Enferm Bras 2022;21(4):524-38
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Roda de conversa sobre
medicamentos em um centro de atenção psicossocial em Salvador/BA: relato de
experiência
Isabelle de Araújo Brandão*,
Bruna Santos de Oliveira*, João Batista de Brito Braga Alves*, Juliane Odette
de Borba Almeida*, Dejoan da Cruz Santos**, Ana
Carolina Pinto da Silva, M.Sc.***, Márcio Costa
Souza, D.Sc.****, Magno Conceição das Merces, D.Sc.*****
*Residente em Saúde
Mental do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde, Universidade do
Estado da Bahia/Departamento Ciências da Vida, Salvador/BA, **Farmacêutico de
um Centro de Atenção Psicossocial tipo II, Salvador/BA, ***Mestra do Programa de
Pós-graduação em Enfermagem e Saúde, Universidade Federal da Bahia,
Salvador/BA, Farmacêutico do Centro de Atenção Psicossocial, Salvador/BA,
****Fisioterapeuta, Universidade do Estado da Bahia/Departamento Ciências da
Vida, Salvador/BA, *****Biólogo, Enfermeiro, Universidade do Estado da
Bahia/Departamento Ciências da Vida, Salvador/BA
Recebido em 5 de junho de
2021; Aceito em 15 de maio de 2022.
Correspondência: Isabelle de Araújo Brandão, Rua Edístio Pondé, 115 Stiep 41770-395 Salvador BA
Isabelle
de Araújo Brandão: bellsbrandao3@gmail.com
Bruna
Santos de Oliveira: brufarma74@gmail.com
João
Batista de Brito Braga Alves: psicologojoaobatista.alves@gmail.com
Juliane
Odette de Borba Almeida: enfjulialmeida26@gmail.com
Dejoan da Cruz Santos:
dejoansantos@yahoo.com.br
Ana
Carolina Pinto da Silva: ana-carolina_pinto@hotmail.com
Márcio
Costa Souza: mcsouza@uneb.br
Magno
Conceição das Merces: mmerces@uneb.br
Resumo
Introdução: Considerando a Reforma Psiquiátrica e
o desenvolvimento dos psicofármacos que mudaram o modo de produzir cuidado em
saúde mental, por reduzirem a autonomia do sujeito, faz-se necessário discutir
o uso racional da terapia medicamentosa, pois atualmente ocupa lugar central no
tratamento dos usuários. Objetivo: Descrever a experiência das rodas de
conversa sobre medicamentos e seu planejamento em um Centro de Atenção
Psicossocial tipo II de Salvador/BA, a partir da vivência de profissionais
residentes. Métodos: Trata-se de um relato de experiência de quatro
residentes do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde, da
Universidade do Estado da Bahia, Núcleo de Saúde Mental, no período de abril a
agosto de 2019. Resultados: Ao total foram realizadas nove rodas de
conversa e nove reuniões de planejamento e avaliação, onde houve o
estabelecimento de espaço protegido para os momentos de escuta e reflexão,
promovendo maior segurança dos usuários para conversarem com seus profissionais
de referência sobre seu projeto farmacoterapêutico. Conclusão: Foi
possível observar melhor vinculação dos usuários e familiares com a unidade;
discutir terapia medicamentosa, uso racional dos medicamentos com toda a equipe
e fortalecer o SUS. Essa atividade acarretou também na ampliação da oferta do
profissional farmacêutico no serviço.
Palavras-chave: saúde mental; uso de medicamentos;
práticas interdisciplinares; atenção à saúde.
Abstract
Round-table discussion about drugs in a psychosocial care center in
Salvador/BA: experience report
Introduction: Considering the Psychiatric Reform and the
development of psychotropic drugs which causes changes in the way of producing
mental health care, for reducing the subject's autonomy, it is necessary to
discuss the rational use of drug therapy, as it currently occupies a central
place in the treatment of users. Objective: To describe the experience
of the round-table discussion about drugs, and its planning in a Psychosocial
Care Center type II from Salvador/BA, based on the experience of resident
professionals. Methods: This is an experience report of four residents
of the Multiprofessional Health Residency Program, at
the State University of Bahia, Mental Health Nucleus, from April to August
2019. Results: In total, nine round-table discussions and nine planning
and evaluation meetings were held, where there was the establishment of a
protected space for moments of listening and reflection, promoting greater
safety for users to talk to their reference professionals about their
pharmacotherapeutic project. Conclusion: It was possible to observe a
better link between users and family members with the unit; discuss drug
therapy, rational use of drugs with the whole team and strengthen the SUS. This
activity also resulted in the expansion of the pharmacist offer in the service.
