ARTIGO ORIGINAL

Mulheres da maloca: vivências no contexto das ruas

 

Keila Cristina Costa Barros, M.Sc.*, Rita de Cássia Rocha Moreira, D.Sc.**, Mariana Silveira Leal, M.Sc.***, Tânia Christiane Ferreira Bispo, D.Sc.****, Rosana Freitas Azevedo, D.Sc.*****

 

*Enfermeira, Enfermeira do Acolhimento e Classificação de Risco do Hospital Municipal de Rafael Jambeiro, Rafael Jambeiro/BA, **Enfermeira, Docente adjunto da Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana/BA, ***Enfermeira, Docente da Faculdade Estácio, ****Enfermeira, Pós-doutora em Saúde Coletiva, Docente titular da Universidade do Estado da Bahia, *****Enfermeira, Docente titular da Universidade do Estado da Bahia

 

Recebido em 14 de abril de 2020; aceito em 26 de outubro de 2020.

Correspondência: Keila Cristina Costa Barros, Rua Monte Verde, 76, Parque Getúlio Vargas, Feira de Santana BA

 

Keila Cristina Costa Barros: keilaccosta@hotmail.com

Rita de Cássia Rocha Moreira: ritahelio01@yahoo.com.br

Mariana Silveira Leal: marianaleal.enf@hotmail.com

Tânia Christiane Ferreira Bispo: taniaenf@uol.com.br

Rosana Freitas Azevedo: rosanafazevedo@hotmail.com

 

Resumo

Introdução: A condição da mulher em situação de rua representa uma fratura e vulnerabilidade social da existência, pois está exposta a diversas violências. Objetivo: Compreender a vivência de mulheres em situação de rua. Métodos: Abordagem qualitativa, descritiva, à luz da fenomenologia de Martin Heidegger, adaptada à área de saúde. Participaram dez depoentes. A técnica de coleta foi a entrevista fenomenológica, com um roteiro semiestruturado. A análise compreensiva seguiu os momentos metódicos: redução, construção e destruição fenomenológica. Resultados: O existir de mulheres em situação de rua representa seres lançadas ao mundo, com dificuldades, discriminação, violência, preconceito, racismo e vulnerabilidade configurando uma violação da dignidade humana. Conclusão: Existir nas ruas como mulher é viver ressignificando seu modo de existir. São vidas nuas nas ruas, e necessitam de políticas públicas de segurança à vida, por viverem em desigualdade de direitos. Portanto, defende-se a busca de estratégias de acolhimento, em defesa da vida dessas mulheres como um compromisso humanitário e social.        

Palavras-chave: mulheres, pessoas em situação de rua, filosofia.

 

Abstract

Maloca women: experiences in the street context

Introduction: The condition of homeless women represents a fracture and social vulnerability of existence, and exposition to various types of violence. Objective: To understand the experience of women living on the streets. Methods: Qualitative, descriptive approach, in the light of Martin Heidegger's phenomenology, adapted to the health field. Ten deponents participated. The collection technique was the phenomenological interview, with a semi-structured script. The comprehensive analysis followed the methodical moments: reduction, construction and phenomenological destruction. Results: The existence of women on the street represents beings launched into the world, with difficulties, discrimination, violence, prejudice, racism and vulnerability, constituting a violation of human dignity. Conclusion: To exist on the streets as a woman is to live with a new meaning to her way of existing. They are naked lives on the streets, and they need public policies for life security, because they live in unequal rights. Therefore, we defend the search for welcoming strategies, in defense of the lives of these women as a humanitarian and social commitment.

Keywords: women, homeless persons, Philosophy.

