Enferm Bras 2021;22(3):318-333

doi: 10.33233/eb.v20i3.4260

ARTIGO ORIGINAL

Judicialização do acesso à medicação: perfil dos demandantes e custos

 

Patrícia Antônia Pereira do Nascimento*, Renata Prado Bereta Vilela, M.Sc.**, Milena Prado Bereta***, Fabricio Renato Teixeira Valença****, Patrícia de Carvalho Jericó*****, Pedro Paulo de Carvalho Jericó******, Marli de Carvalho Jericó, D.Sc.*******

 

*Enfermeira, especialista em auditoria, administração hospitalar e terapia intensiva, Enfermeira da Santa Casa de Buritama, SP, **Enfermeira, docente do curso de medicina da FACERES, São José do Rio Preto, SP, ***Advogada, Catanduva, SP, ****Graduando de Enfermagem da FAMERP, São José do Rio Preto, SP, *****Médica, Residente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, ******Graduando de Medicina, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR, *******Enfermeira, Docente do Departamento de Enfermagem Especializada da FAMERP, São José do Rio Preto, SP

 

Recebido em 10 de julho de 2020; aceito em 15 de junho de 2021.

Correspondência: Renata Prado Bereta Vilela, Av. Anísio Haddad, 6751 Jardim Francisco Fernandes 15090-305 São José do Rio Preto SP

 

Patrícia Antônia Pereira do Nascimento: patyjmbta@outlook.com

Renata Prado Bereta Vilela: renata_bereta@hotmail.com

Milena Prado Bereta: milena.bereta@outlook.com

Fabricio Renato Teixeira Valença: fabricio.valenca1@gmail.com

Patrícia de Carvalho Jericó: carvalho.patriciap@gmail.com

Pedro Paulo de Carvalho Jericó: pedro_pp_50@hotmail.com

Marli de Carvalho Jericó: marli@famerp.br

 

Resumo

Introdução: Todo cidadão brasileiro tem direito a saúde, no entanto, algumas medicações não estão disponíveis pelo Sistema Único de Saúde e, para acessá-las, o cidadão pode precisar judicializar o sistema. Objetivo: Descrever o perfil demográfico e clínico de demandantes e os custos dos medicamentos judicializados em um município brasileiro. Métodos: Estudo descritivo, transversal com abordagem quantitativa, realizado a partir de dados de 2017 disponibilizados pelo Departamento de Saúde de um município de pequeno porte do Sudeste brasileiro. Resultados: Foram requisitadas 140 medicações por 63 indivíduos a partir de 67 mandados de segurança. Dentre eles, a maioria era mulheres (52,4%), com idade média de 51 anos; a principal patologia foi diabetes mellitus (26,9%) e os medicamentos mais solicitados foram antidiabéticos (21,9%). Os mandados mais custosos foram referentes à purpura trombocitopênica (R$ 78.000,00; US$ 24.451,41) e o menos custoso foi referente à especialidade vascular (R$ 168,00; US$ 52.66). O custo total dos medicamentos foi R$ 362.519,70 (US$ 113.642,53). Conclusão: Considerou-se alto o gasto de R$ 21,32 (US$ 6,68) /habitante, um valor que sobrecarrega e onera o Sistema Público de Saúde. Assim, as informações geradas por esta pesquisa suscitam medidas de promoção e prevenção por meio da atenção básica que podem reduzir esses gastos.

Palavras-chave: judicialização da saúde; custos de medicamentos; custos e análise de custo; direito à saúde; Sistema Único de Saúde.

 

Abstract

Judicialization of access to medication: profile of plaintiffs and costs

Introduction: Every Brazilian citizen has the right to health care. However, some medications are not available by the Unified Health System; and to demand access to these drugs, citizens may need to judicialize the health system. Objective: To describe the demographic and clinical profile of plaintiffs and costs of judicialized medications in a Brazilian municipality. Methods: A descriptive, cross-sectional study with a quantitative approach, based on data available from 2017 by the Health Department of a small-sized municipality in southeastern Brazil. Results: A total of 140 medications were requested by 63 individuals; from 67 security warrants. Among them, most were women (52.4%), with a mean age of 51 years; the main disease was diabetes mellitus (26.9%) and the most requested medications were antidiabetic drugs (21.9%). The costliest requests were for thrombocytopenic purpura (R$78,000.00; US$24,451.41) and the least costly was for vascular specialty (R$ 168.00; US$ 52.66). The total cost of drugs was R$ 362,519.70 (US$ 113,642.53). Conclusion: The cost of R$ 21.32 (US$ 6.68) /inhabitant was considered high, overloading the Public Health System. Thus, the information from this research provides measures of promotion and prevention by means of the primary healthcare to reduce these costs.

