Enferm Bras 2021;20(4):478-90

doi: 10.33233/eb.v20i4.4726

ARTIGO ORIGINAL

Desafios da enfermagem na assistência às pessoas com tuberculose

 

Bruna Silva Teixeira*, Deborah dos Santos Machado*, Vitória Karolayne da Silva Sousa*, Fernanda Milani Magaldi, M.Sc.**, Monise Moreno de Freitas, M.Sc.**, Paulo Otávio Silicani de Oliveira***, Sara Rodrigues Rosado, D.Sc.****

 

*Graduada em Enfermagem pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), São Paulo, SP, **Enfermeira, Docente do Curso de Enfermagem da Universidade São Judas Tadeu - USJT, São Paulo, SP, ***Enfermeiro, Especialista em Saúde Pública pelo Centro Universitário São Camilo, Preceptor do Curso de Enfermagem da Universidade São Judas Tadeu (USJT), São Paulo, SP, ****Enfermeira, Docente do Curso de Enfermagem da Universidade São Judas Tadeu (USJT), São Paulo, SP

 

Recebido em 13 de abril de 2021; aceito em 27 de agosto de 2021.

Correspondência: Sara Rodrigues Rosado, Rua Jaci, 90/72, Chácara Inglesa, 04140-080 São Paulo SP

 

Bruna Silva Teixeira: brunasilvat22@gmail.com  

Deborah dos Santos Machado: deborahsmachado@gmail.com  

Vitória Karolayne da Silva Sousa: karolaynes376@gmail.com  

Fernanda Milani Magaldi: fernanda.magaldi@saojudas.br

Monise Moreno de Freitas: monise.freitas@saojudas.br  

Paulo Otávio Silicani de Oliveira: paulosilicani@hotmail.com

Sara Rodrigues Rosado: sara.rrosado@hotmail.com 

 

Resumo

Objetivo: Compreender os desafios da enfermagem na assistência às pessoas com tuberculose. Métodos: Estudo qualitativo, descritivo e exploratório, com dez enfermeiros com experiência na assistência às pessoas com tuberculose. A coleta de dados ocorreu através de entrevistas utilizando questões norteadoras, diário de campo e observação. Resultados: Identificaram-se duas categorias “Rede de cuidados da pessoa com tuberculose e as políticas públicas” e “Desafios na assistência de enfermagem à pessoa com tuberculose”, que destacam sobre os desafios na formação de vínculo entre usuário e enfermagem, a longanimidade do tratamento, a situação de vulnerabilidade como ponto que dificulta a adesão e os efeitos colaterais da medicação logo no início do tratamento. Conclusão: Os desafios enfrentados pela enfermagem durante a assistência às pessoas com tuberculose vão desde a captação e a formação de vínculo com usuário, adesão ao tratamento, além da falta de ações que visam a prevenção e promoção de saúde.

Palavras-chave: enfermagem; cuidados de enfermagem; tuberculose.

 

Abstract

Nursing challenges in caring for people with tuberculosis

Objective: To understand the challenges of nursing in assisting people with tuberculosis. Methods: Qualitative, descriptive and exploratory study with ten nurses with experience in assisting people with tuberculosis. Data collection took place through interviews using guiding questions, field diary and observation. Results: Two categories were identified "Network of care of the person with tuberculosis and public policies" and "Challenges in nursing care to people with tuberculosis", which highlight the challenges in the formation of a bond between user and nursing, the long-term treatment, the situation of vulnerability as a point that hinders the treatment and the side effects of medication early in treatment. Conclusion: The challenges faced by nursing during the care of people with tuberculosis range from the capture and formation of a bond with the user, treatment adherence, in addition to the lack of actions aimed at prevention and health promotion.

Keywords: nursing; nursing care; tuberculosis.