 

Resumen

Mujeres de la maloca: experiencias en el contexto de la calle

Introducción: La condición de las mujeres sin hogar representa una fractura y vulnerabilidad social de la existencia, ya que está expuesta a varios tipos de violencia. Objetivo: Comprender la experiencia de las mujeres que viven en la calle. Métodos: Enfoque cualitativo, descriptivo a la luz de la fenomenología de Martin Heidegger, adaptada al campo de la salud. Participaron diez deponentes. La técnica de recolección fue la entrevista fenomenológica, con un guion semiestructurado. El análisis integral siguió los momentos metódicos: reducción, construcción y destrucción fenomenológica. Resultados: La existencia de mujeres en la calle representa seres lanzados al mundo, con dificultades, discriminación, violencia, prejuicios, racismo y vulnerabilidad, que constituyen una violación de la dignidad humana. Conclusión: Existir en las calles como mujer es vivir dando un nuevo significado a su forma de existir. Son vidas desnudas en las calles, y necesitan políticas públicas para la seguridad de la vida, porque viven en derechos desiguales. Por ello, defendemos la búsqueda de estrategias de acogida, en defensa de la vida de estas mujeres como compromiso humanitario y social.

Palabras-clave: mujer, personas sin hogar, Filosofía.

 

Introdução

 

A pessoa em situação de rua, segundo o Decreto 7.053 de 23 de dezembro de 2009, é definida como heterogênea, tendo em comum a pobreza extrema; o rompimento ou fragilidade com o vínculo familiar; ausência de moradia convencional; ocupação de espaços públicos e áreas degradadas como forma de habitação e sustento. Pode ser de forma temporária ou permanente, bem como utilizando locais de acolhimento para a pernoite [1].

“A vida na/e da rua não permite clichês, ela é múltipla e complexa, é lócus de conflitos e contradições sociais” [2]. Viver na rua é, por si só, sofrer violência devido à desigualdade de direitos em relação aos demais que vivem em sociedade [3].

Pessoas em situação de rua destacam-se pela diversidade existencial que as compõem e que delas fazem parte. Neste contexto, estão as mulheres da maloca e suas existências nas ruas, que nos motivaram a realizar este estudo.

Maloca é a denominação que os moradores de rua atribuem ao local e ao modo da sua existencialidade, significa um caráter específico de viver e ser na rua [4]. Numa perspectiva conceitual mais atual, maloca é uma categoria nativa que diz respeito a pessoas que vivem em situação de rua [5].

Para a compreensão da existencialidade da mulher em situação de rua, aplicou-se a perspectiva fenomenológica heideggeriana. Com um olhar atentivo para as condições nas quais se encontram tais mulheres, faz-se entrever uma dupla exclusão: por ser mulher e por estar em situação de rua. Esta realidade excludente se manifesta por meio do estigma e da marginalização, com exposição fraturada da condição social específica e heterogênea [6].

Uma terceira nuance de exclusão é a raça, pois a maioria das mulheres em situação de rua são negras, o que representa mais uma vulnerabilidade. Estudo realizado no município estudado, aponta que 89% das pessoas que viviam nas ruas, não se consideravam brancos, e sim, pretos e pardos [5].

Quanto às questões de diferenças e desigualdades sociais no Brasil, os indicadores sociais e marcadores da condição de vida dos segmentos sociais mostram que a raça negra faz parte do quadro de piores níveis de educação, saúde, renda, habitação, maior adoecimento, maior mortalidade, residem em áreas desprovidas de infraestrutura básica, e tem o pior acesso aos serviços de saúde [7].

A condição da mulher em situação de rua representa uma fratura e vulnerabilidade social da existência, pois está exposta a diversas violências, tais como: estupro, abusos físicos, compartilhamento do seu corpo pelos homens do grupo no qual ela está inserida [8]. Vulnerabilidade se configura como um indicador da iniquidade e da desigualdade social, com conceito multidisciplinar que inclui a detecção de fragilidades de grupos e indivíduos, mas também a capacidade de enfrentamento dos problemas e/ou agravos de saúde [9].

Os dados apresentados no relatório do panorama de usuários de drogas em situação de rua no município do estudo, publicado em 2016 pela equipe do projeto “Somos Invisíveis? Conhecendo a população de Usuários (as) de Drogas em Situação de Rua de Feira de Santana”, revelam que, em relação ao sexo, a predominância masculina nas ruas foi de 85%, já a presença feminina foi de 15% [5]. Ou seja, o contexto das ruas é hegemonicamente masculino, o que torna a mulher ainda mais vulnerável, pois estão diante de um universo, em que sua maioria, é machista, tornando-as expostas a diversas violências.