Keywords: health judicialization; drug costs; costs and cost analysis; right to health; Unified Health System.

 

Resumen

Judicialización del acceso a medicamentos: perfil del demandante y costos

Introducción: Todo ciudadano brasileño tiene derecho a la salud, sin embargo, algunos medicamentos no están disponibles por el Sistema Único de Salud; para acceder a ellos, el ciudadano puede necesitar judicializar el sistema. Objetivo: Describir el perfil demográfico y clínico de los demandantes y los costos de los medicamentos judicializados en un municipio brasileño. Métodos: Estudio descriptivo, transversal con enfoque cuantitativo, realizado con base en datos de 2017 puestos a disposición por el Departamento de Salud de una pequeña ciudad del sureste de Brasil. Resultados: 63 individuos solicitaron 140 medicamentos; de 67 recursos de amparo. Entre ellos, la mayoría eran mujeres (52,4%), con una edad media de 51 años; la patología principal fue diabetes mellitus (26,9%) y los fármacos más solicitados fueron los antidiabéticos (21,9%). Los pedidos más costosos se relacionaron con la púrpura trombocitopénica (R$ 78.000,00; US$ 24.451,41) y los menos costosos se relacionaron con la especialidad vascular (R$ 168,00; US$ 52,66). El costo total de los medicamentos fue de R$ 362.519,70 (US$ 113.642,53). Conclusión: Se consideró alto el gasto de R$ 21,32 (US$ 6,68) / habitante, valor que grava y sobrecarga al Sistema Público de Salud. Así, la información generada por esta investigación plantea medidas de promoción y prevención a través de la atención primaria que pueden reducir estos gastos.

Palabras-clave: judicialización de la salud; costos de los medicamentos; costos y análisis de costo; derecho a la salud; Sistema Único de Salud.

 

Introdução

 

A atual e vigente Constituição Federal Brasileira promulgada no ano de 1988 afirma que “A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” [1,2].

Em 1990, houve a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) regulamentado pela Lei Orgânica da Saúde 8080/90. O SUS conta com três princípios doutrinários: a universalidade, integralidade e equidade e oito princípios organizativos, entre eles, hierarquização, descentralização, regionalização, controle social e resolubilidade [3].

Em 2009, foi publicada a portaria N°1.820, dispondo sobre os direitos e deveres dos usuários, promovendo a garantia ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde [4].

Pode-se afirmar que o serviço de saúde é de responsabilidade de todos os membros federativos, de modo direto e indireto. A descentralização da competência consiste na prestação de serviços direta pelos Municípios, que contam com recursos limitados e demanda onerosa dos serviços de saúde. Estabeleceu-se, então, a competência supletiva aos Estados e excepcionalmente à União Federal; estes prestam cooperação técnica e financeira aos Municípios [1]. Contudo, percebe-se que, após a Constituição Federal de 1988 e a criação do SUS, o direito à saúde tem sido objeto recorrente de judicialização no País [5].

O termo “judicialização” remete ao ato ou efeito de judicializar, ou seja, quando se recorre à via judicial para resolver um problema ou um diferindo [6]. No contexto contemporâneo, o fenômeno da judicialização da saúde expressa reivindicações e modos de atuação legítimos de cidadãos e instituições, para a garantia e promoção dos direitos de cidadania amplamente afirmados nas leis internacionais e nacionais. O fenômeno envolve aspectos políticos, sociais, éticos e sanitários, que vão muito além de seu componente jurídico e de gestão de serviços públicos [7].

