é a primeira a estar agredindo verbalmente, fisicamente, como fui
vítima nessa terça-feira, eu trabalhando e eles me discriminando, me chamando
de neguinha sacizeira (pessoa viciada em crack),
neguinha vagabunda, coisa que eu nunca fui. Fui sim, usuária de drogas (Praça
da Kalilândia 2).
[...]
A polícia comigo, por exemplo, não fala nada não, só de vez em quando que eles
chegam lá e: Todo mundo levantando... Aí eu não levanto, fico sentada lá, aí
eles: E você sua desgraça, não tá vendo não, levante
logo vá! Aí eu: Oxente! (Praça da Bandeira 3).
Na fala de Praça da Kalilândia 2, o racismo é presente e contundente, pois a
maioria das mulheres que estão nessa situação são negras, o que configura um
condicionante de exclusão, preconceito, violência, ou seja, há insegurança no
existir. O racismo imposto à maioria dessas mulheres, além do cometido pela
sociedade, configura-se também, um racismo estruturante. Representa um sistema
de opressão cuja ação transcende a mera formatação das instituições,
perpassando desde a apreensão estética a todo e qualquer espaço nos âmbitos
público e privado.
O racismo estruturante
das relações sociais está na configuração da sociedade, e por ela é
naturalizado. Por corresponder a uma estrutura, o preconceito pela raça negra
não está apenas no plano da consciência, mas intrínseco ao inconsciente.
Transcende o âmbito institucional, está na essência da sociedade e, assim, é
apropriado para manter, reproduzir e recriar desigualdades e privilégios,
revelando‑se como mecanismo para perpetuar o atual estado das coisas
[21]. Dessa forma, as mulheres pretas e pardas em situação de rua possuem um
agravamento na vulnerabilidade do existir nas ruas, sujeitas as degradantes
condições de vida.
Nesse cenário de
vulnerabilidades e de fratura existencial, no qual as mulheres em situação de
rua estão submetidas, forma-se um contexto envolto por preconceitos,
violências, desigualdade de gênero e violação de direitos humanos e sociais.
São vítimas de diversas violações, acrescidas da violência relacionada à
dominação masculina, ao uso abusivo de drogas, que em alguns casos submetem
essas mulheres a troca da prática do sexo pela droga, no intuito de garantir um
abrigo, proteção e até mesmo comida, algumas usam o corpo como moeda de troca
[22].
Todas as mulheres que
fazem essa escolha relatam ter sentimento de culpa, sofrimento e vergonha, tal
como descrito na fala a seguir:
[...]
Eu não gosto de dizer (fica de cabeça baixa) (em relação a violência que
ocorre). Só teve um lá né? Que com a palhaçada dele estava querendo (sexo)
[...] E aí depois ele veio cobrar a pedra dele que eu tinha fumado, aí que eu
peguei e não quis pagar. Ele pegou uma faca cega, dizendo que ia me furar.
[...] Eu disse: Depois eu pago, ele: Não! Agora! Então tá
bom, abri um pouco as pernas assim, e ele ficou lá (fazendo sexo), aí depois
ele cansou e foi embora. (Praça da Bandeira 3).
Neste convívio marcado
por riscos e inseguranças, para as mulheres em situação de rua, ser-com-o-outro
possibilita segurança, como descrito na fala abaixo:
[...] mas a mulher sozinha
na rua é difícil, só vive se tiver acompanhada com alguém pra tá ali, ter a
figura de um homem pra proteger (Praça da Matriz 1).
O mundo do ser-aí é compartilhado. O ser-em
é ser-com-os-outros [18]. Ser-com-os-outros no cotidiano mantém-se entre dois
extremos, aquele que o domina, e o que liberta [16]. A mulher, em muitos casos,
vivencia o ser-com no domínio, pois muitas delas por terem um companheiro como
proteção, submetem-se a situações degradantes, como narrado abaixo:
[...]
somos muito discriminadas por esses homens. [...] Acha que a mulher é
autoridade dele, é obrigação dele. A mulher não pode ser isso dele (Praça da
Matriz 4).
Essa fala permite
desvelar que na relação com alguns dos seus companheiros há um modo de
solicitude deficiente, tal como define Heidegger. Solicitude é o relacionar-se
com alguém, com o outro, numa maneira envolvente e significante. A solicitude é
a primordial característica do cuidar, que por sua vez pode ser deficiente. Ela
se dá quando alguém assume a tarefa do outro de cuidar de si mesmo, “saltar
sobre o outro”. Nesta solicitude, o outro está excluído do seu lugar e se torna
dependente de quem cuida [15]. Neste estudo, a fala a seguir representa um modo
de cuidar que salta sobre o outro:
[...] Mas o ruim é quando se
tem um alguém (o companheiro) diz que tá cuidando. Mas, não tá
cuidando! Só tá mais maltratando ainda, entendeu?
(Praça da Bandeira 3).
Essas mulheres precisam
ser destemidas e corajosas para vivenciar essa situação existencial, já que são
expostas a diversas condições objetivas e subjetivas que necessitam de
enfrentamento, condições oriundas de uma sociedade machista e sexista. E por
estar em menor número nas ruas, ficam expostas e vulneráveis:
[...]
ela tem que ser sangue no olho viu? E desacreditada, porque se não todo mundo
quer se aproveitar [...] Todos acham que é prostituta,
que por um prato de comida, por uma droga vai se trocar, vai trocar sexo por
droga, por comida, e não é assim (Praça da Kalilândia
2).
