Enferm Bras 2021;20(2):238-54

doi: 10.33233/eb.v20i2.4453

REVISÃO

Cuidados de enfermagem ao paciente alcoolista na atenção primária

 

Adrielly Ferreira Rodrigues*, Túlio César Vieira de Araújo, M.Sc.**

 

*Discente do curso de enfermagem no Centro Universitário FACEX, **Enfermeiro, Docente do Centro Universitário FACEX

 

Recebido em 17 de novembro de 2020; Aceito em 30 de abril de 2021.

Correspondência: Adrielly Ferreira Rodrigues, Rua Edson Teixeira da Silva 270, Bl. B/1301, Natal RN

 

Adrielly Ferreira Rodrigues: radriellyr@gmail.com

Túlio César Vieira de Araújo: tuca_cva@hotmail.com

 

 

Resumo

O objetivo deste trabalho é identificar, no cenário brasileiro, as principais temáticas relacionadas com os cuidados de enfermagem ao paciente alcoolista na atenção primária. Foi feito um estudo descritivo do tipo revisão integrativa no qual foram analisados artigos dos anos de 2014 a 2020, nas bases de dados Scielo, Lilacs e Medline, resgatados a partir dos descritores atenção primária à saúde, alcoolismo, enfermagem e assistência ao paciente. A pesquisa identificou 418 artigos e 11 foram selecionados. Os estudos apresentaram como principais temáticas as limitações dos profissionais nos cuidados a esse tipo de paciente, o estigma enfrentado, e a efetividade da intervenção breve para a motivação do paciente. Percebe-se a necessidade de capacitação dos profissionais como fator preponderante para a melhoria da qualidade da assistência, assim como a desmistificação do caráter moral que pleiteia a sociedade em torno desse paciente.

Palavras-chave: atenção primária à saúde; alcoolismo; enfermagem; assistência ao paciente.

 

Abstract

Nursing care for the alcoholic patient in primary care

The objective of this study was to identify, in Brazilian scenario, main themes related to nursing care for alcoholic patients in primary care. A descriptive study of integrative review type was carried out in which articles from the years 2014 to 2020 were analyzed, in the databases Scielo, Lilacs and Medline, retrieved from the descriptors primary health care; alcoholism, primary attention, nursing and patient care. The research identified 418 articles and 11 were selected. The studies presented as major topics the limitations of professionals in the care of this type of patient, the stigma faced and the effectiveness of brief intervention for patient incentive. The training of professionals is a factor for improving the quality of care, as well as for the demystification of the moral character that the society around this patient demands.

Keywords: primary health care; alcoholism; primary attention; nursing; patient care.

 

Resumen

Atención de enfermería al paciente alcohólico en atención primaria

El objetivo de este trabajo es identificar, en el escenario brasileño, los principales temas relacionados con la atención de enfermería al paciente alcohólico en la atención primaria. Se realizó un estudio descriptivo del tipo revisión integradora en el que se analizaron artículos de los años 2014 al 2020, en las bases de datos Scielo, Lilacs y Medline, recuperados de los descriptores atención primaria de salud, alcoholismo, enfermería e atención al paciente. La investigación identificó 418 artículos y se seleccionaron 11. Los estudios presentaron como temas principales las limitaciones de los profesionales en la atención de este tipo de pacientes, el estigma que enfrentan y la efectividad de la intervención breve para motivar al paciente. Entre tanto, existe la necesidad de la formación de profesionales como factor principal para mejorar la calidad de la atención, así como la desmitificación del carácter moral que demanda la sociedad que rodea a este paciente.

Palabras-clave: atención primaria de salud; alcoholismo; enfermería; atención al paciente.

 

Introdução

 

O álcool é a substância psicoativa mais consumida no mundo, o consumo excessivo de bebidas alcoólicas sempre foi precursor de grandes problemas sociais durante toda a história. Ao longo dos séculos sua presença em diferentes culturas obteve destaque já que a substância sempre atraiu lugar de proeminência nos âmbitos sociais, culturais, econômicos e até mesmo políticos [1].

Quanto ao alcoolismo, tem-se que, por suas definições históricas, passa-se de uma desordem psicológica a um comportamento crônico e patológico, cuja raiz se encontra na dependência química do álcool, com reflexos nas relações e comportamentos sociais, com danos últimos à saúde pela intoxicação [2].