Dentre as características das mulheres em situação de rua em relação a sua sobrevivência, existem duas que chamou a atenção: 1) Preferem ter um parceiro, na tentativa de se sentirem seguras, sendo fiel a ele, e em muitos casos lhe conferindo o papel de subalternidade; 2) ou são mulheres sozinhas que assumem uma postura de duronas, como forma de defesa. Geralmente andam armadas, e possuem performance corporal com características masculinas, na busca do respeito do grupo [8,10].

A sobrevivência dessas mulheres nas ruas implica o uso de práticas que extrapolam a dignidade humana, muitas realizam a troca do ato sexual por droga, de modo que o consumo de droga é uma rotina [6]. Dessa condição, apreende-se a possibilidade da gestação, muitas vezes de forma não desejada. A maioria das mulheres, em situação de rua, descobre que está gestante pelas mudanças corporais e por experiências de outras gestações. Assim, a prática do uso de métodos contraceptivos e de proteção sexual não são consideradas relevantes por muitas delas. Portanto, é alta a possibilidade de engravidar, o que pode ser um problema de saúde pública, além da contaminação pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) [5].

As mulheres em situação de rua encontram inúmeras barreiras para acessar ações e serviços públicos. Isso decorre de várias ausências, tais como: dificuldade de informação, de documentação e de endereço fixo, apesar da não obrigatoriedade da documentação, como comprovante de residência e cartão do Sistema Único de Saúde (SUS), prevista no Decreto Nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009, e recentemente pela Lei Nº 13.714, de 24 de agosto de 2018, que expõe:

 

“Parágrafo único. A atenção integral à saúde, inclusive a dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, as famílias e indivíduos em situações de vulnerabilidade ou risco social e pessoal, nos termos desta Lei, dar-se-á independentemente da apresentação de documentos que comprovem domicílio ou inscrição no cadastro no Sistema Único de Saúde (SUS), em consonância com a diretriz de articulação das ações de assistência social e de saúde a que se refere o inciso XII deste artigo” [11].

 

As pessoas em situação de rua, inclusive as mulheres, ainda se deparam com a obrigatoriedade desses documentos. Esse contexto é um reflexo da falta de capacitação dos profissionais que não conhecem as leis e das pessoas em situação de rua, que não se apropriam desse conhecimento, gerando um cenário de uma violação aos direitos garantidos. No âmbito do SUS e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), visando a inclusão social, gestores e profissionais podem dar atenção especial às singularidades dessas mulheres, com a eliminação/flexibilização dessas barreiras e, do mesmo modo, permitir o acesso universal e igualitário às ações e serviços [12].

 

Material e métodos

 

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, descritiva, com eixo de aproximação ao método fenomenológico heideggeriano, adaptado à área de saúde, e sua característica resvala na compreensão interpretativa dos fenômenos, desvelamento de sentidos e significados da vida cotidiana [13].

No contexto de uma investigação qualitativa, realizar uma pesquisa fenomenológica representa compreender ser-no-mundo, como se apresentam os fenômenos da existencialidade de ser, muitas vezes não expressos por palavras, mas por gestos e comportamentos [14].

A Fenomenologia busca sentido de ser, algo que se torna manifesto, compreendido e conhecido para o humano, denominado por ele de ser-aí (Dasein), ser-no-mundo [15].

A pesquisa foi realizada no município de Feira de Santana/BA, situada na região Centro-Norte. De acordo com o último Censo e Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, realizado em 2007/2008, estipula-se que a proporção dessas pessoas em relação à população total de Feira de Santana foi de 237 pessoas [16]. Atualmente, nesse lócus, existe um quantitativo estipulado de mais ou menos 300 pessoas em situação de rua. Um dado não confirmado, apesar de documentado pela sociedade civil organizada - Movimento Nacional da População de Rua - Núcleo Feira de Santana, movimento esse que contribuiu de forma significativa na realização deste estudo.

