ARTIGO ORIGINAL

Evolução clínica e social da hanseníase em Pernambuco: um estudo etnobibliográfico

 

Fernanda da Mata Vasconcelos Silva, M.Sc.*, Angela Roberta Lessa de Andrade, M.Sc.*, Cristiane Rodrigues de Carvalho, M.Sc.**, Daniella Alighiene de Carvalho Valeriano***, Cinthia Ferreira Regis, M.Sc.****, Joana D’Arc Vila Nova Jatobá*****

 

*Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem pela Universidade de Pernambuco/UPE, Recife/PE, **Enfermeira, Mestre em Educação pela Facultad Interamericana de Ciencias Sociales /FICS, Recife/PE, ***Enfermeira, Especialista em Unidade de Terapia Intensiva pelo Instituto Brasil de Ensino/IBRA, Salgueiro/PE, ****Enfermeira, Mestre em Educação em Saúde pela Faculdade Pernambucana de Saúde/FPS, Recife/PE, ****Enfermeira, Doutoranda em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina do ABC, Recife/PE

 

Recebido em 13 de julho de 2020; aceito em 14 de dezembro de 2020.

Correspondência: Fernanda da Mata Vasconcelos Silva, Rua Vicente do Rego Monteiro, 292 Cordeiro 50630-710 Recife PE

 

Fernanda da Mata Vasconcelos Silva: nandadamata34@gmail.com

Angela Roberta Lessa de Andrade: angelalessadeandrade@yahoo.com.br

Cristiane Rodrigues de Carvalho: cristianecar@msn.com

Daniella Alighiene de Carvalho Valeriano: daniella.alighiene@hotmail.com

Cinthia Ferreira Regis: cinthiaregis@outlook.com

Joana D’Arc Vila Nova Jatobá: jdvnj@hotmail.com

 

Resumo

Introdução: As consequências evolutivas do quadro clínico da hanseníase trazem inúmeras sequelas degenerativas que além da dor vivenciada, impactam em prejuízos físicos, psíquicos e socioculturais. Objetivo: Realizar um resgate etnobibliográfico sobre a evolução social e clínica da hanseníase no Estado de Pernambuco. Métodos: Estudo discursivo-textual de natureza etnobibliográfica ancorada na obra “História Vivida na Terra dos Esquecidos”. Resultados: A evolução da hanseníase está correlacionada a decisões políticas e a estratégias de controle, que redefiniram os conceitos sobre a patologia, a partir da própria história da saúde pública no Brasil. Conclusão: A evolução clínica da hanseníase a conduziu de uma doença grave, altamente contagiosa, que conduzia ao internamento compulsório em leprosários e isolamento social para doença crônica curável com tratamento disponível de forma gratuita no Sistema Único de Saúde. Os dados descritos demonstram evolução social da doença e a associa à eficácia das políticas públicas voltadas ao paciente hansênico através da redução do índice de mortalidade pela doença.

Palavras-chave: hanseníase, história, saúde pública.

 

Abstract

Clinical and social evolution of leprosy in Pernambuco: an ethnobibliographic study

Introduction: The evolutionary consequences of the leprosy clinical picture bring numerous degenerative sequelae that, in addition to the pain experienced, impact on physical, psychological and sociocultural damages. Objective: To carry out an ethnobibliographical rescue on the social and clinical evolution of leprosy in the State of Pernambuco. Methods: Discursive-textual study of an ethnobibliographical nature anchored in the work “History lived in the land of the forgotten”. Results: The evolution of leprosy is correlated to political decisions and control strategies, which redefined the concepts about the pathology, based on the history of public health in Brazil. Conclusion: The clinical evolution of leprosy led to a serious, highly contagious disease that led to compulsory hospitalization in leprosy patients and social isolation to a curable chronic disease with treatment available free of charge in the Unified Health System. The data described demonstrate the social evolution of the disease and it is associated with the effectiveness of public policies aimed at leprosy patients by reducing the mortality rate due to the disease.

Keywords: leprosy, history, public health.