O consumo do álcool tem se destacado pela sua relação causal com mais de 200 condições de saúde [3]. Esses agravos se dão pela perda da qualidade de vida do paciente, visto que o consumo exagerado da substância gera prejuízos consideráveis no seu sistema biológico, assim como distúrbios mentais [4].

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o álcool gera cerca de 3,3 milhões de mortes por ano no mundo, sendo estas por doenças orgânicas ou causas externas [5]. No Brasil, 12% das pessoas que consomem o álcool são dependentes da substância [6]. O consumo nocivo dessas substâncias tem apresentado números expressivos, segundo o III Levantamento Domiciliar Nacional, a estimativa de uso de álcool na vida dos brasileiros foi de 66,4% [7].

Esses dados se tornam cada vez mais preocupantes quando observamos que a faixa etária dos consumidores tem se tornado cada vez mais precoce, de modo a aumentar a probabilidade de gerar consequências à saúde do indivíduo, assim como a sua dependência. O consumo exagerado dessa bebida traz prejuízos irreversíveis tanto para o indivíduo quanto para terceiros, de forma que as políticas nacionais de prevenção ao alcoolismo devem ser reavaliadas e colocadas em prática na expectativa que haja mitigação desses números [8].

A Política Nacional para a Atenção ao Uso de Álcool e Outras Drogas traz as ações na atenção básica com destaque para a prevenção e agravamento da doença de modo a incentivar capacitações aos profissionais de saúde com o intuito de tratar não somente a doença, mas todos os estigmas sociais gerados por esta [9]. Nesse sentido, entendendo o estigma como sendo relacionado aos valores atribuídos às características de uma pessoa, geralmente com caráter depreciativo, faz-se necessário o cuidado diferenciado a esse tipo de indivíduo, criando estratégias de compreensão e integração [10,11].

Estudo mostra que 22% da população atendida em unidades básicas é consumidora de álcool em nível considerado de alto risco [12]. O cuidado ao paciente com problemas relacionados ao álcool tem se apresentado como um grande desafio para o enfermeiro generalista, uma vez que o despreparo, a carência de conhecimento e até mesmo a resistência que esse paciente apresenta são fatores que impossibilitam um atendimento adequado [8].

Em face desse pressuposto, tem-se que a desconstrução dessa incógnita se daria pela busca do conhecimento sobre a doença, a abordagem correta aos pacientes dependentes da substância, suas causas e possíveis tratamentos [13]. Assim, o diagnóstico precoce pode ser obtido com mais antecedência, evitando-se maiores complicações e dificuldades em razão da identificação tardia do problema [14]. Diante disso, é necessário que sejam reavaliados intervenções e métodos, com o objetivo de delinear o problema e contornar as dificuldades práticas, com vistas a melhorar a qualidade do atendimento [6].

       Entendendo a magnitude e relevância da temática e no intuito de contribuir com o conhecimento científico acerca do assunto se deu a motivação para construção deste estudo tendo como indagação norteadora: Como se dá a assistência ao usuário alcoolista na atenção primária?

Este estudo tem o objetivo de identificar as principais temáticas relacionadas com os cuidados de enfermagem ao paciente alcoolista na atenção primária, considerando a realidade brasileira.

 

Material e métodos

 

Trata-se de um estudo descritivo do tipo revisão integrativa. “A revisão integrativa é um método que tem como finalidade sintetizar resultados obtidos em pesquisas sobre um tema ou questão, de maneira sistemática, ordenada e abrangente” [15]. O propósito inicial deste método de pesquisa é buscar entendimento de um determinado fenômeno com arrimo em estudos anteriores.

O estudo descritivo se caracteriza pelo planejamento prévio para uma determinada pesquisa, gerando um conhecimento sobre o objeto de estudo, colhendo-se o máximo de informações confiáveis e formulando uma conclusão sobre o tema abordado. A pesquisa descritiva apresenta os mecanismos e processos realizados durante o estudo de modo a descrever os fatos e fenômenos encontrados [16].