Na maioria dos casos, a judicialização não é motivada pelos principais problemas do Sistema Único de Saúde. Não ataca o subfinanciamento, o subdesempenho e as persistentes desigualdades da atenção básica, dos medicamentos essenciais, dos determinantes sociais da saúde, sentidos principalmente pelos mais pobres. Pelo contrário, a judicialização concentra-se desproporcionalmente nos estados, cidades e bairros mais desenvolvidos do País, e foca de modo desproporcional medicamentos e tratamentos de alto custo e comparativamente menos prioritários. Grande parte destes medicamentos e tratamentos não estão incorporados nas políticas do SUS, como também foram analisados e rejeitados por falta de evidências de segurança, eficácia e/ou custo-efetividade, inclusive pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O impacto orçamentário deste tipo de demanda cada vez maior é suportado pelo sistema como um todo, criando uma situação perversa de justiça distributiva às avessas [8].

A judicialização atinge todo o país, mas se concentra nos lugares onde os níveis de litigância per capita são mais expressivos, encontrando-se, em média, no Sul com 178 ações e no Sudeste 103 ações por 100 mil habitantes. Enquanto nos estados do Norte e do Nordeste estão em 40 ações e 26 ações por 100 mil habitantes, respectivamente. Entende-se que a judicialização tende a ocorrer nos estados, municípios e bairros com índice de desenvolvimento socioeconômico mais elevado e, consequentemente, maior acesso à justiça [9].

O recurso da judicialização pode ser considerado como um recurso legítimo para a redução do distanciamento entre o direito vidente e o direito vivido [7]. A maior demanda judicial brasileira no âmbito da saúde é constituída por pedidos de medicamentos, sejam eles individuais ou coletivos. Estes pedidos são respaldados sobre a prescrição médica e indicam urgência para solucionar determinado problema de saúde [10].

No entanto, nem sempre esses medicamentos estão presentes na Relação Nacional de Medicamento Essenciais (RENAME) que é elaborada atendendo aos princípios fundamentais do SUS. É a relação dos medicamentos disponibilizados por meio de políticas públicas e indicados para os tratamentos das doenças e agravos que acometem a população brasileira [11]. Por vezes essas medicações provindas de judicialização também não estão em conformidade com os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas [12].

Dados do Conselho Nacional de Justiça apontam que, nos últimos cinco anos, apenas os pedidos de fornecimento de medicamentos em todos os níveis da federação alcançaram o volume de 344.053 novos casos em primeira instância [13]. Sabe-se também que esse elevado volume de ações gera um custo igualmente elevado ao Estado, estimado em R$ 7 bilhões, em 2016, em todo o país. Em adição, que grande parte destes gastos se concentram em alguns medicamentos. Em nível federal, os dez medicamentos (laronidase, lomitapida, metreleptina, betagalsidase, atalureno, alfagalsidase, idursulfase, elosulfase alfa, gasulfase e eculizumabe) os mais judicializado, em 2016, consumiram mais de R$ 1,1 bilhão do orçamento [14].

Contudo, o grande aumento das demandas judiciais implica em um aumento progressivo dos gastos sem previsão orçamentária, impactando diretamente na gestão dos recursos da saúde municipal, cabendo ao município, fornecer os itens solicitados [10]. Com base nessa problemática, este estudo objetivou descrever o perfil demográfico e clínico de demandantes e os custos dos medicamentos judicializados em um município brasileiro.

 

Métodos

 

Estudo descritivo, transversal, com abordagem quantitativa, realizado em um município brasileiro de pequeno porte, com população estimada de 17.003 pessoas [15]. O atendimento à saúde da população é realizado por duas Unidades Básicas de Saúde (UBS), um Centro Médico de Especialidades, um Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) e uma instituição hospitalar filantrópica.

Os dados desta pesquisa foram coletados no Departamento Municipal de Saúde, disponibilizados pelo serviço social. Os dados coletados referem-se ao ano de 2017. Foi realizado por meio de duas fontes, através da planilha de mandados de segurança que continha os dados de identificação do requerente como, idade, gênero, patologia e sobre os medicamentos solicitados como tipo e custo dos medicamentos de cada ação judicial. A segunda planilha era referente às despesas mensais, contendo também dados de gastos no mês com judicialização de medicamentos. O critério de inclusão eram as judicializações de medicamentos de moradores do município em questão que foram contabilizadas no ano de 2017, podendo ser referentes a qualquer problema de saúde. Os critérios de exclusão contaram com as judicializações referentes a outros materiais médico-hospitalares que não fossem caracterizados como medicamentos.

