EDITORIAL
O biodireito e o
Covid-19 no contexto jurídico brasileiro
“Os que acham que a
MORTE é o maior de todos os males é porque
não refletiram sobre os males que a INJUSTIÇA pode causar.”
(Sócrates – Filósofo grego)
André Silveira*, Zaida
Aurora Sperli Geraldes Soler, D.Sc.**
*Advogado, graduado em
Letras pela UNESP, Docente convidado de cursos de pós-graduação lato sensu em
medicina do trabalho e enfermagem do trabalho, **Obstetriz,
enfermeira, livre-docente em enfermagem obstétrica, docente e orientadora de
graduação e pós-graduação lato sensu e stricto sensu, Orientadora de pesquisa
que incluirá conteúdo deste editorial
Correspondência: André Silveira, Rua
Cila, 3260 Redentora 15015-800 São José do Rio Preto SP
André Silveira:
andresilveiraadvog@gmail.com
Zaida Aurora Sperli Geraldes Soler: zaidaaurora@gmail.com
O bem mais precioso do
homem é a vida, preservada pela saúde e no Brasil esse é um direito para todos
os cidadãos brasileiros, amparado pela legislação, no Artigo 196 da
Constituição Federal Brasileira de 1988. No ramo das ciências jurídicas, um
sistema de saúde ético e justo com a sua prática, frente a uma política pública
estruturada, está fundamentado nos princípios e ações da bioética e do
biodireito [1]. O Direito vai existir em todas as circunstâncias de mudança na
ordem social. Vale lembrar do brocardo jurídico: ubi
societas, ibi ius, ou seja,
onde está a sociedade, está o direito.
O Programa Regional de
Bioética, que é vinculado à Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), definiu
que a bioética trabalha a serviço da vida, tendo um amplo campo de atuação, que
inclui a vida, a saúde e o ambiente. A bioética objetiva aproximar a ciência
das novas questões humanitárias, enquanto o biodireito faz a tutela jurídica
por meio de normas legais destinadas a proteger a vida e a saúde humana,
aproximando-se o mais possível às demandas sociais [2].
Então, a Bioética e o
Biodireito andam necessariamente juntos com os direitos humanos, sendo
necessária a intervenção do direito para regular as questões bioéticas de forma
legítima e suficiente. O biodireito fica configurado como um conjunto de leis
positivas que visam estabelecer a obrigatoriedade de observância dos
mandamentos éticos, com base em legislação adequada na regulação de atividades
e relações desenvolvidas pelas biociências e biotecnologias. O fim é manter a
integridade e a dignidade humana frente às conquistas científicas em favor da
vida [3].
No ramo das ciências
jurídicas, o biodireito tem por objetivo cuidar de normas reguladoras a
respeito do comportamento do ser humano diante dos avanços das ciências
biológicas e das ciências da saúde. Nesse contexto, a bioética vem exercer seu
papel fundamental de aproximação das ciências humanas às ciências biológicas, e
o biodireito, por meio do princípio da cooperação, vem exercer a contribuição
jurídica para o progresso e para a proteção da vida [4].
Enquanto a ética tem
intenções universais, preocupa-se com a interiorização de condutas boas e
requer voluntariedade (livre adesão), o direito ocupa-se dos efeitos sociais da
exteriorização de determinadas condutas, impõe-se com o obrigatório
(coercibilidade) e representa apenas a sociedade em que está inserido [5].
O mundo tomou ciência,
tardiamente, que desde novembro de 2019, na China, surgiu uma nova infecção por
coronavírus, com características epidemiológicas
clínicas de disseminação rápida e a capacidade de infectar uma população em
geral suscetível [6].
Tem causado muita
inquietação, desvelando as fragilidades dos sistemas de saúde em diferentes
partes do mundo, a pandemia de coronavírus
(COVID-2019), pela amplificação das consequências para a saúde pública e
aspectos bioéticos relacionados. As autoridades de saúde pública buscam conter
o vírus e mitigar os efeitos deletérios sobre a saúde da população mundial [7].
Ainda
são muitas as dúvidas,
experiências e contradições no controle da pandemia
de Covid-19 sob a perspectiva
da epidemiologia e das políticas públicas brasileiras.
Frente à impossibilidade
de redução de pessoas susceptíveis por meio de
estratégias vacinais, a redução da
velocidade da curva epidêmica precisa ocorrer por meio de
políticas públicas que
visem a proteção ao trabalhador, ampliação
do investimento no setor saúde e ações
de isolamento físico social [8].