Para a construção desta revisão literária, observaram-se os seguintes passos: seleção das questões temáticas, definição dos descritores, coleta de dados através da base de dados eletrônica, com alguns critérios de inclusão e exclusão para selecionar a amostra; elaboração de um instrumento de coleta com informações de interesse a serem extraídas dos estudos, análise crítica da amostra, interpretação dos dados e apresentação dos resultados. A busca ocorreu no período de março a agosto de 2020 através da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). As bases de dados selecionadas foram: Scielo, Lilacs,BDEnf e Medline.

Os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) utilizados para a pesquisa foram: alcoolismo, atenção primária, enfermagem e cuidados. Para refinamento do material, utilizaram-se o operador booleano and combinados de forma que os descritores “atenção primaria” e “alcoolismo” estivessem presentes em todos os cruzamentos, em razão dos resultados gerados sem esses descritores se apresentarem distantes do objeto de pesquisa deste estudo. Os cruzamentos realizados e a descriminação dos artigos identificados encontram-se expostos na Figura 1.

 

 

 

Fonte: Elaborado pelos autores (2020).

Figura 1Cruzamentos realizados e resultados encontrados nas bases de dados selecionadas, 2020

 

Os critérios de inclusão adotados foram: estudos publicados na língua portuguesa e inglesa disponíveis na forma gratuita e online na íntegra que compartilhassem da temática e objetivo proposto. Com relação a temporalidade da pesquisa, optou-se por iniciar a busca no período que marcou do decênio da redefinição e ampliação da Política Nacional para a Atenção ao Uso de Álcool e Outras Drogas, com o advento da Portaria nº 2197/2004, do Ministério da Saúde, até os dias atuais, considerando os anos 2014 a 2020. Como assunto principal foram destacados os descritores “alcoolismo” e “atenção primaria à saúde”.

Quanto aos critérios de exclusão, destacam-se: artigos duplicados, considerado-se apenas uma cópia; publicações do tipo: dissertações, teses, revisões de literatura, TCC, editoriais, notas ao editor e reflexões. Para análise crítica dos artigos realizou-se leitura completa com as respectivas sínteses.

Os dados utilizados neste estudo foram devidamente referenciados, respeitando e identificando seus autores e demais fontes de pesquisa, observando rigor ético quanto à propriedade intelectual dos textos científicos que foram pesquisados, no que diz respeito ao uso do conteúdo e de citação das partes das obras consultadas.

 

Resultados e discussão

 

Na revisão, identificaram-se 418 artigos e 11 foram selecionados, dos quais 54,54% foram no vernáculo e 45,45% em língua inglesa. As metodologias de pesquisa evidenciadas se classificaram 36,36% em estudos qualitativos, 36,36% ensaios clínicos randomizados, 18,18% estudos transversais e 9,09% delineamento intragrupo. Dos artigos selecionados, prevaleceram publicações do ano de 2015 e 2019 com 03 e 04 publicações respectivamente, o que representa 27,27% e 36,36%.

A pesquisa empírica encontra-se representada no Quadro 01, onde se registrou a síntese dos dados. Destacou-se: autor, periódico, ano de publicação, título do artigo, tipo de estudo, objetivos e resultados, sendo ordenados por ano de publicação em ordem crescente. No Quadro 2, destaca-se uma análise mais clara e interpretação dos estudos, emergindo destes as seguintes temáticas: 1) O cuidado no consumo nocivo do álcool na atenção primária; 2) O preparo profissional e estrutural para o acolhimento ao paciente alcoolista; 3) O estigma associado ao paciente alcoolista.

No tocante à avaliação dos estudos quanto aos níveis de evidência, considerou-se a Oxford Centre Evidence-Based Medicine [38], cuja distribuição foi disposta no Quadro 3. Dos achados, anotou-se níveis 1B, 2A, 2B, 2C, 3B e 5. Nesse sentido, destaque-se que há uma prevalência significativa de estudos nos níveis 1B e 2B, com 27,27% e 36,36% respectivamente.

 

Quadro 1Principais dados dos artigos inclusos na revisão integrativa, 2020 (ver PDF)

 

Quadro 2Distribuição e subdivisão dos conteúdos para a discussão, 2020

 

Fonte: Elaborado pelos autores (2020)

 

Quadro 3Distribuição dos estudos selecionados por nível de evidência [38]

 

Fonte: Elaborado pelos autores (2020)

 

Dentre as dificuldades da pesquisa, destacou-se a escassez de estudos referente ao tema como fator limitante para obtenção de resultados mais abrangentes. O déficit de livros para embasamento teórico também se apresentou como uma barreira para o desenvolvimento do trabalho, uma vez que a inclusão de percepções pessoais não se caracteriza como base desse estudo.