Para facilitar a compreensão e comparação do custo direto dos medicamentos judicializados, optou-se em apresentar os valores na moeda local o Real (R$) e o Dólar americano (US$), em função de sua larga utilização. Para tanto, o Banco Central do Brasil utiliza-se da taxa de câmbio dólar PTAX (taxa de câmbio adotada para a cotação do dólar) para oficializar conversões da moeda local em dólar, ou seja, US$ 1,00 = R$ 3,19 a média da taxa de câmbio de 2017.

 Para a tabulação dos dados, os medicamentos foram separados em classes farmacológicas, além da sua indicação descrita na judicialização. As classes identificadas foram, antidiabéticos, suplementos vitamínicos, antagonistas da angiotensina II, antidepressivos, analgésicos, psicoestimulantes, terapia coronária, antiepiléticos, inibidores da agregação plaquetária, inibidores diretos do fator XA, antirreumáticos, relaxante muscular e outros.

Os procedimentos da pesquisa só foram realizados após a aprovação da instituição campo de estudo por meio do Secretário Municipal de Saúde e do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) Parecer número 4.080.721 e CAAE: 32401420.1.0000.5415.

Para análise dos dados quantitativos foi construído um banco de dados em uma planilha do programa Microsoft Excel e analisados, segundo variáveis da estatística descritiva básica (número absoluto e relativo, média e desvio padrão).

 

Resultados

 

Os dados retratam 67 mandados de segurança de 63 indivíduos que recorreram à justiça para realizar ou manter seu tratamento medicamentoso, ou seja, quatro munícipes demandaram duas causas, entrando duas vezes com ordem judicial. Uma munícipe não retirou parte de seus medicamentos. Assim, foram requisitados 140 medicamentos totalizando R$ 362.519,70 (US$ 113,642.53), sendo o custo médio/mês foi R$ 30.209,97 (US$ 9,470.21) (DP- R$ 21.501,83) (DP – US$ 6.740,38), ± de R$ 13.225,71 (US$ 4,145.99) (março) a R$ 92.335,50 (US$ 28,945.29) (novembro). O custo médio/usuário foi de R$ 4.275,74 (DP: R$ 10.401,25), ± de R$ 41,00 (US$12.85) a R$ 78.000,00 (US$ 24,451.41).

Em relação a caracterização, 33 eram mulheres (52,4%) e 27 eram homens (42,9%); não foi possível identificar três (4,7%) indivíduos. A média de idade foi de 51 anos, ± de cinco a 89 anos. Entre estes indivíduos, 26 (41,3%) eram idosos e 24 (38,1%) adultos (de 20 a 59 anos). Não foi possível identificar a idade de cinco (7,9%) indivíduos. A não identificação dos indivíduos ocorreu devido a pesquisa ser retrospectiva com coleta de dados em um banco já previamente preenchido.

Foram identificadas 21 patologias diferentes; 17 (26,9%) judicializações foram referentes à diabetes mellitus (16 somente diabetes mellitus e uma diabetes associada à hipertensão arterial). A idade média dos indivíduos diabéticos foi de 49,7 anos, ± de cinco a 74 anos. Sendo requisitados 41 medicamentos para estes casos; a medicação mais frequente foi a insulina Lantus aparecendo nove vezes (21,9%) em diferentes dosagens. Quando calculado somente o custo com a patologia diabetes mellitus, a despesa total foi de R$ 70.923,70 (US$ 22,223.13) (26,3%) e custo médio/usuário de R$4.432,73 (US$ 1,386.74) ± de R$210,00 (US$ 65.83) a R$ 15.112,00 (US$ 4,737.30).

A patologia que apresentou o maior custo foi a púrpura trombocitopênica em uma única usuária com dois mandados e duas medicações (Revolade 50 mg e Romiplostim 250 mcg); teve um custo de R$ 78.000,00 (US$ 24,451.41) (28,9%).

O menor custo foi relacionado à especialidade vascular com R$168,00 (US$ 52.66) (0,06%) requerendo três medicações (diomina + hesperidina 450/50; paracetamol 750 mg; bacofleno 10 mg) (Tabela I).