Keywords: mental health; drug utilization; interdisciplinary
placement; health care.
Resumen
Rueda de conversación sobre medicamentos en
un centro de atención psicosocial en Salvador/BA:
informe de experiencia
Introducción: Considerando la
Reforma Psiquiátrica y que el desarrollo
de psicotrópicos provoca cambios en
la forma de producir atención en salud
mental, por reducir la autonomía del sujeto,
es necesario discutir el
uso racional de la farmacoterapia ya
que actualmente ocupa un
lugar central en el tratamiento de los usuarios. Objetivo: Describir
la experiencia de las ruedas de conversación sobre
medicamentos y su planeación
en un Centro de Atención Psicosocial tipo II de
Salvador/BA, a partir de la experiencia de los profesionales residentes. Métodos:
Este es un relato de experiencia de cuatro residentes del Programa de
Residencia Multiprofesional
en Salud, en la Universidad
del Estado de Bahía, Núcleo de Salud
Mental, de abril a agosto de 2019. Resultados: En
total se realizaron nueve ruedas de conversación y nueve reuniones de planificación y evaluación, donde
se estableció un espacio protegido para momentos de escucha
y reflexión, promoviendo
una mayor seguridad para
que los usuarios conversen con sus profesionales de referencia sobre
su proyecto farmacoterapéutico. Conclusión:
Se pudo observar un mejor vínculo entre usuarios y
familiares con la unidad; discutir la terapia con medicamentos, el uso racional
de medicamentos con todo el
equipo y fortalecer el SUS. Esta actividad
también propició la expansión de la oferta de profesionales farmacéuticos en el servicio.
Palabras-clave: salud mental; utilización de medicamentos; prácticas
interdisciplinarias; atención
a la salud.
A Reforma
Psiquiátrica Brasileira (RPB) é um processo amplo e complexo que visa orientar
a construção de uma rede de saúde mental, utilizando-se da estratégia da
atenção psicossocial para substituir o modelo manicomial. O redirecionamento da
assistência, dando preferência a serviços de base comunitária, torna-se então a
melhor forma de cuidar, a partir desses dispositivos [1]. Esse cuidado envolve
um olhar ampliado de saúde na perspectiva da pessoa, do território e da
intersetorialidade das políticas [2].
Essa
transição, porém, apresenta uma realidade em que o modelo psicossocial convive
ainda com o modelo biomédico, medicamento-centrado, no qual o consumo
exacerbado de psicotrópicos está intimamente relacionado com a produção de um
padrão sociocultural hegemônico, no qual a saúde é entendida como mercadoria.
Nessa lógica, médicos, usuários, indústria farmacêutica e agências reguladoras
estão envolvidas na corroboração da racionalidade psiquiátrica [3].
Desta
forma, a terapia medicamentosa ocupa lugar importante (muitas vezes central) no
tratamento, tornando-se uma das principais ofertas dos serviços de saúde
mental. Em alguns casos, esse foco no medicamento pode conduzir ao
“silenciamento” dos sintomas que, sem uma devida escuta, impede que o sujeito
se posicione em relação às próprias experiências e descubra novas maneiras de
lidar com o sofrimento. Os psicofármacos são inclusive de uso controlado pela
Portaria nº 344/98, do Ministério da Saúde, sendo possível observar que
inúmeros usuários fazem uso dos mesmos nos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS). Nesse contexto, é comum que o usuário se adapte a esse tipo de
tratamento, sem possuir, às vezes, recursos para questionar o modelo de cuidado
que lhe está sendo oferecido [4,5].
