ARTIGO ORIGINAL
Evolução clínica e
social da hanseníase em Pernambuco: um estudo etnobibliográfico
Fernanda da Mata
Vasconcelos Silva, M.Sc.*, Angela
Roberta Lessa de Andrade, M.Sc.*, Cristiane Rodrigues
de Carvalho, M.Sc.**, Daniella Alighiene
de Carvalho Valeriano***, Cinthia Ferreira Regis, M.Sc.****,
Joana D’Arc Vila Nova Jatobá*****
*Enfermeira, Doutoranda
em Enfermagem pela Universidade de Pernambuco/UPE, Recife/PE, **Enfermeira,
Mestre em Educação pela Facultad Interamericana de Ciencias Sociales /FICS,
Recife/PE, ***Enfermeira, Especialista em Unidade de Terapia Intensiva pelo
Instituto Brasil de Ensino/IBRA, Salgueiro/PE, ****Enfermeira, Mestre em
Educação em Saúde pela Faculdade Pernambucana de Saúde/FPS, Recife/PE,
****Enfermeira, Doutoranda em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina do
ABC, Recife/PE
Recebido em 13 de julho
de 2020; aceito em 14 de dezembro de 2020.
Correspondência: Fernanda da Mata
Vasconcelos Silva, Rua Vicente do Rego Monteiro, 292 Cordeiro 50630-710 Recife
PE
Fernanda da Mata
Vasconcelos Silva: nandadamata34@gmail.com
Angela Roberta Lessa de
Andrade: angelalessadeandrade@yahoo.com.br
Cristiane Rodrigues de
Carvalho: cristianecar@msn.com
Daniella Alighiene de Carvalho Valeriano:
daniella.alighiene@hotmail.com
Cinthia Ferreira Regis:
cinthiaregis@outlook.com
Joana D’Arc Vila Nova
Jatobá: jdvnj@hotmail.com
Resumo
Introdução: As consequências
evolutivas do quadro clínico da hanseníase trazem inúmeras sequelas
degenerativas que além da dor vivenciada, impactam em prejuízos físicos,
psíquicos e socioculturais. Objetivo: Realizar um resgate etnobibliográfico
sobre a evolução social e clínica da hanseníase no Estado de Pernambuco. Métodos:
Estudo discursivo-textual de natureza etnobibliográfica
ancorada na obra “História Vivida na Terra dos Esquecidos”. Resultados:
A evolução da hanseníase está correlacionada a decisões políticas e a
estratégias de controle, que redefiniram os conceitos sobre a patologia, a
partir da própria história da saúde pública no Brasil. Conclusão: A
evolução clínica da hanseníase a conduziu de uma doença grave, altamente
contagiosa, que conduzia ao internamento compulsório em leprosários e
isolamento social para doença crônica curável com tratamento disponível de
forma gratuita no Sistema Único de Saúde. Os dados descritos demonstram
evolução social da doença e a associa à eficácia das políticas públicas
voltadas ao paciente hansênico através da redução do
índice de mortalidade pela doença.
Palavras-chave: hanseníase, história,
saúde pública.
Abstract
Clinical and social evolution of leprosy in Pernambuco: an ethnobibliographic study
Introduction: The evolutionary consequences of the leprosy clinical picture bring
numerous degenerative sequelae that, in addition to the pain experienced,
impact on physical, psychological and sociocultural damages. Objective:
To carry out an ethnobibliographical rescue on the
social and clinical evolution of leprosy in the State of Pernambuco. Methods:
Discursive-textual study of an ethnobibliographical
nature anchored in the work “History lived in the land of the forgotten”. Results:
The evolution of leprosy is correlated to political decisions and control
strategies, which redefined the concepts about the pathology, based on the
history of public health in Brazil. Conclusion: The clinical evolution
of leprosy led to a serious, highly contagious disease that led to compulsory
hospitalization in leprosy patients and social isolation to a curable chronic
disease with treatment available free of charge in the Unified Health System.
The data described demonstrate the social evolution of the disease and it is
associated with the effectiveness of public policies aimed at leprosy patients
by reducing the mortality rate due to the disease.
Keywords: leprosy, history, public health.
