EDITORIAL
Em tempos de
quarentena, uma busca de sua origem
Benedito Geraldes Neto
Médico, graduado em
História pela Universidade de Brasília, mestre em Ciências da Saúde, autor do
blog https://netogeraldes.blogspot.com
Correspondência:
netogeraldes@gmail.com
O conceito de
quarentena existe pelo menos desde meados do século XIV e está historicamente
relacionado com a ideia de impedir o contato com pessoas acometidas ou
potencialmente portadoras de doença contagiosa para evitar sua propagação. Tem,
mais modernamente, o significado de confinar pessoas, animais e mesmo objetos
que tiveram contato com doenças contagiosas até que transcorra o tempo de
incubação máximo da doença ou ainda de afastar do convívio social grupos de
pessoas e animais que corram o risco de exposição a agentes infecciosos.
Em 1347, a Europa
começou a vivenciar uma terrível epidemia de peste bubônica, que ficou
conhecida como a Peste Negra. Os primeiros casos da peste no continente europeu
apareceram no porto mediterrâneo de Messina. Foi trazida por embarcações
genovesas procedentes do oriente, mais especificamente de Kaffa
(hoje Theodosia) na Crimeia, que era um importante
ponto comercial. De Messina, na Sicília, a peste se estendeu para Gênova e
Veneza e acabou em pouco tempo atingindo toda a Europa, com consequências
catastróficas, dizimando entre 25 e 50% da população do continente, conforme as
estimativas da historiografia. A epidemia durou cerca de cinco anos, mas a
doença ainda permaneceu de forma endêmica.
Não é difícil imaginar
o impacto que tão terrível mortandade provocou no imaginário do homem medieval.
A ciência da época nem cogitava a possibilidade de uma doença ser causada por
micro-organismos, mas já tinha estabelecido o conceito de contágio. A percepção
de então era que a peste seria transmitida pelas pessoas doentes, mas ainda não
tinha sido determinado o papel epidemiológico dos ratos e das pulgas. O medo, a
angústia que a Peste Negra evocava levava a atitudes extremas, como a do
Visconde Bernabo de Reggio,
na atual Itália que, em 1374, determinou que todo doente de peste fosse levado
para o campo, fora da cidade e lá permanecesse até se recuperar ou morrer.
Foi assim que em 1377,
ante à ameaça de uma nova epidemia de Peste Negra, o Conselho de Ragusa (hoje
Dubrovnik, na Croácia) que na época pertencia à Veneza, determinou que todas as
pessoas e mercadorias de embarcações procedentes de locais onde existia a
doença somente poderiam desembarcar após um período de 30 dias da chegada, uma trentina. Para as pessoas que chegassem por terra, o prazo
foi estendido depois para quarenta dias fora dos muros da cidade. Esses tempos
seriam cumpridos em ilhas próximas, como a Ilha de Mrkan,
ou na cidade de Catvat. Essa determinação foi
complementada por outra que proibia aos habitantes de Ragusa terem contato com
as pessoas, navios ou mercadorias que estivessem cumprindo esse período de
reclusão. Os que desobedecessem teriam que ser isolados por igual prazo antes
de regressar.
Várias outras
localidades de todas as partes da Europa foram adotando medidas semelhantes a
essas, padronizando um prazo de quarenta dias, uma quarantina,
para observação. Seguindo a mesma linha do isolamento de doentes, Veneza, ainda
no mesmo porto de Ragusa, criou os primeiros lazaretos, denominação que faz
referência à figura bíblica de Lázaro, curado por Jesus. Esses lazaretos eram
locais e construções localizados fora dos muros da cidade destinados a recolher
e isolar os doentes de lepra, mas funcionavam também como abrigo e até prisão.
É bom lembrar que na época eram rotulados como leprosos todos os doentes com
lesões cutâneas de aspecto mais grave.
As providências
sanitárias de Ragusa foram o primeiro registro histórico da adoção da
quarentena, como ficou posteriormente conhecida a medida, nomeada justamente em
referência à palavra italiana quaranta, (40). Não se sabe ao certo por que foi
estabelecido esse prazo de 40 dias. Como a sociedade medieval era extremamente
religiosa, é possível que esteja relacionada às várias representações bíblicas
do número quarenta, como os 40 dias que Moisés passou no Monte Sinai ao receber
as tábuas com os dez mandamentos, ou aos 40 dias que Jesus passou no deserto
para se purificar, ou ainda com o dilúvio, que durou 40 dias e 40 noites,
também relacionado com a purificação da humanidade.