Por conseguinte,
os psicofármacos provocam mudanças no modo de produzir cuidado em saúde mental.
Esses medicamentos vêm sendo utilizados de modo a psiquiatrizar
a vida dos sujeitos. Qualquer sinal de mal-estar, tristeza, ansiedade,
angústia, ou até falta de felicidade acaba se tornando motivo para valorizar a
visão biológica do sofrimento psíquico, estimulando o uso da terapia
medicamentosa, desprestigiando assim outros modos de vida e de subjetivação
[6].
Essa
desagradável situação fere o princípio da autonomia do sujeito, pois cada um
deveria ser reconhecido no poder de decidir sobre o próprio cuidado. A decisão
da inclusão ou não do medicamento durante o tratamento precisa ser discutida
entre os atores sociais (profissional de referência, usuário e família) e os
riscos-benefícios devem ser esclarecidos nesse diálogo. Assim, define-se as
possibilidades do uso de acordo com as singularidades, e trabalha-se a
corresponsabilização do cuidado ao mesmo tempo [7]. Para atingir tal
emancipação, faz-se necessária a utilização de estratégias que objetivem o
engajamento dos profissionais e gestores do Sistema Único de Saúde (SUS). Uma
dessas estratégias é a promoção do uso racional de medicamentos, que é “quando
os pacientes recebem os medicamentos apropriados à sua condição clínica, em
doses adequadas às suas necessidades individuais, por um período de tempo
adequado e ao menor custo possível para eles e sua comunidade” [8]. Essas ações
são necessárias para garantir qualidade de vida dos indivíduos no que tange ao
processo saúde-doença.
Usar as
características da tecnologia leve (tecnologia das relações, com produção de
vínculo, diálogo, acolhimento, autonomização do usuário) é de suma importância
para enlaçar o encontro para o processo terapêutico, produzindo assim espaços
de singularidade e humanização [9,10].
Diante do
exposto, o objetivo deste estudo foi descrever a experiência das rodas de
conversa sobre medicamentos e seu planejamento com usuários e familiares em um
Centro de Atenção Psicossocial tipo II, no município de Salvador/BA.
Trata-se
de um relato de experiência, no qual quatro profissionais residentes (duas
enfermeiras, uma farmacêutica e um psicólogo), vinculados ao Programa de
Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade do Estado da Bahia,
Núcleo de Saúde Mental, realizaram rodas de conversa sobre medicamentos e o
planejamento das mesmas em parceria com o profissional farmacêutico da unidade.
Essa intervenção foi realizada através do uso de tecnologias leves entre os meses
de abril a agosto de 2019, em um CAPS II, localizado no município de
Salvador/BA. Para realização das rodas de conversa, os residentes contaram com
o respaldo técnico científico de seus preceptores e tutores.
No que
tange aos critérios de inclusão para participação das rodas de conversa, foram
elegíveis os usuários e seus familiares que estavam devidamente matriculados no
CAPS em questão e que faziam acompanhamento regular com os profissionais de
referência. O critério de exclusão baseou-se naqueles usuários que apesar de
matriculados não tinham vinculação com o serviço, pois era necessário
estabelecer um ambiente confiável para que os participantes se sentissem à
vontade para compartilhar sobre seu tratamento e conhecimentos, além disso,
foram excluídos aqueles que não estavam em condições emocionais/psicológicas no
momento das atividades.
As nove
rodas de conversa sobre medicamentos consistiram em encontros quinzenais com os
usuários e seus familiares no CAPS. A proposta de cada tema era construída
entre os residentes e o farmacêutico em reuniões de planejamento e avaliação
ocorridas durante a semana, de maneira intercalada (uma semana acontecia o
planejamento, na semana seguinte acontecia a roda de conversa, na outra semana
acontecia a avaliação e novo planejamento para a roda de conversa seguinte,
assim sucessivamente). As atividades desenvolvidas e os resultados obtidos
também foram discutidos nas reuniões técnicas semanais, abrindo-se a
possibilidade para o restante da equipe profissional do CAPS conhecer o
processo, sugerir temas e compartilhar percepções sobre a repercussão das rodas
de conversa no cuidado dos usuários.