Resumen
Evolución clínica y social de la lepra en Pernambuco: un estudio etnobibliográfico
Introducción: Las
consecuencias evolutivas del
cuadro clínico de la lepra traen numerosas secuelas
degenerativas que, además del
dolor experimentado, impactan
en los daños
físicos, psicológicos y socioculturales. Objetivo:
Realizar un rescate etnobibliográfico sobre la evolución social y clínica de la
lepra en el estado de
Pernambuco. Métodos: Estudio textual
discursivo de naturaleza etnobibliográfica
anclado en la obra “Historia vivida en la tierra
de los olvidados”. Resultados: La evolución de la lepra se
correlaciona con las decisiones políticas y las estrategias de control, que redefinieron los conceptos sobre la patología, basados
en la historia
de la salud pública en Brasil. Conclusión: La evolución clínica de la lepra condujo a una enfermedad grave y
altamente contagiosa que condujo a la hospitalización obligatoria en pacientes con lepra y al aislamiento social
a una enfermedad crónica curable
con tratamiento disponible de forma gratuita en el Sistema Único de Salud. Los datos descritos demuestran la evolución social de la enfermedad y la asocia con
la efectividad de las políticas públicas dirigidas a pacientes con lepra al reducir la tasa de mortalidad
debido a la enfermedad.
Palabras-clave: lepra, historia, salud pública.
Patologia milenar, a
Hanseníase era popularmente conhecida na antiguidade como lepra devido às
deformidades incapacitantes causadas pela evolução do seu quadro clínico.
Classificada como doença crônica e de evolução lenta, acomete nervos e células
cutâneas, porém, se não tratada de forma correta, pode conduzir a deformidades,
incapacidades físicas, alterações motoras e sensoriais [1]. As consequências
evolutivas do quadro clínico trazem sequelas além da dor vivenciada, pois
impactam em prejuízos físicos, psíquicos e socioculturais [2]. E mesmo após
tantos avanços científicos, ainda reflete um sério problema de saúde pública no
Brasil [3].
Índia, Brasil,
Indonésia, Congo, Nepal, Tanzânia, Filipinas, Madagascar e Moçambique são
países que apresentam, respectivamente, alta taxa de prevalência e edemicidade de hanseníase atualmente. Do total de 214.783
casos novos informados em 2017 pelo Ministério da Saúde, o Brasil ocupou a
segunda posição com 25.218 (11,7%) e a Índia, com 135.485 (63%) do total de
casos. Nas Américas, o Brasil é o país que não conseguiu erradicar a doença,
apresentando maior magnitude nas regiões Centro-Oeste, Norte e capitais do
Nordeste. O estado de Pernambuco, no Nordeste Brasileiro, apresentou em 2012,
um índice de prevalência de 4,0/10 mil habitantes. Na capital, Recife, a
patologia continua endêmica, com focos não notificados, em contínua transmissão
e com diagnóstico tardio caracterizando-a como uma endemia oculta [4].
Até meados do século
XX, a internação compulsória em leprosários configurava-se como única ação
estratégica para controle e tratamento da hanseníase. Os pacientes hansênicos eram internados de forma involuntária e isolados
do convívio social e familiar. Tal fato ocorria por medo da alta infectividade da patologia. Esta exclusão social conferiu a
lepra um estigma negativo e que se encontra arraigado na cultura popular até os
dias atuais mesmo sabendo-se que a patologia tem cura e que, após iniciado o
tratamento, perde sua característica de transmissibilidade às pessoas [5].
Como alternativas para
minimizar a elevada prevalência da doença nestes países a Organização Mundial
de Saúde (OMS) indicou a utilização de uma combinação de drogas que
potencializa a ação antibacteriana e previne resistência ao Mycobacterium leprae, agente causador da hanseníase. A poliquimioterapia consiste na combinação de múltiplas
drogas: Rifampicina (RFM), Clofazimina (CFZ) e Dapsona
(DDS) que se mostraram altamente eficazes na cura da patologia e que interrompe
a sua transmissibilidade uma vez que o paciente adere ao tratamento [6].
No Brasil a
incorporação da terapêutica medicamentosa distribuída sem custo através do
Sistema Único de Saúde e a descentralização das ações voltadas ao controle da
hanseníase para o nível básico de assistência através da Estratégia de Saúde da
família ocorreu em 1998 e corresponde atualmente a uma importante diretriz do
Programa Nacional de Controle da Hanseníase [7].