 

Tabela I - Descrição e proporção das patologias encontradas nas judicializações medicamentosas, gênero predominante, idade média, custo médio e total. Buritama, São Paulo, Brasil, 2017

 

¹NE = Não especificado; ²% = referente à porcentagem total de medicamentos solicitados via judicial

 

Foram classificados 140 medicamentos em 13 classes terapêuticas (Figura. 1), dos quais 37 (26,4%) das ações demandaram medicamentos antidiabéticos, seguidos de 11 (7,9%) suplementos vitamínicos e oito (5,7%) referentes aos antagonistas da angiotensina II e antidepressivos. Dentre os medicamentos “outros fármacos” abrangem grande variedade de outros medicamentos agrupados em 28 classes (antirreumáticos, relaxantes musculares, antineoplásicos, antipsicóticos, vacinas, dentre outros), porém com baixa representatividade.

 

 

Figura 1Descrição da classificação terapêutica dos medicamentos judicializados. Buritama, São Paulo, Brasil, 2017

 

Discussão

 

A Constituição Federal e os princípios do Sistema Único de Saúde asseguram que é dever do Estado prover a todo cidadão o direito a saúde, inclusive o fornecimento de medicamentos [16].

Estudo que realizou uma análise comparativa sobre a judicialização em países latino-americanos (Argentina, Brasil, Colômbia e Chile) concluiu que este é um fenômeno generalizado nos quatro países independente da constituição e da cobertura populacional do sistema de saúde [17].

Dos 17.003 cidadãos que residem no município [15] campo da pesquisa; 63 (0,4%) judicializaram para a aquisição de medicação para o seu tratamento. Esta proporção mostra-se superior à de estudo realizado em 13 municípios de Santa Catarina, com total de 129.497 habitantes, que no período apresentou 175 (0,13%) judicializações. No entanto, o estudo supracitado foi realizado em cinco anos, ao fazer proporção para o mesmo período desta pesquisa (um ano), haveria média de 35 (0,02%) judicializações/ano. Ou seja, a presente pesquisa teve 95% mais judicializações que o estudo de Santa Catarina, em uma população 87% menor [18].

A presente pesquisa apresentou um custo total das judicializações de medicações de R$ 362.519,70 (US$ 113,642.53), ou seja, R$21,32 (US$ 6,68)/habitante. Estudo realizado em Santa Catarina [18] aponta que houve um custo de R$ 1.484.389,92 (US$ 465,325.99), com média de R$ 296.877,98/ano (US$ 93,065.19/ano), apresentando R$ 2,29 (US$ 0.71)/habitante, sendo 89,25% menor que neste estudo.

Denota-se que cada município deve garantir a saúde pública, portanto, o medicamento faz parte deste processo, não podendo deixar de prestar o serviço. Qualquer justificativa do Executivo não deve ser explorado, visto que a falta de recursos nunca estará acima da vida humana e, neste caso, a justiça adentra para cobrar do município o atendimento para sanar os problemas de saúde do usuário [19].

Nesta pesquisa, a patologia que se apresentou a medicação mais onerosa foi a púrpura trombocitopênica (R$ 78.000,00) (US$ 24,451.41) representando 21,5% dos custos totais em um único caso. A purpura é uma doença hemorrágica com extravasamento de sangue por baixo da pele e em mucosas, de etiologia desconhecida, é rara (1/10.000) com alta taxa de mortalidade quando não tratada [20,21,22].

Vale lembrar que são judicializados os medicamentos de alto custo, ou seja, aqueles com elevado valor unitário ou de uso contínuo que resultam em valores dispendiosos e, portanto, de difícil obtenção para a grande parte dos usuários no sistema de saúde. Destaca-se que, após avaliação econômica aplicada à medicina baseada em evidências, realizada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC), o princípio ativo eltrombopague olamina (Revolade) foi incorporado e disponibilizado gratuitamente pelo SUS, a partir de dezembro de 2018, para o tratamento de púrpura trombocitopênica idiopática. Os usuários devem se enquadrar nos critérios estipulados pelo protocolo terapêutico. No entanto, o romiplostim ainda permanece em avaliação no CONITEC.

A principal patologia e medicação encontrada neste estudo foi diabetes mellitus (26,9%) e insulina (21,9%), dados estes que divergem de estudo realizado no Mato Grosso do Sul [23], onde 25% das judicializações por medicação envolviam o segmento cardiovascular. Em Ribeirão Preto/São Paulo [24] com 13,2% judicializações, foi o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) (9,9%) com o fármaco metilfenidato.