 

Resumen

Evolución clínica y social de la lepra en Pernambuco: un estudio etnobibliográfico

Introducción: Las consecuencias evolutivas del cuadro clínico de la lepra traen numerosas secuelas degenerativas que, además del dolor experimentado, impactan en los daños físicos, psicológicos y socioculturales. Objetivo: Realizar un rescate etnobibliográfico sobre la evolución social y clínica de la lepra en el estado de Pernambuco. Métodos: Estudio textual discursivo de naturaleza etnobibliográfica anclado en la obra “Historia vivida en la tierra de los olvidados”. Resultados: La evolución de la lepra se correlaciona con las decisiones políticas y las estrategias de control, que redefinieron los conceptos sobre la patología, basados en la historia de la salud pública en Brasil. Conclusión: La evolución clínica de la lepra condujo a una enfermedad grave y altamente contagiosa que condujo a la hospitalización obligatoria en pacientes con lepra y al aislamiento social a una enfermedad crónica curable con tratamiento disponible de forma gratuita en el Sistema Único de Salud. Los datos descritos demuestran la evolución social de la enfermedad y la asocia con la efectividad de las políticas públicas dirigidas a pacientes con lepra al reducir la tasa de mortalidad debido a la enfermedad.

Palabras-clave: lepra, historia, salud pública.

 

Introdução

 

Patologia milenar, a Hanseníase era popularmente conhecida na antiguidade como lepra devido às deformidades incapacitantes causadas pela evolução do seu quadro clínico. Classificada como doença crônica e de evolução lenta, acomete nervos e células cutâneas, porém, se não tratada de forma correta, pode conduzir a deformidades, incapacidades físicas, alterações motoras e sensoriais [1]. As consequências evolutivas do quadro clínico trazem sequelas além da dor vivenciada, pois impactam em prejuízos físicos, psíquicos e socioculturais [2]. E mesmo após tantos avanços científicos, ainda reflete um sério problema de saúde pública no Brasil [3].

Índia, Brasil, Indonésia, Congo, Nepal, Tanzânia, Filipinas, Madagascar e Moçambique são países que apresentam, respectivamente, alta taxa de prevalência e edemicidade de hanseníase atualmente. Do total de 214.783 casos novos informados em 2017 pelo Ministério da Saúde, o Brasil ocupou a segunda posição com 25.218 (11,7%) e a Índia, com 135.485 (63%) do total de casos. Nas Américas, o Brasil é o país que não conseguiu erradicar a doença, apresentando maior magnitude nas regiões Centro-Oeste, Norte e capitais do Nordeste. O estado de Pernambuco, no Nordeste Brasileiro, apresentou em 2012, um índice de prevalência de 4,0/10 mil habitantes. Na capital, Recife, a patologia continua endêmica, com focos não notificados, em contínua transmissão e com diagnóstico tardio caracterizando-a como uma endemia oculta [4].

Até meados do século XX, a internação compulsória em leprosários configurava-se como única ação estratégica para controle e tratamento da hanseníase. Os pacientes hansênicos eram internados de forma involuntária e isolados do convívio social e familiar. Tal fato ocorria por medo da alta infectividade da patologia. Esta exclusão social conferiu a lepra um estigma negativo e que se encontra arraigado na cultura popular até os dias atuais mesmo sabendo-se que a patologia tem cura e que, após iniciado o tratamento, perde sua característica de transmissibilidade às pessoas [5].

Como alternativas para minimizar a elevada prevalência da doença nestes países a Organização Mundial de Saúde (OMS) indicou a utilização de uma combinação de drogas que potencializa a ação antibacteriana e previne resistência ao Mycobacterium leprae, agente causador da hanseníase. A poliquimioterapia consiste na combinação de múltiplas drogas: Rifampicina (RFM), Clofazimina (CFZ) e Dapsona (DDS) que se mostraram altamente eficazes na cura da patologia e que interrompe a sua transmissibilidade uma vez que o paciente adere ao tratamento [6].

No Brasil a incorporação da terapêutica medicamentosa distribuída sem custo através do Sistema Único de Saúde e a descentralização das ações voltadas ao controle da hanseníase para o nível básico de assistência através da Estratégia de Saúde da família ocorreu em 1998 e corresponde atualmente a uma importante diretriz do Programa Nacional de Controle da Hanseníase [7].