Torna-se relevante,
portanto, fazer um resgate etnobibliográfico sobre a
evolução social e clínica da hanseníase no Estado de Pernambuco, pois sua
evolução está relacionada a decisões políticas e a estratégias de controle, que
redefiniram os conceitos sobre a patologia, a partir da própria história da
saúde pública no Brasil. Em 1936, o Governo Estadual adquiriu uma propriedade
situada atualmente no município de Paulista e nela foi construída a Colônia da
Mirueira Sanatório Padre Antônio Manuel, atual Hospital da Mirueira. Com
características de uma minicidade, tinha capacidade inicial para admitir 400
pacientes e tornou-se símbolo do isolamento social das pessoas com hanseníase
em Pernambuco [8].
As mudanças sociais
foram lentas e silenciosas. O sofrimento e a negligência à saúde foram
profundos, mas com as inovações tecnológicas, científicas e farmacológicas
voltadas para a assistência à saúde, o perfil da hanseníase mudou. O tratamento
medicamentoso confere a cura, impede o surgimento de sequelas degenerativas e
danos neurais, porém não apaga uma história de luta que aconteceu de forma
velada dentro dos leprosários [8].
Estudo
discursivo-textual de natureza etnobibliográfica
ancorada na obra “História Vivida na Terra dos Esquecidos”. A etnobibliografia procura reconhecer a vivência da cultura
de um determinado grupo social através de análises textuais a partir de
artefatos bibliográficos como os livros, por exemplo [9]. O aspecto discursivo
desta pesquisa pretende desvelar não apenas a história do Hospital da Mirueira,
mas também do conjunto de fatos que ocorreram com as pessoas hansênicas que viveram no leprosário.
A obra publicada em
2016 nasceu do desejo das autoras Rosa Maria Carlos de Albuquerque e Maria José
Dantas Mesquita de Amorim em retratar a saga, a coragem e o sofrimento das
pessoas acometidas pela lepra e abandonadas no leprosário. As coletas dos
depoimentos dos pacientes começaram no ano 2000, mas só em 2010 foram
reorganizadas para construção bibliográfica [8]. Porém para entender as
histórias apreendidas na obra foi necessário fazer um resgate sobre o Mal de
Hansen e seus aspectos clínicos e histórico/sociais em Pernambuco, além de
conhecer um pouco da história do Hospital da Mirueira.
Para sustentar a
construção discursiva, realizou-se uma busca de artigos sobre a temática nas
bases de dados da Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde
(LILACS), da Medical Literature Analysis
and Retrieval System Online
(Medline) e na Scientific Electronic
Library Online (SCIELO), através do cruzamento dos descritores
"Hanseníase"; "História" "Saúde Pública" oriundos
da base de Descritores em Ciências da Saúde (DecS).
Uma imersão
bibliográfica na obra “História Vivida na Terra dos Esquecidos” permitiu
desvelar a história do Hospital da Mirueira e os discursos dos internos,
marcados pelo sofrimento velado pelo tempo, conduziram a reflexão de como a
realidade se apresentava naquela época. Para garantir o anonimato dos
participantes, as autoras da obra atribuíram aos mesmos nomes de flores.
Hanseníase: formas
clínicas e diagnóstico diferencial
O Mycobacterium leprae ou bacilo de Hansen é um actinobactéria
transmissível pelas vias aéreas superiores com alto poder patogênico. Ao
interagir com um susceptível, infecta-o e transmite para o mesmo a hanseníase.
Atinge células cutâneas e acomete nervos periféricos, conduzindo a um desfecho
clínico desfavorável por causar deformidades e incapacidade física permanente,
ambas secundárias a um diagnóstico tardio [3].
Na hanseníase, a
convalescência depende do período epidemiológico, momento no qual se estabelece
a relação do agente causador com o indivíduo infectado, condicionado por
elementos ambientais, socioeconômico, social e psíquico [10]. Neste sentido, a
patologia pode assumir as formas clínicas: indeterminada, tuberculóide,
dimorfa e virchowiana. As
duas primeiras são classificadas como paucibacilares
(PB) por apresentarem poucos bacilos e consequentemente poder patogênico menor
quando comparados a dimorfa e virchowiana,
formas multibacilares (MB) [6].