Corroboram esta pesquisa o estudo realizado em Santa Catarina, pois infere que o principal segmento encontrado foi aparelho digestivo e metabolismo (18,3%) e a medicação também foi a insulina [25]. Na Bahia, investigação sobre judicialização de medicação afirma que há uma tendência de prescrição de insulinas análogas às humanas, no entanto, os estudos científicos não são conclusivos sobre a superioridade terapêutica desta classe [23]. Um estudo no interior do estado de São Paulo, município de Ribeirão Preto, apontou nos processos judiciais, aproximadamente, 14% dos medicamentos e insumos de insulina solicitados também eram “antidiabéticos” como a Insulina Glargina, Insulina Aspart, Insulina Humalog e Insulina Determir [24].

O diabetes mellitus é uma doença crônica não transmissível, pode ser classificada como diabetes tipo 1 e tipo 2. A tipo 2 mais prevalente em adultos é caracterizada por resistência à insulina e déficit secretório das células beta-pancreáticas. No Brasil estima-se prevalência de 6,9% da população acima de 18 anos. Seu tratamento é comportamental e medicamentoso [25]. Quanto ao tratamento comportamental, a atenção básica tem importante participação; uma vez que a educação em saúde aos portadores de diabetes acontece principalmente na forma de participação em grupos educativos [26]. Corroborando esta afirmativa, estudo que objetivou analisar as crenças de pacientes diabéticos tipo 2 sobre a terapia nutricional e sua influência na adesão infere que um dos maiores desafios é a baixa adesão das pessoas diabéticas ao tratamento, no qual se insere a terapia nutricional. E uma forma de melhorar essa adesão é a educação alimentar, que habilita o usuário a tomar decisões pautadas em dados técnicos e informações científicas, pois dessa forma ele terá capacidade para traçar seus próprios objetivos no sentido de melhorar o estado geral de sua saúde e da qualidade de vida [27].

Com base nos estudos supracitados [25-27], ao conscientizar o usuário portador de diabetes mellitus tipo 2 quanto à importância do tratamento não medicamentoso, poderia haver maior adesão e controle da patologia. Esta atividade deveria ser realizada pela atenção básica do município campo desta pesquisa, o que poderia gerar melhores resultados no controle da patologia com as medicações já disponibilizadas pelo SUS. E, assim, o usuário não necessitasse judicializar o município para conseguir medicações não padronizadas, além de lhe proporcionar melhor qualidade de vida.

Embora a presente pesquisa não apresente as causas da judicialização, a literatura indica que praticamente todos os processos fundamentam sua argumentação no direito à saúde. Muitos recorrem ao direito à vida, ambos difíceis de contestar do ponto de vista jurídico, fortalecendo a saúde como um direito social de cidadania [28].

Podemos citar como limitações deste estudo a impossibilidade de se comparar com outros estudos as características socioeconômicas dos autores das demandas de ações desta pesquisa devido à falta de acesso a estes dados. Sobretudo, por não conter dados qualitativos para entender melhor as causas da judicialização, e por se tratar de um estudo de caso, no qual expõe a experiência de um município de pequeno porte do interior de São Paulo. No entanto, esta pesquisa avança no sentido de traçar um perfil demográfico e clínico das judicializações e seus custos, gerando informações importantes para se propor e implementar estratégias para a diminuição dos gastos.

 

Conclusão

 

Os gastos com medicamentos judicializados totalizaram R$ 362.519,70 (US$ 113,642.53), ou seja, R$ 21,32 (US$ 6.68)/habitante. Considerado alto, pois este valor pode sobrecarregar e onerar o sistema público de saúde.

A patologia que demandou mais judicializações foi a diabetes mellitus, sendo os antidiabéticos a principal classe terapêutica dos medicamentos e a de custo mais elevado foi a púrpura trombocitopênica com uso de eltrombopague olamina e Romiplostim.

Assim, sugere-se incorporar medidas de promoção à saúde e prevenção de doenças e agravos através da atenção primária para melhorar a adesão ao tratamento de usuários com patologias crônicas. Ações que possibilitariam a diminuição de gastos com medicações não disponibilizadas pelo SUS, além de melhorar a qualidade de vida dos portadores destas doenças crônicas.

 

Referências

 

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