Torna-se relevante, portanto, fazer um resgate etnobibliográfico sobre a evolução social e clínica da hanseníase no Estado de Pernambuco, pois sua evolução está relacionada a decisões políticas e a estratégias de controle, que redefiniram os conceitos sobre a patologia, a partir da própria história da saúde pública no Brasil. Em 1936, o Governo Estadual adquiriu uma propriedade situada atualmente no município de Paulista e nela foi construída a Colônia da Mirueira Sanatório Padre Antônio Manuel, atual Hospital da Mirueira. Com características de uma minicidade, tinha capacidade inicial para admitir 400 pacientes e tornou-se símbolo do isolamento social das pessoas com hanseníase em Pernambuco [8].

As mudanças sociais foram lentas e silenciosas. O sofrimento e a negligência à saúde foram profundos, mas com as inovações tecnológicas, científicas e farmacológicas voltadas para a assistência à saúde, o perfil da hanseníase mudou. O tratamento medicamentoso confere a cura, impede o surgimento de sequelas degenerativas e danos neurais, porém não apaga uma história de luta que aconteceu de forma velada dentro dos leprosários [8].

 

Material e métodos

 

Estudo discursivo-textual de natureza etnobibliográfica ancorada na obra “História Vivida na Terra dos Esquecidos”. A etnobibliografia procura reconhecer a vivência da cultura de um determinado grupo social através de análises textuais a partir de artefatos bibliográficos como os livros, por exemplo [9]. O aspecto discursivo desta pesquisa pretende desvelar não apenas a história do Hospital da Mirueira, mas também do conjunto de fatos que ocorreram com as pessoas hansênicas que viveram no leprosário.

A obra publicada em 2016 nasceu do desejo das autoras Rosa Maria Carlos de Albuquerque e Maria José Dantas Mesquita de Amorim em retratar a saga, a coragem e o sofrimento das pessoas acometidas pela lepra e abandonadas no leprosário. As coletas dos depoimentos dos pacientes começaram no ano 2000, mas só em 2010 foram reorganizadas para construção bibliográfica [8]. Porém para entender as histórias apreendidas na obra foi necessário fazer um resgate sobre o Mal de Hansen e seus aspectos clínicos e histórico/sociais em Pernambuco, além de conhecer um pouco da história do Hospital da Mirueira.

Para sustentar a construção discursiva, realizou-se uma busca de artigos sobre a temática nas bases de dados da Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), da Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (Medline) e na Scientific Electronic Library Online (SCIELO), através do cruzamento dos descritores "Hanseníase"; "História" "Saúde Pública" oriundos da base de Descritores em Ciências da Saúde (DecS).

Uma imersão bibliográfica na obra “História Vivida na Terra dos Esquecidos” permitiu desvelar a história do Hospital da Mirueira e os discursos dos internos, marcados pelo sofrimento velado pelo tempo, conduziram a reflexão de como a realidade se apresentava naquela época. Para garantir o anonimato dos participantes, as autoras da obra atribuíram aos mesmos nomes de flores.

 

Resultado e discussão

 

Hanseníase: formas clínicas e diagnóstico diferencial

 

O Mycobacterium leprae ou bacilo de Hansen é um actinobactéria transmissível pelas vias aéreas superiores com alto poder patogênico. Ao interagir com um susceptível, infecta-o e transmite para o mesmo a hanseníase. Atinge células cutâneas e acomete nervos periféricos, conduzindo a um desfecho clínico desfavorável por causar deformidades e incapacidade física permanente, ambas secundárias a um diagnóstico tardio [3].

Na hanseníase, a convalescência depende do período epidemiológico, momento no qual se estabelece a relação do agente causador com o indivíduo infectado, condicionado por elementos ambientais, socioeconômico, social e psíquico [10]. Neste sentido, a patologia pode assumir as formas clínicas: indeterminada, tuberculóide, dimorfa e virchowiana. As duas primeiras são classificadas como paucibacilares (PB) por apresentarem poucos bacilos e consequentemente poder patogênico menor quando comparados a dimorfa e virchowiana, formas multibacilares (MB) [6].