 

Resumen

Desafíos de enfermería en el cuidado de personas con tuberculosis

Objetivo: Comprender los desafíos de la enfermería en la asistencia a las personas con tuberculosis. Métodos: Estudio cualitativo, descriptivo y exploratorio, con diez enfermeros con experiencia en la asistencia a las personas con tuberculosis. La recolección de datos se llevó a cabo a través de entrevistas utilizando preguntas de orientación, diario de campo y observación. Resultados: Se identificaron dos categorías "Red de atención a la persona con tuberculosis y políticas públicas" y "Retos en la atención de enfermería a la persona con tuberculosis", que ponen de relieve los retos en la formación de un vínculo entre el usuario y la enfermería, el tratamiento a largo plazo, la situación de vulnerabilidad como punto que dificulta el tratamiento y los efectos secundarios de la medicación al inicio del tratamiento. Conclusión: Los retos a los que se enfrenta la enfermería durante la atención de las personas con tuberculosis van desde la captación y formación de un vínculo con el usuario, adherencia al tratamiento adherido, además de la falta de acciones dirigidas a la prevención y promoción de la salud.

Palabras-clave: enfermería; atención de enfermería; tuberculosis.

 

Introdução

 

A tuberculose (TB) continua sendo um grande desafio para a saúde pública no Brasil. Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, em 2019, foram diagnosticados 73.863 novos casos da doença no Brasil, sendo 17.355 registrados só no Estado de São Paulo [1]. Sua incidência está relacionada a fatores socioeconômicos, como as condições de habitação precária, o descaso pessoal com a saúde e aglomeração populacional [2,3].

A TB é uma doença infectocontagiosa transmitida pelo ar, causada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis [4]. O diagnóstico para o controle da TB deve ser de forma rápida e correta para interromper a cadeia de transmissão da doença [5]. O tratamento é feito por uma equipe multidimensional, desenvolvendo ações que garantam a continuação do cuidado, tratamento e redução da transmissão. Compete à equipe orientar de forma clara e objetiva sobre o uso regular de medicamentos, duração do tratamento e sua forma de transmissão [5].

A formação de vínculo com o usuário é fundamental para adesão do tratamento, pois ele se sente mais seguro, confiante e acolhido. É o momento que consegue sanar dúvidas sobre seu quadro clínico com o profissional de saúde [4].

Frente ao cenário atual e a visibilidade que o tema vem ganhando, assim como a quantidade de casos que são notificados e abandonados, identificou-se a importância do aprofundamento no assunto, para refletir sobre os desafios do enfermeiro na assistência às pessoas com tuberculose.

Diante do exposto, questiona-se: Quais desafios enfrentados durante a assistência às pessoas com tuberculose? Quais as dificuldades encontradas na formação do vínculo com estes usuários, no fornecimento de medicação e na adesão ao tratamento? As políticas públicas atendem às necessidades destas pessoas?

Desta maneira, o presente estudo tem como objetivo compreender os desafios da enfermagem na assistência às pessoas com tuberculose.

 

Material e métodos

 

Trata-se de estudo qualitativo, descritivo e exploratório, realizado com dez enfermeiros com experiência na assistência às pessoas com tuberculose. A amostra foi autogerada, isto é, quando os profissionais entrevistados indicam outros profissionais.

Como critério de inclusão adotou-se: enfermeiros, com experiência na assistência às pessoas com tuberculose e como critério de exclusão aqueles sem experiência na temática e outros profissionais de saúde.

O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa em Seres Humanos (CEP) da Universidade São Judas Tadeu CAE 33671920.0.0000.0089. Após aprovação pelo CEP, foi feito um contato com o primeiro profissional, por meio de conhecidos e agendada entrevista.

A coleta de dados foi realizada mediante entrevista individual com duração média de 30 minutos, através de plataforma virtual de preferência do participante e gravada por meio de vídeo e transcrito o áudio. A coleta de dados ocorreu no município de São Paulo, entre agosto e outubro de 2020.

Durante a entrevista, foram utilizados dois questionários, o primeiro contendo informações sociodemográficas, a fim de caracterizar a amostra e o segundo com questões norteadoras sobre assistência de enfermagem às pessoas com tuberculose.