Num ponto de partida, os artigos sugeriram que as representações sociais abstratas constituem um fator desfavorável, uma vez que a concepção cultural do alcoolismo se difere significativamente da visão técnico-científica atual. Além disso, tem-se que o acompanhamento continuo se caracteriza como um condicionante motivador para o envolvimento do paciente com o seu tratamento [1].

Ressalta-se a vulnerabilidade desse tipo de usuário em resposta ao seu atendimento, diante do pressuposto que o olhar institucional das unidades se expressa de forma biomédica, atentando apenas para procedimentos técnicos e com um foco na abstinência total como tratamento [13]. Dessa forma, é perceptível a necessidade de implementação de técnicas e procedimentos, bem como a observância de rotinas para a capacitação dos profissionais atendentes, sobretudo considerando a realidade brasileira.

 

O cuidado no consumo nocivo do álcool na atenção primária

 

A temática sobre o cuidado aos pacientes alcoolistas em unidades primárias apresenta barreiras consideráveis, tais como a baixa demanda espontânea, haja vista a forte tendência dos usuários em negar a sua dependência, e o consumo nocivo da substância [12]. É importante distinguir os padrões de uso nocivo, dos transtornos psiquiátricos ocasionados por estes [2]. Dessa forma, nota-se a necessidade de um diagnóstico preciso. Nesse sentido as categorias descritas na Organização Mundial da Saúde (OMS) salientam critérios para a classificação e diagnóstico [13].

No Brasil é disponibilizada uma classificação pelo Observatório Brasileiro de informações sobre drogas (OBID) que apresenta os estágios desde seu uso experimental até o consumo nocivo da substância, ressaltando, assim, padrões de risco para os consumidores [12]. Visto que os problemas pertinentes ao uso do álcool se difundem de acordo com a sua gravidade, torna-se impreterível a implementação destas intervenções na rotina dos profissionais.

Entre os estudos selecionados nesta revisão integrativa, sete apresentaram a efetividade da intervenção breve (IB) no tratamento do paciente alcoolista, com o destaque para a motivação do paciente diante dos métodos abordados, a evidente melhora no quadro das pessoas que se submeteram as etapas do tratamento ratifica a significância desta abordagem no cenário em questão.

A intervenção breve é caracterizada pela técnica no qual se busca, em um determinado período, obter o maior número de informações sobre a situação atual do paciente, avaliando-o e motivando a tomada de decisões e comprometimento com a mudança no seu estilo de vida [17]. Já o Ministério da Saúde aponta que o principal objetivo da IB é identificar o problema e buscar a motivação das pessoas no intuito de perseguir determinados objetivos que culminam na autonomia pessoal [18].

Considerando os estudos resgatados que mencionaram a intervenção breve como meio eficaz, o perfil do paciente dependente do álcool evidencia-se em um desconforto físico e emocional. Nesse ponto, é importante destacar a apreensão do usuário em aceitar o tratamento devido as barreiras sociais já enfrentadas. Esse fator impacta na falta de interesse do usuário em procurar ajuda especializada, de modo que a eficácia da IB se destaca na sua abordagem em atenções primárias pela necessidade do acompanhamento a esse tipo de paciente durante todo o processo.

Outro ponto de observação na pesquisa é que a qualidade da intervenção breve no atendimento primário depende de capacitação dos profissionais envolvidos, e da atenção do próprio sistema de saúde. Isso porque a implementação eficiente dessa técnica depende da inserção de rotinas de treinamento contínuo, o que implica em atenção às modalidades de treinamento e capacitação específicas [19].

Vale mencionar que, nos achados da pesquisa, um estudo randomizado aponta que intervenções consistentes em autonomia pessoal e a tomada de decisões não apresentaram significativas diferenças quanto ao evitar o consumo excessivo de álcool. Contudo, no mesmo estudo, ficou claro que a capacitação e multidisciplinariedade no atendimento são fatores preponderantes para sua eficácia. Porém, vale salientar que o referido estudo não é suficiente para afastar a conclusão da ineficácia de técnicas como a IB, haja vista a estreita janela estatística [20].