Considera-se casos Paucibacilares aqueles com até 5 lesões dermatológicas, exame de baciloscopia negativa e sem poder de transmissibilidade do bacilo. A terapêutica de Poliquimioterapia (PQT) para estes casos envolve doses combinadas de Dapsona e Rifampicina. Já os multibacilares tem alto poder de transmissibilidade, aparecem na baciloscopia deixando-a positiva e acomete o paciente com mais de 5 lesões cutâneas pelo corpo. Sua terapêutica inclui uma combinação de três medicações que difere da PB pela inclusão da Clofazimina [6].

O nível de imunidade das pessoas infectadas é condicional para determinar a forma clínica da patologia. Neste sentido um caso de hanseníase está definido quando o paciente apresenta de forma isolada ou simultânea um espessamento neural, lesão dermatológica com alteração de sensibilidade e um exame de bacioloscopia positivo para Hansen. O número de doses de PQT administradas e a duração da terapia multidroga, preconizada para tratar a hanseníase, é considerado o único critério para a alta por cura da doença [1].

Os sinais mais comuns são lesões cutâneas de coloração esbranquiçada ou avermelhadas, nódulos, tubérculos, infiltrações e placas. Porém os danos dermatoneurológicos constituem as manifestações clínicas mais incapacitantes. Os nervos mais acometidos são os localizados nos membros inferiores e superiores, além dos que são responsáveis pela visão. Se a lesão não levar a um comprometimento neural nos olhos, pés e mãos o grau de incapacidade física fica definido como Grau O. Se indicar alteração de sensibilidade, grau I e se já estiverem instaladas as incapacidades ou deformidades caracteriza o Grau II [11]. Estas incapacidades podem ser acentuadas por decorrência das reações hansênicas [12].

Reações hansênicas correspondem a resposta imunológica do indivíduo ao patógeno que podem conduzir a quadros inflamatórios agudos. Tais reações atingem a população acometida de modo significativo. Podem ser classificadas em Tipo 1 e 2. A reação tipo 1 é desencadeada pela imunidade celular ou um eritema nodoso. Caracteriza-se pelo surgimento manchas ou placas cutâneas, infiltrações, mudança na pigmentação da pele, edema além de dor e espessamento dos nervos. Já a reação tipo 2, relacionada à imunidade humoral, é caracterizada pelo eritema nodoso, ou seja, nódulos subcutâneos vermelhos e dolorosos, além de mal-estar geral, dor e hipertermia [13].

A identificação e condução clínica dos acometidos por uma reação hansênica configuram-se como um desafio para os profissionais de saúde. Este tipo de reação ocorre antes da conclusão do esquema de poliquimioterapia (PQT), por isso faz-se necessário a identificação precoce dos casos visando a redução de sequelas e promovendo a quebra da cadeia de transmissão da patologia [12].

 

Evolução histórica e social da hanseníase

 

Para compreender a evolução histórica e social da hanseníase faz-se necessário ampliar a compreensão sobre o contexto histórico geral da Saúde Pública no Brasil.

No período medieval, a Europa e o Oriente Médio apresentavam altos índices de prevalência de hanseníase. O isolamento compulsório do indivíduo hansênico foi preconizado a partir do Concilio de Lyon, a fim de afastar o doente da comunidade sadia minimizando o risco de transmissão. No Brasil Colônia, os primeiros casos foram notificados na cidade do Rio de Janeiro e as primeiras ações de controle limitaram-se à construção de leprosários e a uma assistência precária aos infectados [14].

Os primórdios da Saúde Pública no Brasil têm início em meados deste século com a intervenção do Governo no processo de sanitização das grandes cidades e portos a fim de controlar as patologias pestilenciais que incidiam nestas áreas. Osvaldo Cruz e Emílio Ribas foram os responsáveis por iniciar o processo de erradicação das patologias endêmicas e infecciosas, entre elas a hanseníase, na cidade do Rio de Janeiro e São Paulo [6].

Atrelados a uma ótica higienicista, Cruz e Ribas visavam de forma veemente a descoberta e isolamento das pessoas com Bacilo de Hansen, o saneamento do meio, a destruição dos vetores biológicos e a proteção da população sadia. Estas ações estratégicas estavam articuladas a um modelo assistencial que tinha na campanha sanitária e na polícia seus meios principais de efetivação. Porém, cabe ressaltar, que todas as ações voltadas à saúde nesta época visavam impulsionar a economia [6,14].