As questões norteadoras estabelecidas inicialmente foram: Como esse usuário chega até você? Quais as dificuldades encontradas na formação do vínculo com estes usuários? Quais desafios você enfrenta durante a assistência às pessoas com tuberculose? Como você enxerga a adesão ao tratamento dessas pessoas? E o fornecimento das medicações via órgão responsável? Como você avalia as políticas públicas para estas pessoas?

Além da entrevista individual, foi utilizada observação não participante e o diário de campo do pesquisador. Para a análise de conteúdo indutiva foi utilizada a análise temática, que se trata de um método para identificar, analisar e relatar os temas, integrando dados de entrevistas, observação não participante e diário de campo. Este método organiza e descreve o conjunto de dados qualitativos com detalhes e interpreta os vários aspectos da questão de pesquisa [6].

Optou-se pela Análise Temática de Conteúdo [7], que consiste na divisão de três etapas, sendo elas: pré-análise, a exploração do material ou codificação e tratamento do resultado obtido/interpretação.

 

Resultados e discussão

 

A seguir são apresentadas a caracterização sociodemográfica dos dez enfermeiros participantes do estudo e, posteriormente, os resultados relacionados à assistência de enfermagem às pessoas com tuberculose.

Na Quadro I foram apresentadas a caracterização sociodemográfica dos enfermeiros participantes do estudo.

 

Quadro IEnfermeiros participantes do estudo, segundo faixa etária, sexo, estado civil, titulação e tempo de atuação na enfermagem, São Paulo/SP, 2020Fonte: dados da pesquisa


 

 

Participaram do estudo 10 enfermeiros, com média de idade de 41 anos, sendo cinco mulheres e cinco homens. Além disso, cinco (50%) eram especialistas em Saúde Pública e a média de tempo de atuação na enfermagem foi de 14 anos (Tabela I).

A partir dos relatos dos enfermeiros, emergiram duas categorias para este estudo: “Rede de cuidados da pessoa com tuberculose e as políticas públicas” e “Desafios na assistência de enfermagem à pessoa com tuberculose”.

 

Rede de cuidados da pessoa com tuberculose e as políticas públicas

 

A Atenção Primária à Saúde pode ser considerada como uma das portas de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, os acessos aos serviços de saúde podem estar relacionados com o atendimento às consultas agendadas e não agendadas, com as visitas domiciliares, com as campanhas e com a busca ativa dos usuários [8,9].

Assim, identificou-se através dos relatos que a integração da pessoa com tuberculose à rede de cuidados pode ocorrer através de busca ativa realizada pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e equipe de enfermagem nas residências de área de cobertura da Unidade Básica de Saúde (UBS)/Estratégia de Saúde da Família (ESF) ou pela busca dos usuários nas ruas, nos casos de pessoas em situações de vulnerabilidade.

 

“Olha tem vários meios dele chegar até nós, existe os sintomáticos respiratórios dentro de uma unidade básica, então a gente vai fazer a busca ativa de sintomáticos respiratórios através do pronto atendimento, das consultas médicas, das consultas de enfermagem e dos agentes comunitários”. P6

 

Quanto aos ACS, um estudo com enfermeiros e médicos, identificou que estes profissionais são o diferencial no combate à TB, pois representam o elo entre ESF e comunidade, realizam busca ativa, acompanham casos diagnosticados e em tratamento, auxiliam na investigação dos contatos, além de esclarecer a comunidade sobre modo de transmissão e prevenção da doença [10].

Além disso, existe a possibilidade de identificar a pessoa com tuberculose durante uma triagem de consultas realizadas na própria unidade de saúde ou até mesmo pelo comparecimento dos usuários ao serviço de saúde por demanda espontânea, após identificação ou piora de sintomas.