       Por fim, os achados evidenciam a eficiência da intervenção breve, ainda que adotada de forma limitada, haja vista as dificuldades pertinentes à realidade brasileira [16]. Isso pode indicar outros caminhos a serem explorados, considerando a IB como um veículo promissor para a atenção ao alcoolista no atendimento primário.

 

O preparo profissional e estrutural para o acolhimento ao paciente alcoolista

 

Quanto ao acolhimento, observou-se que quatro artigos abordaram de forma significativa a relação entre profissionais e pacientes. Convém enfatizar que estes destacaram a necessidade de um atendimento qualitativo e empático, sobretudo com o foco no contexto holístico.

A respeito da assistência dos profissionais ao paciente alcoolista, tem-se que alguns elementos externos e internos parecem influenciar o discernimento técnico e isento para o adequado tratamento. Nesse âmbito, analisando o comportamento dos profissionais a partir de observações práticas em serviço público de saúde, percebeu-se que a perspectiva valorativa nos atendentes, estas com base em suas acepções morais, aparentam ser determinantes no julgamento do caso clínico [21].

Em face dos princípios do atendimento primário, o vínculo entre profissionais e usuários é necessário para uma aproximação efetiva, de forma que a escuta qualificada é essencial, visto o seu caráter fundamental para a compreensão, diagnóstico e tratamento [4]. Com base nisso, destaca-se que julgamentos morais e práticas embasadas em crenças pessoais entravam a relação profissional/usuário dificultando o vínculo e afetando diretamente a qualidade da assistência.

Outro fator preponderante para o progresso da qualidade do atendimento se refere a capacitação dos profissionais frente a técnicas e recomendações relacionadas ao manejo do paciente. De forma que alguns estudos apontam a necessidade improtelável de implantação de programas assistenciais e qualificações em conjunto com o apoio dos gestores [19].

Diante desse cenário, destaca-se a Estratégia de Saúde da Família (ESF) que se caracteriza como um importante programa de prevenção no qual objetiva-se o cuidado integral e holístico, centrado não apenas no cuidado hospitalocêntrico, mas em todo o contexto que integra o indivíduo [22]. A proximidade que esse programa proporciona à comunidade é um recurso estratégico para a formação do vínculo profissional/usuário, de modo que compete ao profissional a abordagem adequada e encaminhamento dos pacientes em situação de vulnerabilidade para centros especializados [18].

Os Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e outras drogas (CAPS-ad) se apresentam como a principal referência para o encaminhamento do paciente alcoolista. Alinhado a isto, vê-se que o atendimento especializado e interdisciplinar é sempre citado como importante elemento para o tratamento adequado do alcoolista [3]. O tratamento do alcoolismo deve lançar mão de atenção multiprofissional, de recursos e serviços diversos, como atendimento médico, psicológico e de outras especialidades [13].

Esse apontamento se complementa com a conclusão quanto à importância de novos métodos que valorizam o tratamento pessoal e familiar, em detrimento do uso de substâncias psicoativas, o que seria suportado por um atendimento matricial [3]. Destaca-se, nesse sentido, que o matriciamento se caracteriza como um suporte técnico/profissional cujo intuito é de ampliar o campo de atuação interdisciplinar, proporcionando, assim, o cuidado integral e interpessoal ao paciente. Dessa forma, a abordagem matricial trabalha na sugestão de diferentes olhares profissionais, uma vez que considera não só o indivíduo, mas todo o seu contexto social [18].

Por fim, vale destacar a percepção dos profissionais quanto a qualidade da assistência. Os estudos apresentam o interesse que esses têm no aprimoramento dos cuidados e intervenções. De modo que a capacitação, a ampliação de estratégias e o aconselhamento são destacados como fatores importantes para uma assistência integral e responsabilizada [14].

 

O estigma associado ao paciente alcoolista

 

A estigmatização do paciente alcoolista se apresentou nos estudos como algo comum e habitual. Notou-se a necessidade de abordagem no assunto entre os achados da revisão, uma vez que de 11 artigos selecionados, três abordaram a temática. Remetendo a um aspecto mais subjetivo da ausência de capacitação adequada, ao mesmo tempo que evidenciou influência da moralidade individual, que se sobressai à capacidade de aferição e identificação do que se passa com o paciente [12].