Considera-se casos Paucibacilares aqueles com até 5 lesões dermatológicas,
exame de baciloscopia negativa e sem poder de transmissibilidade do bacilo. A
terapêutica de Poliquimioterapia (PQT) para estes casos
envolve doses combinadas de Dapsona e Rifampicina. Já
os multibacilares tem alto poder de
transmissibilidade, aparecem na baciloscopia deixando-a positiva e acomete o
paciente com mais de 5 lesões cutâneas pelo corpo. Sua terapêutica inclui uma
combinação de três medicações que difere da PB pela inclusão da Clofazimina
[6].
O nível de imunidade
das pessoas infectadas é condicional para determinar a forma clínica da
patologia. Neste sentido um caso de hanseníase está definido quando o paciente apresenta
de forma isolada ou simultânea um espessamento neural, lesão dermatológica com
alteração de sensibilidade e um exame de bacioloscopia
positivo para Hansen. O número de doses de PQT administradas e a duração da
terapia multidroga, preconizada para tratar a hanseníase, é considerado o único
critério para a alta por cura da doença [1].
Os sinais mais comuns
são lesões cutâneas de coloração esbranquiçada ou avermelhadas, nódulos,
tubérculos, infiltrações e placas. Porém os danos dermatoneurológicos
constituem as manifestações clínicas mais incapacitantes. Os nervos mais
acometidos são os localizados nos membros inferiores e superiores, além dos que
são responsáveis pela visão. Se a lesão não levar a um comprometimento neural
nos olhos, pés e mãos o grau de incapacidade física fica definido como Grau O.
Se indicar alteração de sensibilidade, grau I e se já estiverem instaladas as
incapacidades ou deformidades caracteriza o Grau II [11]. Estas incapacidades
podem ser acentuadas por decorrência das reações hansênicas
[12].
Reações hansênicas correspondem a resposta imunológica do indivíduo
ao patógeno que podem conduzir a quadros inflamatórios agudos. Tais reações
atingem a população acometida de modo significativo. Podem ser classificadas em
Tipo 1 e 2. A reação tipo 1 é desencadeada pela imunidade celular ou um eritema
nodoso. Caracteriza-se pelo surgimento manchas ou placas cutâneas,
infiltrações, mudança na pigmentação da pele, edema além de dor e espessamento
dos nervos. Já a reação tipo 2, relacionada à imunidade humoral, é
caracterizada pelo eritema nodoso, ou seja, nódulos subcutâneos vermelhos e
dolorosos, além de mal-estar geral, dor e hipertermia [13].
A identificação e
condução clínica dos acometidos por uma reação hansênica
configuram-se como um desafio para os profissionais de saúde. Este tipo de
reação ocorre antes da conclusão do esquema de poliquimioterapia
(PQT), por isso faz-se necessário a identificação precoce dos casos visando a
redução de sequelas e promovendo a quebra da cadeia de transmissão da patologia
[12].
Evolução histórica e
social da hanseníase
Para compreender a
evolução histórica e social da hanseníase faz-se necessário ampliar a
compreensão sobre o contexto histórico geral da Saúde Pública no Brasil.
No período medieval, a
Europa e o Oriente Médio apresentavam altos índices de prevalência de
hanseníase. O isolamento compulsório do indivíduo hansênico
foi preconizado a partir do Concilio de Lyon, a fim de afastar o doente da
comunidade sadia minimizando o risco de transmissão. No Brasil Colônia, os
primeiros casos foram notificados na cidade do Rio de Janeiro e as primeiras
ações de controle limitaram-se à construção de leprosários e a uma assistência
precária aos infectados [14].
Os primórdios da Saúde
Pública no Brasil têm início em meados deste século com a intervenção do
Governo no processo de sanitização das grandes cidades e portos a fim de
controlar as patologias pestilenciais que incidiam nestas áreas. Osvaldo Cruz e
Emílio Ribas foram os responsáveis por iniciar o processo de erradicação das
patologias endêmicas e infecciosas, entre elas a hanseníase, na cidade do Rio
de Janeiro e São Paulo [6].