Dados epidemiológicos disponibilizados na época evidenciaram uma queda significativa na incidência de doenças transmissíveis no Brasil impactando a taxa de mortalidade que era elevada e apresentou decréscimo. Associa-se a tal fato a eficácia da política social implantada. É evidente, portanto, que o estigma gerado pela “lepra” se deve muito mais ao preconceito social do que à condição clínica da patologia, uma vez o indivíduo contaminado e curado apresenta resistência imunológica ao bacilo de Hansen [1].

A partir dos experimentos de Pasteur, foi descoberto o fato da hanseníase ter como agente patogênico um único microrganismo. Em 1874, um médico norueguês, Armauer Hansen, demonstrou pelo exame simples a presença de incontáveis nódulos dermatológicos nas células leprosas. Devido ao seu poder de contágio, a patologia passou a ser uma ameaça social, e os hospitais passaram a ser contraindicados para o tratamento da hanseníase impulsionando o confinamento compulsório dos doentes em leprosários [3].

Em 1920 foi criado o Departamento Nacional de Saúde Pública e instituída a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas, que preconizou a fundação de asilos-colônias. Estes locais serviriam para isolar os pacientes leprosos da comunidade sadia. Ficava estabelecido, portanto, um isolamento domiciliar compulsório. Também foi instituído pela inspetoria a notificação dos comunicantes e casos suspeitos de Hansen, isolamento imediato dos neonatos e filhos de leprosos para outros locais fora da zona de contágio e a proibição do exercício de atividades profissionais pelas pessoas infectadas [14]. Porém, as medidas de isolamento não demonstraram a efetividade esperada para controle da doença e impulsionaram o crescimento do estigma associado a patologia. A partir dos anos 30 a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas perde força após redirecionamentos de metas e condutas por parte do Departamento de Saúde Pública. Uma mudança significativa na abordagem da doença surgiu na metade do século com a criação da Campanha Nacional do Controle da Hanseníase, que apresentou a sulfona como fármaco de efeito adverso reduzido e com potencial para cura da doença [12].

O modelo assistencial hospitalar já não era de reclusão absoluta, era misto, denominado Hospitais Colônia que funcionavam com um complexo hospitalar no centro e moradias ao redor. Uma vez admitido nesta colônia, o paciente não conseguia mais sair, ainda que curado, pois não mais conseguia se reinserir na sociedade e continuava “doente” para sempre [6].

Apenas em 1974, com a implantação do Ministério da Saúde, a medicina preventiva ganha visibilidade. Neste período, o Brasil foi pioneiro na iniciativa de minimizar o estigma relacionado a doença através da substituição oficial do termo “lepra” para hanseníase. A desativação dos asilos e o início da reintegração do paciente à sua família só correu após a 8ª Conferência Nacional de Saúde na década de 80. Para garantir a reinserção do paciente ao seu núcleo social e familiar, assegurando, assim, seus direitos como cidadãos foi criado o Movimento de Reintegração das Pessoas atingidas pela Hanseníase – MORHAN [13].

Outras medidas favoráveis ao paciente com Hanseníase foram instauradas a partir de 1985, adequando o programa da hanseníase com o recomendado pela Organização Mundial da Saúde. Os hospitais-colônia foram reestruturados e a poliquimioterapia (PQT) passou a ser distribuída de forma gratuita pelo Governo. Com estas medidas, a lógica classificatória da hanseníase e as formas de tratamento mudaram completamente [1].

 

Hospital Colônia da Mirueira: discursos marcados pelo sofrimento velado pelo tempo

 

Os primeiros registros da lepra no estado de Pernambuco datam de meados do século XVIII e expandiu-se para os estados da Paraíba e Alagoas. O primeiro sanatório do estado foi fundado no Recife em 1714, o Sanatório Padre Antônio Manuel. Com a aquisição da propriedade, pelo Governo do Estado de Pernambuco em 1936, inicia-se a construção da Colônia da Mirueira, atendendo as recomendações profiláticas para lepra. A inauguração oficial foi realizada em 26 de agosto de 1941 [15,16].