As participantes desta pesquisa foram dez mulheres que vivem em situação de rua, idade superior aos 18 anos, residentes em espaços públicos do município estudado. Foi assegurado o uso de codinome, escolhido pelas mesmas que contemplou nomes de praças do munícipio pesquisado, por se compreender que muitas pessoas que integram essa situação existencial, localizam-se e agrupam-se nesses locais.

A coleta foi realizada nos meses de março, abril e maio de 2019. A técnica foi a entrevista fenomenológica, uma forma de acesso que o observador dispõe para penetrar nos objetos vividos. O instrumento foi um roteiro semiestruturado [17].

O processo analítico envolveu os momentos metódicos adaptados em Heidegger [18]. No primeiro - redução fenomenológica, foi realizada a transcrição das entrevistas, leitura atentiva dos depoimentos. O segundo diz respeito à construção fenomenológica. Nesta etapa, buscou-se a compreensão de sentidos, a percepção de como é ser no mundo, para o desvelamento do fenômeno: vivência de mulheres em situação de rua. O terceiro momento, a destruição fenomenológica, trata-se da reconstrução. É quando emerge a construção de novo conhecimento a partir do desvelar de ser, da existencialidade do outro, do fenômeno estudado.

Neste estudo foram respeitados os aspectos éticos, com a Resolução 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ministério da Saúde (MS).

Esta investigação está vinculada ao Núcleo de Pesquisa e Extensão em Saúde da Mulher da Universidade Estadual de Feira de Santana (NEPEM-UEFS) no projeto de pesquisa Atenção à saúde da mulher nos serviços públicos do município de Feira de Santana/BA. Tem aprovação no CEP/UEFS - parecer 2.686.905/2018 com emenda nº 2.031.634.

 

Resultados e discussão

 

A fenomenologia possibilita compreender a existência humana. A existência não significa o que se encontra no mundo, mas o que emerge, consolidando-se em três aspectos: a facticidade, como o estar-aí, lançado no mundo, sem alternativas de escolhas; a decadência, como modo de ser no cotidiano, sujeito no domínio do impessoal e caracterizado pelo falatório, curiosidade e ambiguidade; e a transcendência, um modo de projetar-se para além de si e descobrir-se [19].

O humano é existência, ser-aí, ser-no-mundo, ser-com, é facticidade que se mostra em temporalidade e espacialidade, compreendendo dessa forma um ser histórico. O ser-aí não é um atributo de algo já constituído, mas um ente cuja essência reside na existência, concebida em ter-que-ser. Esse ser do humano é relacional ao seu próprio ser como forma de possibilidade, que constitui o ser do humano como existência [15].

Foi possível compreender que o existir nas ruas sendo mulher encontra-se no mundo de dificuldades, estão expostas a tudo e a todos. Situação perversa, dentro de um sistema que as compreendem muitas vezes como inexistentes factuais a este mundo, tal como narrado nas falas a seguir:

 

[...] Ai, meu Deus, é uma dificuldade. [...] é muita coisa na mente, muita coisa na vida da pessoa (pensativa, olhos lacrimejando) (Praça da Kalilândia 1).

 

[...] A mulher sozinha na rua ela fica à mercê de tudo e de todos (Praça da Matriz 1).

 

[...] é estar vulnerável a tudo e a todos (Praça da Kalilândia 2).

 

[...] o povo me dava as coisas, mas me humilhava (Praça da Bandeira 1).

 

[...] É difícil, é! [...] Porque a gente é muito discriminada! A gente é muito apontada! (Praça da Kalilândia 3).

 

As falas acima descrevem ser-no-mundo como mulher em situação de rua. É viver no modo da facticidade como fenômeno da existência. A “facticidade diz respeito a um conceito que abriga em si o ser-no-mundo de um ente cujo destino está ligado ao dos outros, entes que lhe vêm ao encontro dentro de seu próprio mundo” [18:102]. O conceito fenomenológico de fenômeno propõe, como se mostra, o ser dos entes, seu sentido, suas modificações e derivados, pois o mostrar-se não é um mostrar-se qualquer e, muito menos, uma manifestação. O ser dos entes nunca pode ser uma coisa “atrás” da qual esteja outra coisa “que não se mostre” [18].