Atrelados a uma ótica higienicista, Cruz e Ribas visavam de forma veemente a
descoberta e isolamento das pessoas com Bacilo de Hansen, o saneamento do meio,
a destruição dos vetores biológicos e a proteção da população sadia. Estas
ações estratégicas estavam articuladas a um modelo assistencial que tinha na
campanha sanitária e na polícia seus meios principais de efetivação. Porém,
cabe ressaltar, que todas as ações voltadas à saúde nesta época visavam
impulsionar a economia [6,14].
Dados epidemiológicos
disponibilizados na época evidenciaram uma queda significativa na incidência de
doenças transmissíveis no Brasil impactando a taxa de mortalidade que era
elevada e apresentou decréscimo. Associa-se a tal fato a eficácia da política
social implantada. É evidente, portanto, que o estigma gerado pela “lepra” se
deve muito mais ao preconceito social do que à condição clínica da patologia,
uma vez o indivíduo contaminado e curado apresenta resistência imunológica ao
bacilo de Hansen [1].
A partir dos
experimentos de Pasteur, foi descoberto o fato da hanseníase ter como agente
patogênico um único microrganismo. Em 1874, um médico norueguês, Armauer Hansen, demonstrou pelo exame simples a presença de
incontáveis nódulos dermatológicos nas células leprosas. Devido ao seu poder de
contágio, a patologia passou a ser uma ameaça social, e os hospitais passaram a
ser contraindicados para o tratamento da hanseníase impulsionando o
confinamento compulsório dos doentes em leprosários [3].
Em 1920 foi criado o
Departamento Nacional de Saúde Pública e instituída a Inspetoria de Profilaxia
da Lepra e Doenças Venéreas, que preconizou a fundação de asilos-colônias.
Estes locais serviriam para isolar os pacientes leprosos da comunidade sadia.
Ficava estabelecido, portanto, um isolamento domiciliar compulsório. Também foi
instituído pela inspetoria a notificação dos comunicantes e casos suspeitos de
Hansen, isolamento imediato dos neonatos e filhos de leprosos para outros
locais fora da zona de contágio e a proibição do exercício de atividades
profissionais pelas pessoas infectadas [14]. Porém, as medidas de isolamento
não demonstraram a efetividade esperada para controle da doença e impulsionaram
o crescimento do estigma associado a patologia. A partir dos anos 30 a
Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas perde força após
redirecionamentos de metas e condutas por parte do Departamento de Saúde
Pública. Uma mudança significativa na abordagem da doença surgiu na metade do
século com a criação da Campanha Nacional do Controle da Hanseníase, que
apresentou a sulfona como fármaco de efeito adverso
reduzido e com potencial para cura da doença [12].
O modelo assistencial
hospitalar já não era de reclusão absoluta, era misto, denominado Hospitais
Colônia que funcionavam com um complexo hospitalar no centro e moradias ao
redor. Uma vez admitido nesta colônia, o paciente não conseguia mais sair,
ainda que curado, pois não mais conseguia se reinserir na sociedade e
continuava “doente” para sempre [6].
Apenas em 1974, com a
implantação do Ministério da Saúde, a medicina preventiva ganha visibilidade.
Neste período, o Brasil foi pioneiro na iniciativa de minimizar o estigma
relacionado a doença através da substituição oficial do termo “lepra” para
hanseníase. A desativação dos asilos e o início da reintegração do paciente à
sua família só correu após a 8ª Conferência Nacional de Saúde na década de 80.
Para garantir a reinserção do paciente ao seu núcleo social e familiar,
assegurando, assim, seus direitos como cidadãos foi criado o Movimento de
Reintegração das Pessoas atingidas pela Hanseníase – MORHAN [13].
Outras medidas
favoráveis ao paciente com Hanseníase foram instauradas a partir de 1985,
adequando o programa da hanseníase com o recomendado pela Organização Mundial
da Saúde. Os hospitais-colônia foram reestruturados e a poliquimioterapia
(PQT) passou a ser distribuída de forma gratuita pelo Governo. Com estas
medidas, a lógica classificatória da hanseníase e as formas de tratamento
mudaram completamente [1].