Nos primórdios a Colônia da Mirueira possuía capacidade de internação para 400 pacientes. Projetado com ruas, praças, templo religioso, prefeitura, escola, área de lazer, além dos complexos médicos necessários, a instituição tinha por objetivo minimizar o sofrimento dos pacientes. Apresentava divisões em alas nas quais se abrigavam os internos. A ala C era considerada de alto contágio. Somente pacientes devidamente autorizados tinham possibilidade de transpor-se a barreira entre alas, sob pena de repreensão, mediante a proibição imposta a todos aqueles que habitavam a chamada de “Cidade do Medo”. A Colônia da Mirueira transformou-se no símbolo do isolamento social dos acometidos pela lepra em Pernambuco [8,15,16].

O processo de admissão ocorria secundário à transferência de pacientes de outro hospital ou por meio de internação compulsória e muitas vezes para tanto fazia-se necessário o uso de intervenção policial [8]. Durante o período em que vigorou o isolamento compulsório, os internos da Mirueira lutaram contra o esquecimento, o determinismo que os “condenava” ao fim, conforme explícito nos relatos vivenciados por Albuquerque e Amorim (2016), autoras da obra “História Vivida na Terra dos Esquecidos”:

 

“Quando sua mãe veio trazê-la para Colônia, nada lhe foi dito da doença e da necessidade de internamento. Só percebeu quando procurou sua mãe e não encontrou. Chorou muito...[...]” (Violeta [8:54])

“[...] Você está com uma doença contagiosa, muito grave, seja forte, por que tem tratamento, vou encaminhá-lo para o hospital da Mirueira, pois aqui não pode mais ficar!!” Lírio [8:65])

“[...] Com 19 anos tomou conhecimento que estava com Hansen. Ficou revoltada e chorou muito. Veio para o Hospital da Mirueira para internar-se e ficou arrasada quando sua mãe foi embora, deixando-a só.” (Dália [8:73])

“A família e os amigos quando souberam o diagnóstico ficaram apavorados, e todos..[...]...foram tomados por um preconceito arrasador!!” (Lírio [8:65])

 

O internamento era o pavor do paciente hansênico, pois uma vez admitido na colônia não poderia deixá-la [8]. Os relatos evidenciam o intenso sofrimento vivenciado pelos pacientes diante da revelação diagnóstica de Hanseníase. Descreve também a postura da família que não tem alternativa a não ser internar de forma compulsória seus entes queridos. Para estes a despedida é tão dolorosa que vão embora sem despedir-se.

Dentro do espaço que lhes foi imposto, reformularam suas vidas, forjaram novas relações sociais, novos pactos de convivência e solidariedade:

 

“[...] As meninas ao chegarem eram encaminhadas para um pavilhão só delas; e todas as atividades eram ditas e fiscalizadas por uma senhora também hanseniana.” (Violeta [8:55])

“No período de seu internamento trabalhava no serviço de limpeza...[...]” (Orquídea [8:61])

 

O serviço de limpeza e manutenção do leprosário era realizado pelos internos, pois não havia naquela época, funcionários contratados pelo Estado para desempenhar tal função. A adoção desta medida foi voltada a ocupar o tempo dos pacientes internados e conferir aos mesmos uma responsabilidade sobre o local de residência [8], conforme descritos nos relatos:

 

“No sanatório sua vida não foi fácil; trabalhava bordando tapetes em ponto cruz para vender e conseguir recursos para comprar matérias de higiene pessoal e outras necessidades. Queria trabalhar na enfermagem mas não deixaram porque não sabia ler e neste período não havia escola para adultos.” (Açucena [8:53])

“Participou da colônia no plantio de verduras, macaxeira e árvores frutíferas. Além disso trabalhava nas pocilgas.” (Cravo [8:59])

 

Os relatos demonstram que o regime assumido era muito duro e a intensidade da pressão variável de acordo com a direção. Apenas em 1948 foi criada a Portaria do Diretório do Serviço Nacional de Lepra que dispõe sobre a normatização das atividades exercidas nos leprosários, na modalidade colônia agrícola. Tal legislação confere ao interno a segurança de seus direitos previdenciários [8,15].