[...] Mas é difícil ser
mulher, porque ela não tem as habilidades de um homem. Não tem como se defender
como homem né? Então é mais difícil ser mulher na rua (Praça da Matriz 2).
Essas falas deixam
acessível a compreensão de que o ser-aí é existência,
e que está constantemente definindo que tipo de ser ele é, uma vez que
“ser-no-mundo é o modo básico do ser-aí, no qual os
modos de ser são codeterminados” [15]. O que ele é,
ele mesmo é que define. E essa definição é sempre projeção. Assim, a fala a
seguir expressa o existir da mulher em situação de rua, com sua potencialidade
de nos fazer refletir sobre o fenômeno que desvela uma condição de violação.
São contextos que as tornam vulneráveis e marginalizadas, uma conjuntura de
exclusão produzida e reforçada por uma sociedade com olhar discriminatório e
incriminador:
[...]
Rapaz, ser mulher em situação de rua você tem que ser homem e mulher ao mesmo
tempo. Porque nós mulheres somos mais fragilizadas, precisamos de mais atenção,
de cuidado [...] porque senão, não sobrevive não (Praça da Bandeira 2).
A singularidade do
existir dessas mulheres requer um cuidado atentivo e zeloso, envolto na
preocupação (Fürsorge), o cuidado com-o-outro [23].
Na preocupação, criamos laços afetivos de dedicação, lidamos com a
singularidade de cada pessoa. Na condição de profissionais de saúde,
estabelecemos uma relação de diálogo [13].
Mas, existem aquelas
que, na ambiguidade do viver nas ruas, ressignificam o cotidiano do existir,
como descrito:
[...]
Pra mim, os anos que passei na rua foram os melhores
anos da minha vida, apesar de ter tido tuberculose, o pó do papelão, o sereno.
Mas, sobre alimentação, estadia, a gente na rua morando, oxe!
Era uma família que a gente tinha. Gostei da experiência (Praça da Matriz 1).
No modo da ambiguidade,
há uma compreensão mediana e superficial, e na convivência, temos a impressão
de que conhecemos plenamente o outro, mas não conhecemos sequer nós mesmos;
estamos sempre no âmbito do outro, somos o que nos ditam, nunca olhamos para
nós mesmos. Nunca procuramos saber quem realmente somos o que nos é próprio, e
aquilo que realmente é nosso [18].
Mulheres em situação de
rua, numa vida indigna de ser vivida, solicita nesse cotidiano comportamentos,
experiências, vivências, relações e ressignificações de subversão a esta
condição de não humano [24].
O olhar atentivo para o
fenômeno do existir nas ruas sendo mulher coloca-nos diante de um compromisso
ético, sensível, moral, político e humanístico, criando um espaço de escuta e
voz dessas mulheres. Este lugar de escuta e fala pode configurar um caminho
para se estabelecer debates e ações na defesa da qualidade de vida dessas
mulheres. Dessa forma, os estudos fenomenológicos representam âncoras para o
movimento em defesa da vida, em toda a sua singularidade.
Este estudo permitiu
refletir e possibilitar a compreensão sobre o cotidiano vivido pelas mulheres
em situação de rua. Elas relacionaram o existir nas ruas, a um mundo de
dificuldades, expostas a diversas vulnerabilidades, humilhações,
discriminações, preconceitos, racismo e violências, aos olhos de uma sociedade
que as veem como inexistentes factuais.
Compreendemos que estas
mulheres são seres-no-mundo que vivem no modo da facticidade, como fenômeno da
sua existência, cujo cotidiano está vinculado a outros cotidianos dentro do seu
próprio mundo, fazendo-as aprender mecanismos de sobrevivência e regras do
existir nas ruas.
Ser-no-mundo-com-o-outro,
existir, possibilita para essas mulheres, em muitos casos, vivenciar o ser-com
no domínio, ou seja, um modo de solicitude deficiente, que as deixam dependente
de quem cuida, ou oferece proteção, como no caso dos seus companheiros. Com
esse modo de existir, e suas singularidades, elas percebem que precisam de
olhares atentivos e zelosos, envoltos no modo da preocupação, o que possibilita
uma relação de cuidado com o outro.
Existir nas ruas sendo
mulher é também viver no modo da ambiguidade, ressignificando seu modo de
existir, mas numa compreensão superficial, como convivência lançada no mundo.
Portanto, lançamos o
desafio de compreender esse existir, e irmos em busca de estratégias de
acolhimento, em defesa da vida dessas mulheres como um compromisso humanitário
e social.
Ao Núcleo de Extensão e
Pesquisa em Saúde da Mulher NEPEM-UEFS, por todo acolhimento. Às mulheres em
situação de rua, depoentes neste estudo, pela confiança em partilhar suas
vivências em situação de rua. Ao Movimento Nacional da População em Situação de
Rua Núcleo Feira de Santana/BA pelo companheirismo de luta e militância. À
UEFS, por permitir e viabilizar parte do meu mestrado.