Enferm Bras 2021;20(4):448-51

doi: 10.33233/eb.v20i4.4929

EDITORIAL

Ensino da Ética da Virtude em cursos de graduação em Enfermagem no Brasil: necessário refletir nesses tempos de pandemia

 

Juliana Dias Reis Pessalacia*

 

*Enfermeira, Doutorado e Pós-Doutorado em Enfermagem na temática da Bioética, docente de graduação, orientadora e coordenadora de curso de pós-graduação em Enfermagem

 

Correspondência: juliana@pessalacia.com.br

 

O avanço científico e tecnológico, atrelado ao emergente pluralismo social tem imposto desafios ao ensino de ética e bioética em cursos da área de saúde. A falta de consenso ético, pautado em modelos e teorias relativistas, desafia o debate e o exercício do julgamento moral acerca de questões de ordem prática na atuação dos profissionais. Considerando-se que a ética busca a reflexão prática com objetivo de balizar as ações humanas, torna-se necessário o estabelecimento de premissas para o entendimento do julgamento moral. Nesse contexto, a ética da virtude é um referencial teórico útil para orientar as ações dos profissionais de enfermagem.

A ética da virtude tem sua origem na filosofia grega clássica com Aristóteles [1], o qual considera a virtude como o meio-termo, a mediana entre os vícios em excesso e em deficiência. Além disso, compreende-se que virtudes podem ser ensinadas, através do treino e exercício, buscando-se o bem comum. Deste modo, a partir do treino, a pessoa encontra-se apta para a escolha racional de ações virtuosas. O filósofo destaca nove virtudes essenciais: sabedoria; prudência; justiça; fortaleza; coragem; liberalidade; magnificência; magnanimidade; temperança.

No campo da Psicologia, tem-se desenvolvido a psicologia científica da virtude, destacando-se a Classificação VIA de Forças e Virtudes de Caráter, que consiste em 24 forças de caráter que foram conceituadas como reflexos de seis virtudes: Sabedoria e Conhecimento; Coragem, Humanidade, Justiça, Temperança e Transcendência [2]. Trata-se de um modelo que tem avançado, buscando-se reconhecer seu potencial para uma ciência psicológica acerca da natureza da virtude. Um estudo recente [3] propôs um modelo de sabedoria prática a partir do uso combinado de três forças de caráter (prudência, julgamento e perspectiva), o qual maximiza a eficácia na resolução de problemas e tomada de decisões. Assim, a ética de virtude pode auxiliar o enfermeiro a tomar decisões virtuosas em circunstâncias complexas, ambíguas e incertas da prática profissional [3].

Contudo, o séc. XX marca uma relativização acentuada dos fundamentos da moralidade, sendo as virtudes tradicionais, cada vez mais, substituídas por valores subjetivos. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche argumenta a necessidade de substituição dos valores tradicionais, por representarem a moral judaico-cristã, sendo esta proposta descrita em sua principal obra protagonista desta mudança de paradigma: a Genealogia da Moral [4]. Neste contexto, torna-se urgente o resgate de modelos cognitivistas de ensino, tais como a Ética da Virtude, a fim de formar profissionais com competência ética para a aplicação apropriada e equilibrada das virtudes em situações e cenários específicos.

Aristóteles [1] distingue a virtude em dois tipos: a intelectual (que depende mais do ensino) e a moral ou ética (que resulta do hábito). A ética da virtude considera a necessidade do cultivo das virtudes para que se possa compreender e justificar as decisões profissionais. Sabe-se que o cultivo das virtudes contribui para o desenvolvimento de habilidades e atitudes para o pensamento crítico e, consequentemente, para o cuidado de enfermagem. No ambiente educacional, o desenvolvimento de virtudes em estudantes de enfermagem deve ser uma temática de grande relevância para os professores, considerando-se que os alunos devem ser treinados para desenvolver as mesmas [5].

Tradicionalmente, a ética tem sido concebida enquanto disciplina de cunho puramente teórico nos currículos de Enfermagem, contudo, os diferentes dilemas que emergem da prática profissional exigem o ensino de uma ética mais aplicada, principalmente considerando-se o surgimento da Bioética. Portanto, a ética não pode restringir-se ao estudo teórico, mas sim enquanto reflexão de ordem prática [6].

A virtude relaciona-se ao desenvolvimento da ética, do caráter da pessoa, estando consequentemente ligada à disposição para o cuidar. Entende-se que o ensino de virtudes na formação do enfermeiro prepara o profissional para o agir orientado pela razão e para a busca do bem, do bom na tomada de decisão ética em situações da prática [7].

Vale ressaltar que a ética da virtude rejeita o uso de uma linguagem deontológica, apontando-se o que é "certo" ou 'errado', tal como abordado na maioria das disciplinas voltadas para o ensino de ética no Brasil. Os especialistas em ética da virtude justificariam, por exemplo, que não se deve mentir para alguém, não porque seja 'errado', 'antiético' ou que isso leve à quebra de uma regra moral, mas simplesmente pelo fato de ser ‘desonesto’ [8].

Um estudo [9] sobre o pensamento ético de enfermeiras mostrou que 32 das 33 enfermeiras participantes consideram a ideia de virtudes como um conceito central na ética do cuidar. Elas nomearam as virtudes que consideram importantes para o agir ético em enfermagem, sendo mencionadas: o amor compassivo (compaixão), a responsabilidade e a veracidade ou honestidade, como as principais.

