Enferm Bras 2021;20(2):124-129
EDITORIAL
Ciência
e espiritualidade em saúde: a urgência desafiada pelos tempos de pandemia
Naires
Roger dos Reis*, Zaida Aurora Sperli Geraldes Soler**
*Administrador,
docente nas áreas de gestão de pessoas e saúde e segurança do trabalho, Mestre
no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Faculdade de Medicina de São José
do Rio Preto (FAMERP), SP, Brasil, **Obstetriz, Enfermeira, Livre-Docente,
docente e orientadora da graduação e pós-graduação lato sensu e stricto sensu
da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), SP, Brasil
zaidaaurora@gmail.com
Este Editorial toma por base aspectos discutidos pelos
autores na dissertação de mestrado intitulada “(Des)Caminhos entre ciência,
saúde e espiritualidade: inflexões e reflexões em tempos pandêmicos”,
defendida em 06 de maio de 2021, junto ao Programa de Pós-Graduação em
Enfermagem – Mestrado Acadêmico – da Faculdade de Medicina de São José do Rio
Preto-FAMERP, sendo o primeiro autor o mestrando e o segundo, a orientadora.
O ano de 2020 mudou a forma humana de existir no mundo,
surpreendido pela declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS), em março
daquele ano, como pandemia causada por um novo coronavírus (SARS CoV-2), de
vertiginosa transmissibilidade, indo a representar até hoje impacto de
Emergência na Saúde Pública. A doença foi chamada de COVID-19, por ter sido
descrita em novembro/dezembro de 2019, na China, de onde se transmitiu
rapidamente para o mundo.
De início acometeu pessoas de 19 países, todos com história
de visita a uma região da China ou de chineses visitando os países com pessoas
diagnosticadas com sintomas da doença, expandindo-se praticamente para todo o
mundo. Antes que os países se dessem conta da gravidade da situação, a
contaminação em massa da população e a falta de conhecimento sobre a doença,
deixaram os sistemas de saúde sobrecarregados, sendo necessária a implementação
de medidas preventivas e de controle, que afetavam negativamente as dimensões
de bem-estar físico, mental, social, espiritual e econômica das pessoas, com
deterioração da qualidade de vida [1,2].
E como abordar a espiritualidade neste contexto pandêmico?
Acreditamos que na relação com o sagrado, no comportamento ético-humanístico,
empatia, humanização, alteridade, sensibilidades, resiliência, moralidade,
forma de cuidar e de ser cuidado, enfim, o que transcende a dimensão física da
existência humana. Desde o final do século XX cresceram as publicações sobre a
temática espiritualidade, mostrando conexões conflituosas entre
religião/espiritualidade (R/E), com a ciência, com a atuação em saúde de forma
multiprofissional [1].
O Brasil ficou destacado em 5º. lugar no cenário
internacional de pesquisas e publicações sobre R/E, atrás apenas dos EUA, Reino
Unido, Canadá e Austrália, tendo como principais áreas a medicina, seguida da
enfermagem e da psicologia [3]. A Associação Mundial de Psiquiatria e de modo
geral os profissionais da área da saúde reconhecem que a religiosidade/espiritualidade
têm implicações significativas para prevalência, diagnóstico, tratamento,
desfechos clínicos e prevenção de doenças e que levam a um aumento da motivação
para o enfrentamento e superação de crises [4].
Estimular a disrupção de antigos
paradigmas é o princípio da essência científica, se não o fosse não
possibilitaria o surgimento de neologismos como a biotecnociência
que é a interdisciplinaridade das ciências da saúde e de tecnologias e das suas
implicações. Busca-se então um equilíbrio não reducionista, tanto do âmbito da
ciência quanto das frentes religiosas, desafiando verdades estáticas e dando
vazão ao potencial criativo tipicamente humano [1,5,6].
A visão limitada ao paciente por um determinado diagnóstico
e sondagem entre correlação de não-doença, já se faz ultrapassado, pois tal ser
humano em questão possui relações históricas com a abstração do que considera o
divino e da conexão destes fatores divinos com sua biologia [1,7]. Em suma, a
ideia reflexiva sobre a importância da religiosidade e suas subjetividades
trazem consigo valores morais favoráveis às relações humanas se respeitada a
sua alteridade, também favorecem o autoconhecimento que possibilita melhores
interações entre a busca de soluções para os problemas pessoais frente a
sociedade [1,8].