Os temas
discutidos foram baseados nas necessidades identificadas no cotidiano do
serviço, como: a) muitos casos de tratamento centrado em medicamentos; b) casos
de polifarmácia; c) pouco conhecimento dos usuários sobre as diversas formas de
ação das substâncias no organismo, interações e finalidades; e) inexistência de
espaços formais para socialização e compartilhamento de experiências sobre o
uso de medicamentos (ou pelo menos espaços com esta intencionalidade
terapêutica mais explícita). Essas observações foram extraídas das experiências
de trabalho dos residentes e dos profissionais da unidade na relação com os
usuários. Como modo de registro dessa experiência, um diário de campo foi
utilizado tanto para definir/anotar os temas selecionados quanto para fichar os
encontros e os detalhes ocorridos em cada um deles.
A roda de
conversa foi escolhida como metodologia de trabalho pelos residentes em
conjunto com o farmacêutico do CAPS, por ser um tipo de intervenção grupal que
possibilita o compartilhamento de vivências, promovendo reflexões e
deslocamentos subjetivos. Constitui-se também como prática educativa, além de terapêutica,
pois o processo é mediado por momentos de escuta e silêncio, no qual os
sujeitos podem explorar suas experiências tanto internamente quanto ao
partilhá-las com o outro [11].
As rodas
de conversa tiveram como finalidade oferecer um espaço de escuta aos usuários e
familiares à respeito da terapia medicamentosa e seus efeitos subjetivos e
sociais; ofertar informações e orientações sobre os diversos tipos de
medicamentos, usos e interações, sanando dúvidas e compartilhamento de
experiências alternativas para lidar com os efeitos adversos dos medicamentos;
favorecer a apropriação dos usuários sobre o próprio projeto de cuidado;
fortalecer o vínculo dos usuários e familiares com os profissionais de
referência e a equipe do serviço e ampliar a participação do farmacêutico nas
atividades educativas da unidade.
Esse
trabalho não foi submetido ao comitê de ética em pesquisa por se tratar de um
relato de experiência dos próprios autores, porém obedece aos procedimentos
éticos (como o sigilo de pessoas envolvidas no compartilhamento das atividades,
atenção a não produzir riscos ou danos com o relato das reflexões) e o
reconhecimento de que contar a experiência dos residentes pode gerar
contribuições para a prática da saúde mental de maneira ampliada.
Ao todo
foram realizados 18 encontros, sendo nove rodas de conversa, nas quais houve a
participação de em média 12 a 15 pessoas cada, e nove reuniões de planejamento
e avaliação, apenas entre os residentes e o farmacêutico. As temáticas
abordadas foram diversas (interações medicamentosas, posologia, armazenamento),
buscando trocar conhecimentos de maneira lúdica com os participantes e
ajudá-los a compreender um pouco mais sobre sua farmacoterapia.
No
primeiro encontro foi feita a apresentação da roda de conversa sobre
medicamentos criando os pactos do grupo (como o respeito a vez/ordem de fala e
sigilo das informações compartilhadas), e em seguida foi discutida a diferença
entre remédio e medicamento, sendo o primeiro mais amplo, aplicado a vários
recursos terapêuticos, já o segundo mais específico, voltando-se para as
substâncias/preparações da indústria farmacêutica, mostrando a ideia de que a
terapêutica medicamentosa é uma das dimensões do tratamento no CAPS, e que se é
valorizada a troca de experiências em torno de outras ações que possuem função
de cuidado na vida dos usuários e familiares, como a participação nas oficinas
e grupos da unidade [8,12]. Para tal, diversos materiais foram utilizados, como
papel metro, cartolina, fita adesiva, figuras com atividades que podiam ser
consideradas terapêuticas ou ter função de cuidado na vida das pessoas, e
figuras com substâncias. Neste sentido, foi possível trabalhar a importância do
tratamento não medicamentoso e ponderar sobre a participação dos usuários nas
atividades do CAPS e não somente o uso dos medicamentos [12].