A colônia, assim como uma cidade, elegia um prefeito para cuidar das questões administrativas e servir de elo entre os pacientes e a direção do hospital. A ordem era mantida por uma delegacia e as normas eram rígidas, com possibilidade até de prisão em caso de transgressão às leis. O prefeito era eleito pelo voto dos internos e o delegado indicado pelo mesmo. Tais informações corroboram com uma compreensão ampliada sobre o que poderia ser uma “colônia” [15]. Nestes complexos até cemitérios existiam, nada acontecia fora da “Cidade do Medo” [8].

Atividades artísticas e culturais também eram incentivadas pela direção. Havia o departamento recreativo, órgão responsável pela organização das festas, bailes, jogos de futebol, cinema na unidade, assim como, manutenção dos equipamentos audiovisuais e cassinos. Os internos uniram-se e ensinaram uns aos outros o que sabiam por sua formação [8]. Houve um destaque para o ensino de música e instrumentos musicais, assim como habilidades na leitura e escrita:

 

“Gostava de cantar no conjunto, de representar no teatro e trabalhou também na amplificação da rádio, a Voz da Esperança.” (Violeta [8:55])

“Quando melhorou e começou a andar, frequentou a escolinha de artes, chegando depois a ser professora.” (Margarida [8:57])

“O lazer era para aqueles que viviam nos pavilhões e na Vila dos casados. Esses tinham mais liberdade e frequentavam os bailes e outras atividades culturais.” (Margarida [8:57])

 

O Hospital da Mirueira inicialmente construído para admitir 400 pacientes já assumiu 500 internos que sofreram intensamente com o preconceito e o abandono por parte dos familiares. Em 2012 houve uma mudança no perfil do atendimento. Sua área física foi reduzida cedendo espaço para construções de casas populares, porém continua com muito verde ao seu entorno. Nas residências convivem 22 moradores que foram vítimas do internamento compulsório e seus parentes, totalizando cerca de 40 pessoas que moram na Mirueira [15,16].

Sob a gestão do Governo Estadual, a unidade continua sendo referência em Pernambuco no tratamento de hanseníase e de dependentes químicos, usuários de álcool e outras drogas com dificuldade de adesão ao tratamento e difícil cura [16].

 

Conclusão

 

Através do descrito no estudo podemos conhecer como aconteceu a evolução da hanseníase através do seu contexto clínico e social. De doença grave, altamente contagiosa que conduzia ao internamento compulsório em leprosários e isolamento social para doença crônica curável com tratamento disponível de forma gratuita no Sistema Único de Saúde.

Os dados descritos demonstram a eficácia das políticas públicas voltadas ao paciente hansênico através da redução do índice de mortalidade pela doença. Evidencia a necessidade de manutenção de busca ativa de novos casos, principalmente entre a população mais jovem e do acompanhamento das pessoas já notificadas.

Mesmo com toda divulgação midiática e avanços científicos voltados para prevenção, tratamento e controle da hanseníase ainda é observado na população uma percepção estigmatizante à patologia e ao indivíduo que convive com ela. O discurso dos internos descritos na obra de Albuquerque e Amorim (2016) desvelaram exemplos de força, superação e perseverança destes pacientes que enfrentaram a dor, o medo e o abandono secundário ao estigma conferido pela hanseníase.

Este estudo contribui para uma percepção ampliada dos profissionais de saúde que atuam de forma direta junto ao paciente com bacilo de Hansen. Faz-se necessário incentivar um olhar assistencial holístico que leve em consideração não só as necessidades de acompanhamento e tratamento, mas também a forma como os pacientes se percebem em relação a eles próprios, a sua rede de apoio e as dificuldades psicológicas por eles enfrentadas.