A inquietação sobre afirmações do não cientificismo em
saúde do termo espiritualidade remete-nos à busca do elo perdido entre ciência
e espiritualidade e exige a quebra de paradigmas, e retorno a estudos e métodos
que deram origem aos conhecimentos que outrora ainda não eram concebidos como
científicos [9]. Em tempos pandêmicos e em situações de grandes adversidades, a
espiritualidade é um fenômeno estratégico que pode ajudar as pessoas a
ressignificar suas atitudes, mudando certos comportamentos, para melhor
enfrentamento do sofrimento associado a tais situações [10].
Em cenários de crise, o ser humano busca na fé uma forma de
enfrentar o sofrimento e dor que podem vir, precisa mudar e se adaptar a novas
situações, tornando-se melhores, para si, para o outro e para o mundo. A
pandemia trouxe impactos na saúde e implicações psicológicas, como transtorno
do pânico, ansiedade, estresse e depressão. Como estratégia de enfrentamento,
os estudos apontam para a importância do apoio social, emocional, escuta ativa;
do uso da espiritualidade aliada à fé e esperança; o olhar para dentro de si;
para a alteridade; para a compaixão, para o Sagrado, para Deus [1,11,12,13,14,15,16].
As práticas tradicionais remetem ao respeito à
subjetividade e ao acolhimento de práticas milenares culturais e populares que
já se vê incorporado no Ocidente., que aportam valores como cuidado, zelo,
afeição, cordialidade, compaixão. Tais práticas objetivam aliviar o sofrimento
alheio e a promoção do bem-estar, além de ajudar a evitar estados mentais
danosos, como a raiva, o orgulho e a fixação em pensamentos negativos [1,17].
Observamos no que é divulgado nas publicações e nas mídias
de todo mundo, assim como assistimos no Brasil, que a COVID-19 tem impactos
para a saúde física, emocional e social, individual e coletiva, mas também
aproxima os indivíduos da fé religiosa, constatando-se um impacto significativo
nas práticas de rituais de luto, decorrente da impossibilidade de contato antes
e depois da morte. A COVID-19 revelou o apego da grande maioria das pessoas a
diferentes formas de espiritualidades religiosas, como forma de enfrentamento
existencial, a observância da fragilidade humana e ações de compaixão e
solidariedade aos que sofrem as consequências deste contexto pandêmico [18]. O
isolamento afastou a convivência entre doentes e familiares, e a assistência
espiritual, principalmente no cuidado de doentes mais graves e seus familiares,
pode ser um suporte e recurso de enfrentamento à epidemia e ao questionamento
existencial acerca do sentido da vida em contextos pandêmicos, de calamidades e
catástrofes [1,6].
A vinculação de atenção em saúde e espiritualidade pode ser
evidenciada em práticas de empatia e humanização, como alternativas criativas
dos profissionais da saúde em acolher os doentes, no sofrimento humano que
ambos vivenciam, tentando amenizar a dor e a impotência ante tal doença ainda
sem cura efetiva. Tais práticas de cuidados são vistas principalmente entre
trabalhadores da enfermagem, como nas táticas de uso de luvas com água morna
para dar sensação de contato; improvisação de rede para movimento de balanço;
músicas no ambiente e até músicas que o paciente gosta, entre outras. Ainda, via de regra as pessoas fazem e pedem orações, dentro e fora
dos hospitais, fortalecendo a esperança e festejando a vitória de pacientes que
saem dos hospitais curados [1].
A exaustiva leitura de publicações direta ou indiretamente
ligando espiritualidade, ciência e saúde permitiu-nos inferir que: a ciência
passa a admitir cada vez mais ideias antes rejeitadas; aponta novas conexões
entre ciência espiritualidade; a ciência não nega o que desconhece, só não o
explica, necessitando de novos estudos e pesquisas; tem evoluído pesquisas em
relação à biotecnologia, e novos campos de estudo como o biofóton,
nanocampo e de fenômenos quânticos; as publicações
científicas levam a crer que há uma conexão entre ciência e espiritualidade na
condição de pandemia e de atenção em saúde. Em ciência sempre há muito que
estudar e pesquisar, buscando evidências com a ampliação e aprofundamento de
bases metodológicas.
Há mais
mistérios entre o céu e a terra do que a vã
filosofia dos
homens possa imaginar.
William
Shakespeare