Pesquisas foram feitas no decorrer dos anos e apontam a estigmatização ao paciente alcoolista pelos profissionais, uma vez que estes apresentariam um sentimento de frustração diante dos usuários, em razão de sua impotência para intervir com algum tipo de tratamento [13].

O estigma tem se destacado como uma das principais consequências do “estresse das minorias” sendo caracterizado como modelo que expõe indivíduos discriminados a uma maior vulnerabilidade social. A resposta a atitudes e valores de determinadas populações evidenciam a necessidade de intervenções nessas práticas discriminatórias, visto que o estresse e as implicações psicológicas como a desejabilidade social, a baixa autoestima e a falta de domínio pessoal se tornaram fatores crônicos [23].

Impende anotar que o estigma, independente do público atingido, gera efeitos danosos seja imediatamente ou a longo prazo como constatado em um estudo, no qual se observou pacientes portadores de hanseníase, internados em hospital colônia, em período compreendido entre as décadas de 1940 e 1960. O ensaio mostrou que a submissão dos enfermos à tratamento excludente causou profundas marcas em suas vidas, de modo que acabaram perdendo família, emprego e, dessa forma, vivenciaram profundas mudanças em suas vidas sociais [24].

As ações em saúde devem estar voltadas a atenção individual. Destaca-se como exemplo caso em que um indivíduo aparece em serviço de saúde ferido por arma branca e o seu atendimento se limita ao momento, de modo que a causa preponderante por trás da situação é ignorada. Ilustrando a visão moral, estigmatizante e pontual da equipe, que é repercutida na capacidade de acolhimento e escuta [12].

De acordo com os estudos, o estereotipo social referido a esse paciente como doente e moralmente fraco é uma vertente a ser considerada no processo de acolhimento. Diante da fragilidade moral e da dificuldade no processo de acompanhamento, o paciente muitas vezes se apresenta na unidade apenas com queixa a problemas secundários, sem assumir o seu real problema com o álcool [14].

Tendo em vista que a negação faz parte do perfil desse paciente, o estigma que lhe é atribuído se caracteriza como fator potencializador para a percepção de que receberão um julgamento moralizado caso procurem ajuda. Por conseguinte, nota-se uma baixa demanda desses usuários no sistema de saúde, muito provavelmente em razão da percepção de que serão discriminados [7].

 

Conclusão

 

As temáticas identificadas no estudo trouxeram à tona algumas lacunas no atendimento ao paciente alcoolista, entre essas a escassez de conhecimento dos profissionais e os seus valores morais que resultaram no atendimento omisso e defeituoso. Cabe ressaltar que os profissionais expressaram um interesse em melhorar a qualidade da assistência, porém apresentaram limitações quanto a administração e organização do sistema.

A implementação da intervenção breve mostrou efetividade no que se refere ao interesse e a autonomia do paciente para começar ou dar continuidade ao seu tratamento. Sendo assim, a IB se caracterizou como uma condição importante e diferenciadora para a efetividade e eficácia do acompanhamento e tratamento desse paciente. Todavia, notou-se que essa ainda é pouco desenvolvida nas unidades de atendimento primário e que as técnicas abordadas necessitam de capacitação.

A estigmatização é a principal temática abordada nas publicações sendo enfatizada como um obstáculo que os pacientes enfrentam. Há indícios de que a inadequada formação dos profissionais implica numa falha de perspectiva em relação ao paciente, em razão da influência de seus valores morais na avaliação do caso concreto. Dessa forma, esse cenário acaba contribuindo para falhas diagnósticas, resistência dos usuários e encaminhamento deficiente para tratamento.

Levando em consideração esses aspectos, concluiu-se que a assistência ao paciente alcoolista na atenção primária possui hiatos que não se limitam apenas a um contexto individual ou técnico, mas como um problema macrossocial, sistemático e multifacetado. Dessa forma, tem-se que o presente estudo deve aguçar o interesse na busca do aprimoramento do cuidado já que, apresentando características gerais da assistência, suas falhas e limitações, amplia o horizonte para outros estudos nessa área.

 

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