A rua, para as mulheres, passa a ser um espaço de referências, onde criam as suas relações e a identificação com esse novo modo de vida, pois encontram pessoas no igual limite de vulnerabilidade [20].

Nesse convívio itinerante, pouco a pouco, a mulher vai aprendendo os mecanismos de sobrevivência e as regras existentes na rua, como relatado:

[...] ...O Centro Pop dá o café da manhã, a gente toma banho, a gente lava a roupa da gente, pra quem quer lavar né? [...] tem até o Centro de Abastecimento que eu cato comida, [...] acha no lixo, ou vai catar lá nas latas de lixo do Centro de Abastecimento, tem um monte de frutas, depois pede um dinheirinho a um, um dinheirinho a outro, pra comprar uma comida, e eles dão (Praça da bandeira 3).

 

Nas falas a seguir, foi desvelado que o fenômeno existir nas ruas é permeado pela circularidade da violência (física, sexual, fatal, simbólica, emocional), insurgindo de todos os lados (companheiros, outras pessoas em situação de rua, comerciantes), e de múltiplas formas: preconceito, racismo, discriminação. Na maioria das vezes são invisibilizadas e possivelmente originadas nas pessoas que deveriam manter a segurança. Os relatos a seguir expõem essa fratura vivenciada em relação a segurança pública:

 

[...] Às vezes existe a violência sexual, existe a violência corporal. Existem várias formas de violência com a mulher na rua (Praça da Matriz 2).

 

[...] A violência é muito [...] a violência é facada, é paulada, é quando o homem parte para tiro, pega a mulher e faz barbaridade [...] e a polícia não faz nada, fica tudo por isso mesmo (Praça da Matriz 4).

 

[...] A polícia é a primeira a estar agredindo verbalmente, fisicamente, como fui vítima nessa terça-feira, eu trabalhando e eles me discriminando, me chamando de neguinha sacizeira (pessoa viciada em crack), neguinha vagabunda, coisa que eu nunca fui. Fui sim, usuária de drogas (Praça da Kalilândia 2).

 

[...] A polícia comigo, por exemplo, não fala nada não, só de vez em quando que eles chegam lá e: Todo mundo levantando... Aí eu não levanto, fico sentada lá, aí eles: E você sua desgraça, não tá vendo não, levante logo vá! Aí eu: Oxente! (Praça da Bandeira 3).

 

Na fala de Praça da Kalilândia 2, o racismo é presente e contundente, pois a maioria das mulheres que estão nessa situação são negras, o que configura um condicionante de exclusão, preconceito, violência, ou seja, há insegurança no existir. O racismo imposto à maioria dessas mulheres, além do cometido pela sociedade, configura-se também, um racismo estruturante. Representa um sistema de opressão cuja ação transcende a mera formatação das instituições, perpassando desde a apreensão estética a todo e qualquer espaço nos âmbitos público e privado.

O racismo estruturante das relações sociais está na configuração da sociedade, e por ela é naturalizado. Por corresponder a uma estrutura, o preconceito pela raça negra não está apenas no plano da consciência, mas intrínseco ao inconsciente. Transcende o âmbito institucional, está na essência da sociedade e, assim, é apropriado para manter, reproduzir e recriar desigualdades e privilégios, revelando‑se como mecanismo para perpetuar o atual estado das coisas [21]. Dessa forma, as mulheres pretas e pardas em situação de rua possuem um agravamento na vulnerabilidade do existir nas ruas, sujeitas as degradantes condições de vida.

Nesse cenário de vulnerabilidades e de fratura existencial, no qual as mulheres em situação de rua estão submetidas, forma-se um contexto envolto por preconceitos, violências, desigualdade de gênero e violação de direitos humanos e sociais. São vítimas de diversas violações, acrescidas da violência relacionada à dominação masculina, ao uso abusivo de drogas, que em alguns casos submetem essas mulheres a troca da prática do sexo pela droga, no intuito de garantir um abrigo, proteção e até mesmo comida, algumas usam o corpo como moeda de troca [22].