A Compaixão tem sido considerada o maior indicador de cuidados de saúde de qualidade de acordo com pacientes e familiares, sendo conceituada como uma resposta virtuosa e intencional de compreensão das necessidades da pessoa, com objetivo de amenizar seu sofrimento. Neste sentido, recomenda-se que os diferentes aspectos desta virtude sejam contemplados na formação do enfermeiro [10].

A Responsabilidade pode ser de uma pessoa ou entidade, sendo definida como a qualidade de ser legalmente obrigado perante o outro ou a sociedade, estando sujeito a punição criminal [11]. As responsabilidades do profissional de enfermagem envolvem diferentes aspectos, desde o compromisso com as ações de prevenção, promoção e recuperação da saúde no contexto do cuidar, até a responsabilidade para com a vida humana e em sociedade, de forma abrangente.

A Veracidade ou Honestidade em saúde contempla a comunicação abrangente, precisa e objetiva de informações, bem como a forma como o profissional promove a compreensão do paciente ou do sujeito [12]. O compromisso com a verdade tem sido um tema muito abordado na atualidade, contudo, a transmissão de uma notícia difícil, por exemplo, deve partir de uma relação profissional-paciente suficientemente empática para que se possa compreender o melhor momento e forma de transmissão.

Outra virtude que se destaca em meio ao contexto de risco e medo decorrente da pandemia da Doença de Coronavírus-2019 (COVID-19) é a Coragem. A mesma é compreendida como o grau apropriado de assumir riscos, a falta dela se caracterizaria como covardia e o excesso como imprudência [13]. A enfermagem tem sido protagonista de um dos cenários mais difíceis da história, exigindo-se de muitos profissionais, principalmente no período inicial de pandemia, coragem e compromisso para exercer a profissão, lançando mão das devidas medidas de proteção, em meio a tantas incertezas e riscos.

Contudo, no atual contexto, observa-se que o ensino de ética e bioética nos cursos de graduação em Enfermagem no Brasil ainda é pautado em modelos deontológicos [14] ou a partir da ênfase em modelos e teorias éticas que ressaltam a autonomia individual, em que as pessoas buscam elevar seus ideais pessoais acima da moralidade comum. Nesta conjuntura, não é de se admirar que estejamos vivendo uma urgente necessidade de abordagem da ética das virtudes na formação do profissional enfermeiro [6]. Ainda mais nesses tempos de crise pela pandemia e questões políticas, no Brasil

 

Referências

 

  1. Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret; 2015.
  2. Peterson C, Seligman MEP. Character Strengths and Virtues: A Classification and Handbook. Washington, DC: American Psychological Association; 2004.
  3. McGrath RE, Brown M. Using the VIA Classification to Advance a psychological science of virtue. Front Psychol 2020;11:565953. doi: 10.3389/fpsyg.2020.565953 [Crossref]
  4. Nietzsche F. Genealogia da moral. Traduzido por Sousa PC. São Paulo: Companhia das Letras; 2009.
  5. Falcó-Pegueroles A, Rodríguez-Martín D, Ramos-Pozón S, Zuriguel-Pérez E. Critical thinking in nursing clinical practice, education and research: From attitudes to virtue. Nurs Philos 2021;22(1):e12332. doi: 10.1111/nup.12332 [Crossref]
  6. Nunes-Neto N, Conrado DM. Ensinando ética. Educ Rev 2021;37: e24578. doi: 10.1590/0102-469824578 [Crossref]
  7. Näsman Y, Nyholm L. The movement of virtue from ethos to action. Nurs Philos 2021;22(2):e12339. doi: 10.1111/nup.12339 [Crossref]
  8. Armstrong AE. Towards a strong virtue ethics for nursing practice. Nurs Philos 2006;7(3):110-24. doi: 10.1111/j.1466-769X.2006.00268.x  [Crossref]
  9. Näsman Y, Lindholm L, Eriksson K. Caritativ vårdetikvårdandets ethos uttryckt i vårdares tänkande och handlande. Vård i Norden 2008;28(2):50-2. doi: 10.1177/010740830802800212 [Crossref]
  10. Sinclair S, Kondejewski J, Jaggi P, Dennett L, Roze des Ordons AL, Hack TF. What is the state of compassion education? A systematic review of compassion training in health care. Acad Med 2021;96(7):1057-70. doi: 10.1097/ACM.0000000000004114 [Crossref]
  11. Anselmi KK. Nurses' personal liability vs. employer's vicarious liability. Medsurg Nurs [Internet]. 2012 [cited 2021 Aug 15];21(1):45-8. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22479877/
  12. Amer A. The ethics of veracity and it is importance in the medical ethics. Open Journal of Nursing 2019;9:194-198. doi: 10.4236/ojn.2019.92019 [Crossref]
  13. Fowers BJ, Novak LF, Calder AJ, Sommer RK. Courage, justice, and practical wisdom as key virtues in the era of COVID-19. Front Psychol 2021;12:647912. doi: 10.3389/fpsyg.2021.647912 [Crossref]
  14. Ferreira HM, Ramos LH. Diretrizes curriculares para o ensino da ética na graduação em enfermagem. Acta Paul Enferm 2006;19(3):328-31. doi: 10.1590/S0103-21002006000300012 [Crossref]