 

“Todo mundo que passa pela classificação de risco responde à pergunta: está tossindo? Há quanto tempo? E, dependendo do tempo dessa tosse, já é solicitado o BK”. P6

 “O paciente é identificado através da visita do agente de saúde, ou por uma consulta de rotina na unidade, ou aquele paciente que já está bem sintomático”. P4

 

Outra forma ocorre por meio de encaminhamentos de outros setores, como hospitais e ambulatórios, para a equipe de atenção básica realizar o seu acompanhamento.

 

“Outro meio é através dos hospitais, infelizmente a maioria dos pacientes está vindo através de hospitais”. P6

 

Depois de constatada a tuberculose através de exame laboratorial, é preenchida uma ficha de notificação para que a pessoa inicie o tratamento. Desta maneira, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) foi desenvolvido para identificar doenças transmissíveis, acompanhar os casos e tratamento, monitorar a evolução do paciente, planejar e intervir na disseminação destas doenças [11].

A pessoa com tuberculose passa a realizar o tratamento, que consiste em medicamentos antituberculosos (isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol) apresentados em dose fixa combinada (medicamentos associados em um só comprimido) ou separados [5]. Por se tratar de um programa consolidado e eficiente, foi possível observar através dos relatos que raras vezes ocorreram problemas com o abastecimento das medicações para tratamento contínuo da tuberculose nas Unidades Básicas de Saúde (UBS).

 

“Então toda vez que esse paciente chega, ele faz a tomada da medicação, quando tem algum problema de abastecimento eles fornecem para uma semana por exemplo, até o próximo abastecimento”. P6

“Na unidade básica eu estou há 10 anos e acho que só vi uma situação de ter que correr atrás de um remédio para outra unidade para remanejar”. P8

 

Mas nem sempre o usuário é assíduo quanto ao tratamento e em caso de abandono, a equipe da atenção básica tentará localizá-lo e fará novos exames para saber se houve resistência dos antibióticos. Um estudo descreveu que o abandono do tratamento é a principal causa de casos multirresistentes e da não obtenção de cura da doença [12]. Neste sentido, existem estratégias específicas para realizar a busca e acompanhamento destas pessoas.

 

“Existe um núcleo, na Supervisão de Vigilância em Saúde, específico para isso e que está de olho e nos ajuda bastante em relação ao tratamento de pacientes. Eles conseguem localizar pacientes que estão em tratamento em outros hospitais e acabam nos comunicando a respeito disso. É um programa que realmente funciona e faz a diferença!”. P6

“No caso do consultório de rua, a política pública é boa, porque temos uma equipe direcionada somente para eles. Então, nós temos hoje, todas as regiões de São Paulo. Se eu tenho um paciente desaparecido, vou colocar nesse sistema e provavelmente eles vão encontrar em algum lugar para reiniciar o tratamento”. P9

 

O consultório na rua é uma destas estratégias e foi criado para acolher usuários que estão em situação de vulnerabilidade, associada ao álcool, à marginalização, às drogas e sem moradia fixa, o que dificulta o acesso aos serviços de saúde. Os profissionais trabalham com ações de acordo com as particularidades de cada usuário, com o foco em construir e criar vínculos para adesão aos serviços de saúde [13].

Para evitar a situação de abandono e melhorar a adesão ao tratamento, o Ministério da Saúde oferece incentivos como a entrega de cesta básica e de vale transporte, servindo de estímulo para uma nutrição adequada e facilitando o meio de locomoção para que o usuário compareça ao Tratamento Diretamente Observado (TDO) [14].

Para alguns autores, o TDO é uma estratégia não só referente a tomada da medicação, mas para o acompanhamento e o seguimento do tratamento, que visa garantir que estes pacientes tomem os remédios diariamente e que sejam assistidos por um profissional [15].