Hospital Colônia da
Mirueira: discursos marcados pelo sofrimento velado pelo tempo
Os primeiros registros
da lepra no estado de Pernambuco datam de meados do século XVIII e expandiu-se
para os estados da Paraíba e Alagoas. O primeiro sanatório do estado foi
fundado no Recife em 1714, o Sanatório Padre Antônio Manuel. Com a aquisição da
propriedade, pelo Governo do Estado de Pernambuco em 1936, inicia-se a
construção da Colônia da Mirueira, atendendo as recomendações profiláticas para
lepra. A inauguração oficial foi realizada em 26 de agosto de 1941 [15,16].
Nos primórdios a
Colônia da Mirueira possuía capacidade de internação para 400 pacientes.
Projetado com ruas, praças, templo religioso, prefeitura, escola, área de
lazer, além dos complexos médicos necessários, a instituição tinha por objetivo
minimizar o sofrimento dos pacientes. Apresentava divisões em alas nas quais se
abrigavam os internos. A ala C era considerada de alto contágio. Somente
pacientes devidamente autorizados tinham possibilidade de transpor-se a
barreira entre alas, sob pena de repreensão, mediante a proibição imposta a
todos aqueles que habitavam a chamada de “Cidade do Medo”. A Colônia da
Mirueira transformou-se no símbolo do isolamento social dos acometidos pela
lepra em Pernambuco [8,15,16].
O processo de admissão
ocorria secundário à transferência de pacientes de outro hospital ou por meio
de internação compulsória e muitas vezes para tanto fazia-se necessário o uso
de intervenção policial [8]. Durante o período em que vigorou o isolamento
compulsório, os internos da Mirueira lutaram contra o esquecimento, o
determinismo que os “condenava” ao fim, conforme explícito nos relatos
vivenciados por Albuquerque e Amorim (2016), autoras da obra “História Vivida
na Terra dos Esquecidos”:
“Quando
sua mãe veio trazê-la para Colônia, nada lhe foi dito da doença e da
necessidade de internamento. Só percebeu quando procurou sua mãe e não
encontrou. Chorou muito...[...]” (Violeta [8:54])
“[...]
Você está com uma doença contagiosa, muito grave, seja forte, por que tem
tratamento, vou encaminhá-lo para o hospital da Mirueira, pois aqui não pode
mais ficar!!” Lírio [8:65])
“[...]
Com 19 anos tomou conhecimento que estava com Hansen. Ficou revoltada e chorou
muito. Veio para o Hospital da Mirueira para internar-se e ficou arrasada
quando sua mãe foi embora, deixando-a só.” (Dália [8:73])
“A
família e os amigos quando souberam o diagnóstico ficaram apavorados, e todos..[...]...foram tomados por um preconceito arrasador!!”
(Lírio [8:65])
O internamento era o
pavor do paciente hansênico, pois uma vez admitido na
colônia não poderia deixá-la [8]. Os relatos evidenciam o intenso sofrimento
vivenciado pelos pacientes diante da revelação diagnóstica de Hanseníase.
Descreve também a postura da família que não tem alternativa a não ser internar
de forma compulsória seus entes queridos. Para estes a despedida é tão dolorosa
que vão embora sem despedir-se.
Dentro do espaço que
lhes foi imposto, reformularam suas vidas, forjaram novas relações sociais,
novos pactos de convivência e solidariedade:
“[...]
As meninas ao chegarem eram encaminhadas para um pavilhão só delas; e todas as
atividades eram ditas e fiscalizadas por uma senhora também hanseniana.”
(Violeta [8:55])
“No
período de seu internamento trabalhava no serviço de limpeza...[...]” (Orquídea
[8:61])
O serviço de limpeza e
manutenção do leprosário era realizado pelos internos, pois não havia naquela
época, funcionários contratados pelo Estado para desempenhar tal função. A
adoção desta medida foi voltada a ocupar o tempo dos pacientes internados e
conferir aos mesmos uma responsabilidade sobre o local de residência [8],
conforme descritos nos relatos:
“No
sanatório sua vida não foi fácil; trabalhava bordando tapetes em ponto cruz
para vender e conseguir recursos para comprar matérias de higiene pessoal e
outras necessidades. Queria trabalhar na enfermagem
mas não deixaram porque não sabia ler e neste período não havia escola para
adultos.” (Açucena [8:53])
“Participou
da colônia no plantio de verduras, macaxeira e árvores frutíferas. Além disso
trabalhava nas pocilgas.” (Cravo [8:59])
Os relatos demonstram
que o regime assumido era muito duro e a intensidade da pressão variável de
acordo com a direção. Apenas em 1948 foi criada a Portaria do Diretório do
Serviço Nacional de Lepra que dispõe sobre a normatização das atividades
exercidas nos leprosários, na modalidade colônia agrícola. Tal legislação
confere ao interno a segurança de seus direitos previdenciários [8,15].