Na
segunda roda de conversa, as pactuações do grupo foram revistas e foi feita uma
rodada de apresentação, pois havia novos participantes. Em seguida foi exibida
uma lista com os medicamentos que aquelas pessoas costumam fazer uso regular e
foi pedido que cada uma refletisse um pouco sobre os pontos positivos (efeitos
terapêuticos) e negativos (efeitos adversos) que perceberam em relação ao uso
destes. Com a distribuição de papel picado (verde e vermelho), foi colocado à
vista de todos uma balança desenhada em uma cartolina para que eles a
utilizassem, de modo que ao final do processo foi possível visualizar que os
efeitos positivos prevaleceram na experiência do grupo.
Os
efeitos adversos foram discutidos, explicou-se que eles ocorrem como fruto da
interação de substâncias em nosso organismo e que são efeitos não desejados
durante o tratamento. Foi explicado também que no caso de algumas substâncias,
existe um tempo de adaptação do organismo até que o corpo sinta os efeitos
terapêuticos [13]. Por fim, foi perguntado o que as pessoas faziam para lidar
com tais efeitos adversos, experiências e estratégias foram compartilhadas para
superá-los. Surgiram falas como: “pedir ajuda de um familiar”, “tomar um outro
medicamento”, “assistir algo para distrair”, “conversar com colegas sobre os
sinais e sintomas”, “caminhar”, “dormir”, entre outros. Foi reforçada a
necessidade de cada usuário se apropriar em relação a sua farmacoterapia e
sobre seu projeto terapêutico, sem fazer mudanças bruscas no tratamento e
dialogar abertamente com os profissionais de referência.
Na
terceira roda de conversa, o uso dos medicamentos e as interações com alimentos
e outras substâncias foi discutido de maneira criativa. Foi montado um placar,
milhos foram desenhados, uma cartola foi produzida, garrafas de cerveja e leite
vazias foram usadas, o quiz “Show do Milhão” foi preparado com dez perguntas em
formato de casos e milho cozido foi distribuído na hora do lanche. O jogo e
suas regras foram apresentados (a cada rodada uma pergunta era lançada, os dois
grupos, divididos aleatoriamente, tiveram de 3 a 5 minutos para pensar em uma
resposta, marcando um ponto sempre que a resposta estivesse correta, ganhando
aquele que acertasse mais perguntas). Após a confirmação da resposta dos
grupos, os “especialistas” (o farmacêutico da unidade e a residente) entraram
em cena e explicaram os motivos de a resposta ser aquela, dúvidas foram sanadas
sobre o assunto [14].
Na quarta
roda de conversa, foi discutida a importância da regularidade de horários na
ingestão dos medicamentos para o sucesso da terapêutica. As ideias de intervalo
posológico e superdosagem/subdosagem foram
trabalhadas de forma didática, explicou-se o caminho que as substâncias
percorrem em nosso organismo até serem absorvidas e excretadas. Para tal, foram
utilizadas cartolinas coloridas, papel metro, copo descartável, corante de
alimentos e hidrocor. Foi colada na parede uma sequência de dois sóis e duas
luas representando dois dias inteiros consecutivos. Um voluntário foi convidado
a apresentar o percurso diário que fazia com o uso de algum medicamento. Foi
utilizada uma faixa que representou o tempo que o medicamento permaneceria
dentro do corpo, e então três cenários foram demonstrados, o primeiro, o
usuário utilizaria corretamente o medicamento; o segundo, tomaria antes do
tempo previsto, causando uma superdosagem por algumas horas; e o terceiro,
tomaria depois do tempo, causando um “vazio”, período em que o medicamento
deixa de fazer efeito. Nesse momento, foi realizada uma segunda demonstração,
utilizaram-se copos cheios de água e pó de suco artificial, com o objetivo de
mostrar a cor diferente da água a depender do nível de concentração do corante,
fazendo uma analogia com a concentração de medicamentos no organismo. Se a
intenção do tratamento é manter uma determinada concentração de substâncias a
fim de que se obtenha o efeito terapêutico, a mudança dessa concentração, para
mais ou para menos, pode afetar o tratamento, potencializando possíveis efeitos
adversos ou inibindo a ação terapêutica [15].