Todas as mulheres que fazem essa escolha relatam ter sentimento de culpa, sofrimento e vergonha, tal como descrito na fala a seguir:

 

[...] Eu não gosto de dizer (fica de cabeça baixa) (em relação a violência que ocorre). Só teve um lá né? Que com a palhaçada dele estava querendo (sexo) [...] E aí depois ele veio cobrar a pedra dele que eu tinha fumado, aí que eu peguei e não quis pagar. Ele pegou uma faca cega, dizendo que ia me furar. [...] Eu disse: Depois eu pago, ele: Não! Agora! Então bom, abri um pouco as pernas assim, e ele ficou lá (fazendo sexo), aí depois ele cansou e foi embora. (Praça da Bandeira 3).

 

Neste convívio marcado por riscos e inseguranças, para as mulheres em situação de rua, ser-com-o-outro possibilita segurança, como descrito na fala abaixo:

 

[...] mas a mulher sozinha na rua é difícil, só vive se tiver acompanhada com alguém pra tá ali, ter a figura de um homem pra proteger (Praça da Matriz 1).

 

            O mundo do ser-aí é compartilhado. O ser-em é ser-com-os-outros [18]. Ser-com-os-outros no cotidiano mantém-se entre dois extremos, aquele que o domina, e o que liberta [16]. A mulher, em muitos casos, vivencia o ser-com no domínio, pois muitas delas por terem um companheiro como proteção, submetem-se a situações degradantes, como narrado abaixo:

 

[...] somos muito discriminadas por esses homens. [...] Acha que a mulher é autoridade dele, é obrigação dele. A mulher não pode ser isso dele (Praça da Matriz 4).

 

Essa fala permite desvelar que na relação com alguns dos seus companheiros há um modo de solicitude deficiente, tal como define Heidegger. Solicitude é o relacionar-se com alguém, com o outro, numa maneira envolvente e significante. A solicitude é a primordial característica do cuidar, que por sua vez pode ser deficiente. Ela se dá quando alguém assume a tarefa do outro de cuidar de si mesmo, “saltar sobre o outro”. Nesta solicitude, o outro está excluído do seu lugar e se torna dependente de quem cuida [15]. Neste estudo, a fala a seguir representa um modo de cuidar que salta sobre o outro:

 

[...] Mas o ruim é quando se tem um alguém (o companheiro) diz que tá cuidando. Mas, não cuidando! Só mais maltratando ainda, entendeu? (Praça da Bandeira 3).

 

Essas mulheres precisam ser destemidas e corajosas para vivenciar essa situação existencial, já que são expostas a diversas condições objetivas e subjetivas que necessitam de enfrentamento, condições oriundas de uma sociedade machista e sexista. E por estar em menor número nas ruas, ficam expostas e vulneráveis:

 

[...] ela tem que ser sangue no olho viu? E desacreditada, porque se não todo mundo quer se aproveitar [...] Todos acham que é prostituta, que por um prato de comida, por uma droga vai se trocar, vai trocar sexo por droga, por comida, e não é assim (Praça da Kalilândia 2).

 

[...] Mas é difícil ser mulher, porque ela não tem as habilidades de um homem. Não tem como se defender como homem né? Então é mais difícil ser mulher na rua (Praça da Matriz 2).

 

Essas falas deixam acessível a compreensão de que o ser-aí é existência, e que está constantemente definindo que tipo de ser ele é, uma vez que “ser-no-mundo é o modo básico do ser-aí, no qual os modos de ser são codeterminados” [15]. O que ele é, ele mesmo é que define. E essa definição é sempre projeção. Assim, a fala a seguir expressa o existir da mulher em situação de rua, com sua potencialidade de nos fazer refletir sobre o fenômeno que desvela uma condição de violação. São contextos que as tornam vulneráveis e marginalizadas, uma conjuntura de exclusão produzida e reforçada por uma sociedade com olhar discriminatório e incriminador:

 

[...] Rapaz, ser mulher em situação de rua você tem que ser homem e mulher ao mesmo tempo. Porque nós mulheres somos mais fragilizadas, precisamos de mais atenção, de cuidado [...] porque senão, não sobrevive não (Praça da Bandeira 2).