A colônia, assim como
uma cidade, elegia um prefeito para cuidar das questões administrativas e
servir de elo entre os pacientes e a direção do hospital. A ordem era mantida por
uma delegacia e as normas eram rígidas, com possibilidade até de prisão em caso
de transgressão às leis. O prefeito era eleito pelo voto dos internos e o
delegado indicado pelo mesmo. Tais informações
corroboram com uma compreensão ampliada sobre o que poderia ser uma “colônia”
[15]. Nestes complexos até cemitérios existiam, nada acontecia fora da “Cidade
do Medo” [8].
Atividades artísticas e
culturais também eram incentivadas pela direção. Havia o departamento
recreativo, órgão responsável pela organização das festas, bailes, jogos de
futebol, cinema na unidade, assim como, manutenção dos equipamentos
audiovisuais e cassinos. Os internos uniram-se e ensinaram uns aos outros o que
sabiam por sua formação [8]. Houve um destaque para o ensino de música e
instrumentos musicais, assim como habilidades na leitura e escrita:
“Gostava
de cantar no conjunto, de representar no teatro e trabalhou também na
amplificação da rádio, a Voz da Esperança.” (Violeta [8:55])
“Quando
melhorou e começou a andar, frequentou a escolinha de artes, chegando depois a
ser professora.” (Margarida [8:57])
“O
lazer era para aqueles que viviam nos pavilhões e na Vila dos casados. Esses
tinham mais liberdade e frequentavam os bailes e outras atividades culturais.”
(Margarida [8:57])
O Hospital da Mirueira
inicialmente construído para admitir 400 pacientes já assumiu 500 internos que
sofreram intensamente com o preconceito e o abandono por parte dos familiares.
Em 2012 houve uma mudança no perfil do atendimento. Sua área física foi
reduzida cedendo espaço para construções de casas populares, porém continua com
muito verde ao seu entorno. Nas residências convivem 22 moradores que foram
vítimas do internamento compulsório e seus parentes, totalizando cerca de 40
pessoas que moram na Mirueira [15,16].
Sob a gestão do Governo
Estadual, a unidade continua sendo referência em Pernambuco no tratamento de
hanseníase e de dependentes químicos, usuários de álcool e outras drogas com
dificuldade de adesão ao tratamento e difícil cura [16].
Através do descrito no
estudo podemos conhecer como aconteceu a evolução da hanseníase através do seu
contexto clínico e social. De doença grave, altamente contagiosa que conduzia
ao internamento compulsório em leprosários e isolamento social para doença
crônica curável com tratamento disponível de forma gratuita no Sistema Único de
Saúde.
Os dados descritos
demonstram a eficácia das políticas públicas voltadas ao paciente hansênico através da redução do índice de mortalidade pela
doença. Evidencia a necessidade de manutenção de busca ativa de novos casos,
principalmente entre a população mais jovem e do acompanhamento das pessoas já
notificadas.
Mesmo com toda
divulgação midiática e avanços científicos voltados para prevenção, tratamento
e controle da hanseníase ainda é observado na população uma percepção estigmatizante à patologia e ao indivíduo que convive com
ela. O discurso dos internos descritos na obra de Albuquerque e Amorim (2016)
desvelaram exemplos de força, superação e perseverança destes pacientes que
enfrentaram a dor, o medo e o abandono secundário ao estigma conferido pela
hanseníase.
Este estudo contribui
para uma percepção ampliada dos profissionais de saúde que atuam de forma
direta junto ao paciente com bacilo de Hansen. Faz-se necessário incentivar um
olhar assistencial holístico que leve em consideração não só as necessidades de
acompanhamento e tratamento, mas também a forma como os
pacientes se percebem em relação a eles próprios, a sua rede de apoio e
as dificuldades psicológicas por eles enfrentadas.