A quinta
roda de conversa tratou do “lugar do medicamento em minha vida”, foi aberto um
espaço de escuta sobre o processo de cuidado de cada participante (usuário ou
familiar), permitindo a elaboração de narrativas sobre a história de vida,
atravessada pelo processo de tratamento. Antes de começar com as histórias, foi
utilizada a dinâmica do semáforo, as pessoas escolhiam uma tira de papel que
representasse seu estado emocional naquele momento e, caso se sentissem à
vontade, explicariam o motivo de ter escolhido tal cor (verde simbolizando que
estavam bem, vermelho expressando que não estão bem e amarelo indicando um meio
termo entre esses estados). Após essa introdução, as demandas trazidas pelas
pessoas foram ouvidas e acolhidas, abrindo espaço para troca de experiências,
tentando conectar os elementos que surgiram ao longo do encontro. É importante
destacar as diferenças e aproximações entre as diversas vivências com o
processo de cuidado e o uso dos medicamentos, valorizando aquilo que é contado
por cada participante, legitimando o que sente, os desconfortos e os encontros
da caminhada [16].
Na sexta
roda de conversa, o objetivo foi tratar a diferença entre os medicamentos
tarjados e não tarjados, explicou-se os motivos de alguns deles necessitarem de
prescrição médica e possuírem um tempo estipulado para retirada. Então, uma
pergunta disparadora foi lançada: “Por que a necessidade de identificação das
caixas com diferentes cores para os medicamentos controlados?” Foram
demonstradas as principais diferenças entre um produto tarja preta, vermelha e
os Medicamentos Isentos de Prescrição (MIPs),
explicando os rótulos das mesmas. Depois disso, foi executada uma encenação das
regras e exigências na dispensação de tais produtos: quantidade máxima por
receita, validade da receita, documentos a serem apresentados, simulando um
atendimento na farmácia [17]. Foi citada a existência de uma Portaria que
regulamenta o comércio farmacêutico desses tipos de fármacos e que estipula que
a dispensação só pode ser realizada com uma quantidade de medicamentos
suficientes para no máximo dois meses de uso [5]. Para finalizar, foram
esclarecidos conceitos de dependência, tolerância, desmame e efeito rebote
previstos com o uso dos tarja preta, assim como também aqueles efeitos
comprovadamente evidenciados com alguns de tarja vermelha, bem como tirar as
dúvidas que surgissem ao longo do encontro [18].
Na sétima
roda de conversa, foi discutida a diferença entre os medicamentos genéricos,
similares e de referência, sendo apresentadas as diversas formas farmacêuticas
e os modos de armazenamento dos medicamentos. Para tal, foram usadas impressões
de imagens de caixas de medicamentos e cartolina com o desenho de uma casa
(sala, quarto, banheiro e cozinha). Nesta, houve a participação especial da
oficineira e de uma guarda municipal que atuava no serviço, formada em Pedagogia,
que auxiliou com a temática através do método do letramento [19]. Foram
apresentadas as principais formas farmacêuticas (comprimido, cápsulas, xarope,
injetáveis e suspensão) e a forma de utilização de cada uma. No que se refere
ao acondicionamento dos medicamentos, foi perguntado às pessoas o lugar da casa
onde costumam armazená-los e foram explicitadas as condições necessárias para
que os mesmos tenham sua durabilidade e segurança garantidas (proteger da luz,
do calor, da umidade, do manuseio de crianças). Por fim, foi explicado sobre
validade e observação da data durante a aquisição e uso dos medicamentos (tomar
aqueles que irão vencer primeiro, não tomar os já vencidos) [20].