Então, diante da
exacerbada mudança social que se vincula à pandemia do Covid-19, o sistema
jurídico brasileiro se encarregou de disciplinar normas reguladoras e
regulamentadoras para tratar dessa questão. Foi deflagrado pelo Congresso
Nacional o estado de calamidade pública como medida para as ações de combate à
pandemia do Covid-19, por meio da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020,
que, posteriormente, foi regulamentada pela Portaria nº 356, de 11 de março de
2020, do Ministro do Estado da Saúde [9].
Em razão do avanço da
pandemia do Covid-19, a questão que tem que ser resolvida é a demanda por
leitos como forma de se efetivar o exercício do direito à saúde. E o desafio
que o mundo enfrenta é a cura para o coronavírus.
Na contramão dessa
questão, países como Itália, Inglaterra, Espanha e Estados Unidos chegaram a
adotar o parâmetro da escolha, no qual o sistema de saúde teve que escolher em
prestar assistência nos hospitais a quem tinha chance real de recuperação e
deixar de prestar atendimento a quem já estava com o estado de saúde muito
agravado e comprometido. Ainda, é possível citar o caso da Itália, onde o que
se viu foi a limitação de leitos. Dilemas ligados à bioética vieram à tona,
notadamente quanto à autonomia do paciente de não ressuscitação e/ou à ordem de
ressuscitação [9-12].
Convém ressaltar que a
pandemia do Covid-19 está impactando o sistema jurídico. É certo que o Direito
Civil já contava com alguns institutos jurídicos para resolver situações de
crise, como é o caso do instituto do caso fortuito e força maior, da exceção de
contrato não cumprido (teoria da imprevisão) e o da resolução por onerosidade
excessiva. Mas temas ligados ao direito da personalidade começaram a entrar em
conflito (autonomia x solidariedade/vulnerabilidade), e o que se vê nos dias atuais é a restrição dos direitos fundamentais
consagrados no artigo 5º e do direito à saúde previsto no artigo 196, ambos da
Constituição Federal de 1988 [9-12].
Questões ligadas à
judicialização da saúde tornam evidente, ou seja, se as ações judiciais para o
fornecimento de medicamento e para a efetivação do tratamento do Covid-19 se
torna eficaz ou ineficaz, diante de outras questões relacionadas a escassez de recursos
e a terminalidade da vida [10].
Considerando toda essa
polêmica e fundamentada nos princípios e ações da bioética, a Lei nº
13.979/2020 vem dispor sobre a restrição de alguns direitos do cidadão, que são
as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus (artigo, 3º,
incisos I a VIII), que objetivam a proteção da coletividade (artigo 1º, § 1º),
além de fazer considerações sobre o isolamento e a quarentena (artigo 2º,
incisos I e II, respectivamente) e reconhecer os direitos que deverão ser
assegurados às pessoas afetadas pelas medidas previstas na lei (artigo 3º, §
2º, incisos I, II e III) [10-12].
De acordo com a Lei nº
13.979/2020, cada autoridade local é responsável pela tomada de decisões (art.
3º, § 7º), ao mesmo tempo em que se tem que ter ciência do problema de
pacientes assintomáticos, pois são estes que vão causar o colapso do sistema de
saúde. É indiscutível que atualmente os pacientes estão vulneráveis ao sistema
de saúde, uma vez que a maior parte dos hospitais possui dificuldades de
encontrar equipamentos de proteção individual aos profissionais da saúde [12].
Em síntese, a Lei nº
13.979/2020 acaba por restringir o direito à liberdade individual, a fim de que
seja assegurado e garantido o direito à saúde, põe em prática a restrição aos
direitos fundamentais e a restrição à atuação do Estado. Essa é a tarefa do
biodireito: concretizar a retomada dos direitos fundamentais do indivíduo e de
toda coletividade, assim como aprender a manejar os instrumentos de saúde
pública [10-12].
Por fim, diante de todo
o cenário jurídico atual no Brasil, não foram estabelecidos pela Lei nº
13.979/2020, os limites de atuação dos direitos fundamentais. A Lei nº
13.979/2020 não previu instrumentos de freios e não previu como vai ser a
retomada da vida habitual que havia antes da pandemia do Covid-19. Será
retomada a vida que havia antes?
“A
justiça não consiste em ser neutro entre o certo e o errado, mas em descobrir o
certo e sustentá-lo, onde quer que ele se encontre, contra o errado”. Theodore
Roosevelt