 

Referências

 

  1. Pinheiro MGC, Miranda FAN, Simpson CA, Carvalho FPB. Compreendendo a “alta em hanseníase”: uma análise de conceito. Rev Gaúcha Enferm 2017;38(4):e63290. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.04.63290
  2. Lima MCV, Barbosa FR, Santos DCM, Nascimento RD, D’Azevêdo SSP. Práticas de autocuidado em hanseníase: face, mãos e pés. Rev Gaúcha Enferm 2018;39:e20180045. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.20180045
  3. Gomide M, Rodrigues CL. Indicadores de desempenho e redes sociais: existe algo em comum? Cad Saúde Coletiva 2018;26(1):107-16. https://doi.org/10.1590/1414-462x201800010274
  4. Sousa GS, Silva RLF, Xavier MB. Hanseníase e Atenção Primária à Saúde: uma avaliação de estrutura do programa. Saúde Debate 2017;41(112):230-42. https://doi.org/10.1590/0103-1104201711219
  5. Trierveiler J, Rosa MC, Bastiani J, Bellaguarda MLR. Trajetória do controle e do cuidado da hanseníase no Brasil. Revista Eletrônica História da Enfermagem. 2011;2(1):63-76. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/bde-25620
  6. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância em Doenças Transmissíveis. Plano integrado de ações estratégicas de eliminação da hanseníase, filariose, esquistossomose e oncocercose como problema de saúde pública, tracoma como causa de cegueira e controle das geohelmintíases: plano de ação 2011-2015. Série C. Projetos, Programas e Relatórios. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/plano_integrado_acoes_estrategicas_hanseniase.pdf
  7. Brito KKG, Andrade SSC, Santana EMF, Peixoto VB, Nogueira JA, Soares MJGO. Análise epidemiológica da hanseníase em um estado endêmico do nordeste brasileiro. Rev Gaúcha Enferm 2015;36(spe):24-30. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.esp.55284
  8. Albuquerque RMC, Amorim MJDM. Histórias Vividas na Terra dos Esquecidos. 2. ed. Recife: Novo Estilo; 2016.
  9. Saldanha GS, Calil Júnior A. Etnobibliografia: entre as hipóteses Mallarmaico-Blanchotiana e Melot-Taffiniana. XVI Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação. 2015. Disponível em: http://200.20.0.78/repositorios/bitstream/handle/123456789/2834/13.%20ETNOBIBLIOGRAFIA.pdf?sequence=1
  10. Rouquayrol MZ. Epidemiologia e Saúde. 7 ed. São Paulo: Medbook; 2013.
  11. Souza EA, Boigny RN, Oliveira HX, Oliveira MLW, Heukelbach J, Alencar CH. Tendências e padrões espaço-temporais da mortalidade relacionada à hanseníase no Estado da Bahia, Nordeste do Brasil, 1999-2014. Cad Saúde Coletiva 2018;26(2):191-202. https://doi.org/10.1590/1414-462x201800020255
  12. Barbosa JC, Ramos JAN, Alencar OM, Pinto MSP, Castro CGJ. Atenção pós-alta em hanseníase no Sistema Único de Saúde: aspectos relativos ao acesso na região Nordeste. Cad Saúde Coletiva 2014;22(4):351-8. https://doi.org/10.1590/1414-462X201400040008
  13. Queiroz TA, Carvalho FPB, Simpson CA, Fernandes ACL, Figueirêdo DLA, Knackfuss MI. Perfil clínico e epidemiológico de pacientes em reação hansênica. Rev Gaúcha Enferm 2015;36(spe):185-91. https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.esp.57405
  14. Leal DR, Cazarin G, Bezerra LCA, Albuquerque AC, Felisberto E. Programa de controle da hanseníase: uma avaliação da implantação no nível distrital. Saúde Debate 2017;41(spe):209-28. https://doi.org/10.1590/0103-11042017s16
  15. Melo CX, Nascimento RD, Almeida TV, Estima NM, Vasconcelos JF, Cardoso MD. Cotidiano de pessoas atingidas pela hanseníase no isolamento compulsório no Hospital Colônia. Revista Enfermagem Digital Cuidado e Promoção da Saúde 2019;4(2):112-8. https://doi.org/10.5935/2446-5682.20190018
  16. Recife. Secretaria Estadual de Saúde. Governo do Estado de Pernambuco. Hospital Geral da Mirueira (Sanatório Padre Antônio Emanuel). Recife: Secretaria Estadual de Saúde; 2020. Disponível em: http://portal.saude.pe.gov.br/unidades-de-saude-e-servicos/secretaria-executiva-de-atencao-saude/hospital-geral-da-mirueira