 

“Eu considero que a política é essencial, se você deixar hoje em dia o paciente recebe cesta básica que é um incentivo. O paciente tem livre demanda para consulta, ou seja, ele não precisa agendar consulta. Ele tem a facilidade de acesso para o atendimento, tem a questão do vale transporte que também é fornecido para esses pacientes quando requer uma atenção mais intensa para ir para as especialidades”. P8

 

Neste contexto, é possível compreender na fala que a assistência de enfermagem, bem como a políticas públicas visam respeitar e garantir que os princípios do SUS sejam respeitados, como o acesso universal ao serviço de saúde, a assistência integral e que respeite cada indivíduo conforme a necessidade de cada caso (equidade) [16].

 

Desafios na assistência de enfermagem à pessoa com tuberculose

 

A formação do vínculo é ação que visa aproximação dos profissionais de saúde com o usuário e é através dele que surge a relação de confiança, coleta de informações importantes para o caso e o acompanhamento do tratamento.

 

“Quando você consegue trazer esses usuários da rede através da estratégia de saúde da família fica mais fácil para criar esse vínculo”. P5

 

Analisou-se através da fala de um dos participantes que a formação de vínculo pode ser considerada mais fácil quando esse usuário chega através da Estratégia Saúde da Família (ESF), pois possibilita uma maior proximidade entre equipe de saúde, cliente, família e o ambiente que o mesmo reside.

Desta maneira, a ESF tem se tornado referência no tratamento para TB, pois, ao identificar precocemente o doente, consegue aumentar a adesão ao tratamento através do vínculo entre usuário e equipe [17].

Ponto que não é observado nas falas a seguir, quando a enfermagem relata ter dificuldade na formação do vínculo entre equipe e paciente em situação de vulnerabilidade social e consumo de drogas.

 

“Outro dificultador é a questão da drogadição, muitos pacientes por serem usuários a imunidade acaba baixando e acabam desenvolvendo tuberculose, e ai esses pacientes, grande parte fica dias fora de casa e também compromete a questão do vínculo”. P10

 

Diário de Campo (21/08/2020): Para a participante 9, há dificuldade na formação de vínculo com essas pessoas por não possuírem residência fixa, pois muitas vezes se mudam de região para consumir álcool e drogas. Além disso, a participante 1 informou durante entrevista que o mesmo acontece com imigrantes que precisam fazer tratamento contra TB, pois eles iniciam o tratamento na UBS, mas muitas vezes acabam abandonando pelo fato de mudarem de residência ou até mesmo retornando para seu país (Diário de Campo, 30/06/2020).

Um estudo apontou que questões comportamentais, como o consumo de drogas e de álcool, são fatores que influenciam na adesão do tratamento, pois o paciente não pode ingerir bebida alcoólica enquanto fizer o uso da medicação [15].

Nesta perspectiva, foi observada, através do relato do participante 3, que a aceitação da doença pelo cliente também pode ser considerada como um fator dificultador para a formação de vínculo.

 

“A maior dificuldade que a gente tem em fazer o vínculo com esse usuário, é que o usuário não aceita que está com essa doença. Quando ele passa a aceitar que está com a doença ele cria um vínculo achando que você vai fazer tudo por ele e um pouco mais, quando você começa a dar alguma restrição, é onde eles se revoltam e acabam se afastando do tratamento”. P3

 

A formação de vínculo está relacionada à proximidade profissional e com o indivíduo, construído pelo atendimento não apenas aos aspectos biológicos, mas afetivos e de foro íntimo [18]. Assim, na fala anterior, foi observado que o paciente tem dificuldade na aceitação e nos limites impostos pela sua condição de saúde e acaba depositando suas frustrações no profissional de enfermagem e, com isso, prejudicando o vínculo com este profissional.

Em relação à adesão ao tratamento, este também foi um fator de destaque na formação de vínculo. No entanto, está mais relacionado ao tempo de tratamento e aos efeitos colaterais dos medicamentos do que a própria assistência de enfermagem. Corroborando com isso, um estudo identificou que 45% do abandono do tratamento estava relacionado ao tempo prolongado do uso da medicação e 40% em relação aos efeitos colaterais do medicamento [15].