A oitava
roda de conversa teve como finalidade discutir sobre o uso das plantas
medicinais no cotidiano dos usuários, apresentando os métodos de preparo
destas. Como ingredientes foram utilizados extrato fresco ou seco de plantas
como erva cidreira, capim santo, gengibre, alho, mel e abacaxi. As perguntas
disparadoras, a fim de mobilizar o debate foram: “Vocês utilizam plantas
medicinais? Quais? Com que finalidade? Acham que é mais seguro usar as plantas
ou os medicamentos?”. Neste momento foi abordado o fato de as plantas
medicinais terem substâncias que possuem ação farmacológica e que podem
interagir com medicamentos, anulando ou potencializando seus efeitos. Foi
explicado também a diferença entre o uso dos chás, dos medicamentos
fitoterápicos e alopáticos. Os chás não possuem quantidade mensurável de
substâncias, sendo difícil haver um controle específico da quantidade que está
sendo ingerida e absorvida pelo organismo, já os fitoterápicos possuem um
controle, pois existem procedimentos (farmacopeia) que garantem a extração do
princípio ativo das plantas, isolando-a de outras substâncias e controlando a
quantidade [21]. Foram apresentadas as principais plantas utilizadas no
dia-a-dia, discutiu-se sobre essas possíveis interações e toxicidade. Por fim,
foi falado sobre os métodos de preparo de chás usando as técnicas de decocção,
infusão, lambedor e suco.
A nona e
última roda de conversa teve como objetivo tratar do
armazenamento/acondicionamento dos medicamentos. Como material ilustrativo
foram dispostas caixas de remédios, os próprios blisters e caixinhas
organizadoras de comprimidos. Foi perguntado aos participantes como guardavam
os medicamentos que fazem uso diário e aqueles que não tem tanto uso, a famosa
“farmacinha” que algumas pessoas gostam de ter à mão em suas residências. Desta
forma, foi explicado que a melhor alternativa é deixar o comprimido no blister
onde veio, cortando aqueles que irão utilizar no dia/semana, lembrando de
anotar a data de validade. Foi relembrado que o calor, umidade e sujeira podem
danificar as propriedades dos comprimidos e por isso era importante não retirar
o medicamento da embalagem na hora de colocar nas caixinhas organizadoras. Foi
possível perceber mudanças de hábitos dos usuários em relação ao uso dos
medicamentos, pois em cada encontro demonstravam satisfação em mostrar que
haviam aprendido o conteúdo discutido, contando o antes e depois das trocas de
conhecimento.
Foi
possível perceber que conforme o tempo passava os usuários se envolviam/se
dispunham a participar e contar um pouco mais de sua trajetória de vida com a
terapia medicamentosa. Houve então o estabelecimento de um espaço de escuta a
cada participante e o processo de confiança deles para com os residentes, com
compartilhamento de experiências. Buscou-se conectar os sentimentos às falas e
vivências, tanto individuais como coletivas, escutando o tom empregado nas
palavras, na tentativa de compreender o contexto no qual aqueles usuários
estavam inseridos e como os medicamentos influenciavam nessa trajetória [22].
Outro
ponto observado se referiu a alguns usuários sentirem-se mais à vontade para
negociar e discutir seu Projeto Terapêutico Singular (PTS) e farmacoterapia com
os profissionais de referência e também no âmbito da consulta médica. A partir
da abertura do diálogo, os usuários puderam ressignificar o valor do
medicamento, compreendendo que tem sim relevância no controle de sinais e
sintomas de sua experiência de sofrimento, mas reconhecendo a importância de
outras formas terapêuticas no seu processo de acompanhamento e cuidado no CAPS.
Essas práticas envolvem ações intersetoriais, educativas, grupais e sanitárias
que possibilitam a emancipação dos sujeitos, tornando-os protagonistas do
cuidado [23].
No que
tange às principais questões trazidas pelos usuários e seus familiares no
decorrer das rodas de conversa pode-se citar: a dificuldade de adesão ao
tratamento medicamentoso por conta dos efeitos adversos; o embaraço da gestão
da rotina no uso dos medicamentos quando há o uso de muitos fármacos de forma
concomitante, caracterizando a polifarmácia (muitos apresentam acompanhamento
para diversas outras patologias, como, por exemplo, tratamento para
hipertensão, diabetes, hipercolesterolemia); e dúvidas sobre interações
medicamentosas com alimentos ou outras substâncias.
