Enferm Bras 2021;22(5):597-99
EDITORIAL
Cristiane
Spadacio*
*Cientista
social, Mestrado e Doutorado em Saúde Coletiva, Pós-doutorado em Saúde Pública,
Docente de graduação, Orientadora de mestrado profissional, Pesquisadora na
Rede APS (ABRASCO)
cris.spadacio@gmail.com
O “qualitativo” agrega uma série de diferentes tradições em
pesquisa, partilhando o pressuposto básico de que todos os fenômenos do humano
devam ser analisados a partir da atribuição de significados às coisas e às
pessoas em seus contextos de interações sociais [1]. De acordo com Nunes, a
pesquisa qualitativa consiste em um conjunto de “[...] práticas materiais e
interpretativas que dão visibilidade ao mundo” [2]. Descortinar o mundo com as
lentes científicas nos convida a um exercício de abertura para diferentes
interpretações da realidade.
Em sua constituição, a pesquisa qualitativa encontra-se
intrinsecamente relacionada com o desenvolvimento das Ciências Sociais e
Humanas e podemos demarcar de forma genérica cinco grandes marcos que se
constituíram principalmente no final do século XIX e início do século XX [3].
São eles: o romantismo e idealismo, reivindicando uma metodologia autônoma ou
compreensiva para as ciências do social; a antropologia, com o método
etnográfico de compreensão de grupos humanos; estudos pós-segunda guerra
mundial, com correntes teóricas como interacionismo simbólico, etnometodologia,
estudos culturais e a consolidação da sociologia do conhecimento; décadas de
1970 e 1980, com perspectivas estruturalistas, pós-estruturalistas e
pós-modernas, demarcando temas clássicos como classe, raça e gênero; e, a
partir da década de 1990, com pesquisas que absorvem temáticas do
pós-modernismo.
Configura-se, assim, um campo de conhecimento científico
[4] que se ocupa de um nível de realidade que não pode ou não deveria ser
quantificado. E que busca analisar o universo dos significados, dos motivos,
das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes [5]. Nesse sentido, os
pesquisadores qualitativos ressaltam em suas pesquisas aspectos da natureza
socialmente construída da realidade, a íntima relação entre o pesquisador e seu
objeto de estudo, além das limitações situacionais que influenciam a
investigação [1].
Tradicionalmente, pesquisadores se utilizam de uma variedade
de materiais empíricos e práticas interpretativas nas abordagens qualitativas,
tais como: estudo de caso, experiência pessoal, história de vida, uso de
narrativas, discurso do sujeito coletivo, entrevistas em suas diferentes
modalidades (aberta, semiestruturada, grupos focais), a utilização de artefatos
(históricos e contemporâneos), textos e produções culturais, textos
observacionais, interativos e visuais. No método qualitativo a pesquisa é
descritiva e os dados obtidos são analisados de forma indutiva. Dessa forma, a
interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados são básicos no
processo de desenvolvimento de pesquisas qualitativas.
O setor saúde, por sua complexidade, exige diferentes
perspectivas analíticas na produção de suas pesquisas, demandando que
conhecimentos de diferentes áreas sejam integrados. Compreender o processo
saúde-doença-cuidado em seus aspectos subjetivos e contextuais exige, desta
forma, uma ampliação no escopo das pesquisas em saúde e de suas possibilidades
interpretativas [6].
Porém, historicamente no campo da saúde predominam estudos
de ordem quantitativa, que deixam de lado questões que envolvem significados e
intencionalidades. Tal predominância histórica se dá por fatores tais como:
legitimação científica do quantitativo sobre o qualitativo; a mensuração como
forma hegemônica na produção dos dados voltados principalmente para o
desenvolvimento de políticas públicas; recusa por análises contextualizadas da
realidade, consagrando as regras positivistas das ciências naturais [7].
A decisão pela escolha do método qualitativo ocorre pelo
interesse do pesquisador na busca por significados, na compreensão dos
fenômenos humanos [8], além da abordagem do problema de pesquisa, especialmente
em seu nível de aprofundamento. Com isso, por suas características de atitude
de compreensão, buscando aprender relações de significado, as pesquisas de
natureza qualitativa possuem desenhos flexíveis, evolutivos, com potencial de
validação e generalização de conceitos.
É importante ressaltar também que atualmente o contexto da
pandemia de COVID-19 impõe importantes desafios para o desenvolvimento das
pesquisas qualitativas. Quando vivemos em um momento da história em que
elementos mais simples e corriqueiros da nossa vida cotidiana se tornaram, de
uma hora para outra, grandes dilemas, realizar pesquisas que se ocupam do
subjetivo, das interações, do contexto, ganham novos contornos. Limitações
impostas pelo distanciamento social, necessidade de adequação às Tecnologias da
Informação e Comunicação (TIC) são exemplos cotidianos de desafios pelos quais
passam os pesquisadores qualitativos. Evidenciaram-se alguns aspectos que
passam a compor essa experiência da pesquisa qualitativa: a ansiedade ao redor
da COVID-19 afeta as narrativas dos participantes e, consequentemente, os
resultados da pesquisa; a forma de conduzir a interação com os representantes
da pesquisa, a partir da experiência do distanciamento social; e, o impacto das
TIC na qualidade dos dados e na condução das pesquisas qualitativas [9].
Não se pretende, com as pesquisas qualitativas, a
construção de verdades absolutas, mas sim a possibilidade de generalizações,
expondo concepções de mundo que podem se alinhar ou até mesmo divergir.
Compreender a pesquisa qualitativa em sua constituição e elementos principais,
no caminho trilhado neste editorial, proporciona o debate em uma perspectiva
distinta daquelas que exclusivamente "quantificam" ou abordam um
olhar exclusivamente "biológico" ao mundo, ampliando assim este
olhar.