 

“O maior desafio acho que é pelo tratamento ser muito longo, por ser seis meses de tratamento, acabam sumindo os sintomas e eles acham que está bom, melhorei estou bem, não vou passar pra mais ninguém e acabam abandonando”. P1

“O primeiro mês é fundamental para a formação desse vínculo porque nas primeiras semanas uns apresentam queixa por conta dos medicamentos. Quando passam essas duas semanas, ele começa a perceber que não está mais com queixas gástricas [...]depois a situação melhora com o vínculo com esse paciente só depois disso” P8

 

Neste sentido, as dificuldades no controle da TB foram a não aceitação do estado de doente e da terapêutica, tempo prolongado do tratamento, efeitos colaterais dos medicamentos, falta de rotina de tratamento e condições precárias de vida [19,20].

Para estimular essa adesão ao tratamento, o Ministério da Saúde programou a oferta de cestas básicas como contrapartida ao paciente. Segundo o Plano Nacional para o Fim da Tuberculose, as políticas sociais como oferta de vale transporte, lanche e cesta básica, melhoram o acesso à saúde e diminuem os riscos de falha terapêutica, principalmente com os doentes mais pobres [17,21].

Assim, os pacientes recebem o Tratamento Diretamente Observado (TDO) pela enfermagem na unidade de saúde e, em contrapartida, recebem estes benefícios.

 

“Toda vez que toma medicação ele assina. No final do mês, é verificado quantas vezes ele tomou a medicação para poder ter direito a cesta básica”. P6

“Para ter a certeza de que esse tratamento não vai prejudicar a vida dele, os primeiros 14 dias ele é afastado, não trabalha, então fica mais fácil criar um vínculo nesses 14 dias”. P4

 

Além dos benefícios sociais, a equipe de enfermagem conta com a ajuda dos familiares como estratégia de adesão ao tratamento. Foi identificada na fala a seguir que a família é um ponto facilitador na formação de vínculo e como consequência na melhoria de adesão ao tratamento pela pessoa com tuberculose.

 

“Se ele deixar de ir tomar naquele dia aí sim, você aciona [...]Você faz uma cobrança. E nesse ponto a família é importante, porque ela estimula esse indivíduo a não deixar mais o tratamento. [...] ficam os dois lados, para fazer a aderência dele”. P5

 

Neste contexto, é possível destacar que pouco se tem trabalhado sobre um dos principais pilares da atenção básica, que é a promoção em saúde e prevenção de doenças. Assim, a assistência de enfermagem referente à tuberculose ainda está muito focada nas questões curativistas, necessitando uma reflexão por parte dos enfermeiros no desenvolvimento de estratégias de educação em saúde, principalmente para as pessoas em situação de vulnerabilidade.

 

“Uma das coisas que eu pessoalmente vejo como dificuldade é: dentro da nossa cultura não existe a questão da prevenção, existe só a questão da parte curativa”. P5

 

Conclusão

 

Através deste estudo, foi possível identificar e compreender os desafios enfrentados pela enfermagem durante a assistência às pessoas com tuberculose, que vão desde a captação e formação de vínculo com usuário, seja através de busca ativa, triagem, encaminhamento, consulta e livre demanda; adesão ao tratamento pela pessoa com TB devido à longevidade do tratamento, efeitos adversos, não aceitação da doença ou até mesmo pela situação de vulnerabilidade, consumo de álcool e drogas; além da falta de ações que visam a prevenção e promoção de saúde.

Foi possível destacar como ponto facilitador a participação da família, a ESF, consultório de rua, fornecimento e abastecimento regular das medicações, incentivos de cesta básica e vale transporte para comparecimento às consultas, bem como efetivação das políticas públicas para estas pessoas.

Um fator limitante deste estudo foi relatar a experiência de enfermeiros de um cenário específico e local, o que não permite generalizar seus resultados para outras regiões. Mas que pode fundamentar novos estudos sobre a temática, comparar estas realidades e os desafios enfrentados pela enfermagem na assistência às pessoas com tuberculose nas demais regiões brasileiras.

 

Referências

 

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