Com isso,
é de suma importância que se tenham ações educativas no CAPS, adequadas às
necessidades de distintos grupos. Muitas pessoas, nessa experiência, possuíam
baixo nível de escolaridade e, por vezes, demonstravam dificuldades para ler e
compreender os conteúdos escritos nas bulas de medicamentos (que é um
conhecimento específico e um texto especializado, pouco acessível) e no
receituário médico. Devido a esse contexto, foram utilizadas estratégias
comunicativas diversas para contemplar um público mais amplo, pensando na
linguagem como instrumento de democratização da informação para os usuários, a
fim de promover uma melhor qualidade de vida para os mesmos [24].
No que se
refere às reuniões preparatórias para as rodas de conversa
(planejamento/avaliação), foi possível perceber o deslocamento do profissional
farmacêutico para fora da farmácia e da função de distribuição dos
medicamentos. Houve a ampliação da oferta pelo mesmo, que antes dizia não se
achar capaz de realizar esse tipo de metodologia grupal. Ademais, foi assimilado
o conceito de atenção farmacêutica com as rodas de conversa, pois oportunamente
foi visualizada a interação direta do farmacêutico com os usuários e
familiares, tendo em vista uma gestão eficiente da medicação, ou seja, fazer o
uso racional da farmacoterapia e obter resultados delimitados e palpáveis,
pretendendo alcançar a melhoria da qualidade de vida destes. Esta interação
deve compreender as vontades dos sujeitos, respeitadas suas especificidades
biopsicossociais, tendo a integralidade como enfoque das ações de saúde [25].
Ao longo
das rodas de conversa e após a conclusão das mesmas, foi possível observar uma
maior vinculação dos usuários e familiares com a unidade, visto que a maioria
deles continuou frequentando os encontros quinzenais e as consultas tanto
médicas quanto com seus profissionais de referência, mostrando que houve, de
certo modo, um empoderamento desses sujeitos.
Percebeu-se
durante o desenvolvimento das rodas de conversa que os usuários trouxeram discursos
e queixas que não se apresentavam de forma rotineira durante uma consulta. Isso
pôde demonstrar o distanciamento que ainda ocorre na relação
usuário-profissional. Afinal, o lugar de suposto saber e detenção de poder do
profissional ainda é amplamente disseminado entre as equipes de saúde. Foi possível ainda notar que a adesão à terapia
medicamentosa e a prevenção do uso incorreto de medicamentos são possíveis
quando são criados espaços de diálogo que respeitem as diferenças e favoreçam a
construção da autonomia dos sujeitos. Além do mais, essa discussão sobre uso
racional é de toda equipe profissional, não somente do psiquiatra ou do
farmacêutico.
Como
limitação do estudo cita-se o desafio em dar continuidade à
ações como esta dentro da rotina do serviço, baseado na (in)disponibilidade dos
profissionais, dada a complexidade do processo de trabalho e as inúmeras
demandas do serviço, bem como a dificuldade de aprofundar mais a discussão
dessa temática com a equipe, visto que isso exigiria a construção de espaços de
Educação Permanente. Seria importante realizar novos estudos para poder
mensurar a repercussão das rodas de conversa no serviço.
Essas
ações apoiam a promoção da saúde, divulgando e discutindo o conhecimento entre
profissionais, usuários e familiares, colaborando para o fortalecimento da
efetividade do PTS de cada paciente. Ademais, esse tipo de trabalho evidencia o
papel que as Residências Multiprofissionais em Saúde podem cumprir no
fortalecimento do SUS.
Conflitos
de interesse
Não há
conflito de interesse.
Fontes
de financiamento
Não houve
fonte externa de financiamento.
Contribuição
dos autores
Concepção
do projeto e desenho da intervenção: Brandão IA, Oliveira BS, Alves JBBB, Almeida
JOB, Merces MC, Santos DC; Desenvolvimento da
intervenção e registro de informações: Brandão IA, Oliveira BS, Alves JBBB,
Almeida JOB, Merces MC, Santos DC; Análise das
informações: Brandão IA, Oliveira BS, Alves JBBB, Almeida JOB, Merces MC; Redação do manuscrito: Brandão IA,
Oliveira BS, Alves JBBB, Almeida JOB, Merces MC,
Silva ACP, Souza MC; Revisão crítica: Brandão IA, Alves JBBB, Merces MC, Silva ACP, Souza MC