 

A singularidade do existir dessas mulheres requer um cuidado atentivo e zeloso, envolto na preocupação (Fürsorge), o cuidado com-o-outro [23]. Na preocupação, criamos laços afetivos de dedicação, lidamos com a singularidade de cada pessoa. Na condição de profissionais de saúde, estabelecemos uma relação de diálogo [13].

Mas, existem aquelas que, na ambiguidade do viver nas ruas, ressignificam o cotidiano do existir, como descrito:

 

[...] Pra mim, os anos que passei na rua foram os melhores anos da minha vida, apesar de ter tido tuberculose, o pó do papelão, o sereno. Mas, sobre alimentação, estadia, a gente na rua morando, oxe! Era uma família que a gente tinha. Gostei da experiência (Praça da Matriz 1).

 

No modo da ambiguidade, há uma compreensão mediana e superficial, e na convivência, temos a impressão de que conhecemos plenamente o outro, mas não conhecemos sequer nós mesmos; estamos sempre no âmbito do outro, somos o que nos ditam, nunca olhamos para nós mesmos. Nunca procuramos saber quem realmente somos o que nos é próprio, e aquilo que realmente é nosso [18].

Mulheres em situação de rua, numa vida indigna de ser vivida, solicita nesse cotidiano comportamentos, experiências, vivências, relações e ressignificações de subversão a esta condição de não humano [24].

O olhar atentivo para o fenômeno do existir nas ruas sendo mulher coloca-nos diante de um compromisso ético, sensível, moral, político e humanístico, criando um espaço de escuta e voz dessas mulheres. Este lugar de escuta e fala pode configurar um caminho para se estabelecer debates e ações na defesa da qualidade de vida dessas mulheres. Dessa forma, os estudos fenomenológicos representam âncoras para o movimento em defesa da vida, em toda a sua singularidade.

 

Conclusão

 

Este estudo permitiu refletir e possibilitar a compreensão sobre o cotidiano vivido pelas mulheres em situação de rua. Elas relacionaram o existir nas ruas, a um mundo de dificuldades, expostas a diversas vulnerabilidades, humilhações, discriminações, preconceitos, racismo e violências, aos olhos de uma sociedade que as veem como inexistentes factuais.

Compreendemos que estas mulheres são seres-no-mundo que vivem no modo da facticidade, como fenômeno da sua existência, cujo cotidiano está vinculado a outros cotidianos dentro do seu próprio mundo, fazendo-as aprender mecanismos de sobrevivência e regras do existir nas ruas.

Ser-no-mundo-com-o-outro, existir, possibilita para essas mulheres, em muitos casos, vivenciar o ser-com no domínio, ou seja, um modo de solicitude deficiente, que as deixam dependente de quem cuida, ou oferece proteção, como no caso dos seus companheiros. Com esse modo de existir, e suas singularidades, elas percebem que precisam de olhares atentivos e zelosos, envoltos no modo da preocupação, o que possibilita uma relação de cuidado com o outro.

Existir nas ruas sendo mulher é também viver no modo da ambiguidade, ressignificando seu modo de existir, mas numa compreensão superficial, como convivência lançada no mundo.

Portanto, lançamos o desafio de compreender esse existir, e irmos em busca de estratégias de acolhimento, em defesa da vida dessas mulheres como um compromisso humanitário e social.

 

Agradecimentos

 

Ao Núcleo de Extensão e Pesquisa em Saúde da Mulher NEPEM-UEFS, por todo acolhimento. Às mulheres em situação de rua, depoentes neste estudo, pela confiança em partilhar suas vivências em situação de rua. Ao Movimento Nacional da População em Situação de Rua Núcleo Feira de Santana/BA pelo companheirismo de luta e militância. À UEFS, por permitir e viabilizar parte do meu mestrado.

 

Referências

 

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