Enferm Bras 2022;21(1):29-42

doi: 10.33233/eb.v21i1.5002

ARTIGO ORIGINAL

Viuvez: modificações no autocuidado e na saúde entre pessoas idosas

 

João Pedro dos Santos Calache*, Thales Andrade Coutinho, D.Sc.**, José Vitor da Silva**, Guilherme Luís Nascimento Quintiliano***, Rogério Donizeti Reis, M.Sc.****

 

*Acadêmico do Curso de Medicina, Faculdade de Medicina de Itajubá (FMIT), **Faculdade de Medicina de Itajubá (FMIT), ***Mestrando em Enfermagem, Docente e Coordenador de Curso Enfermagem na Universidade do Vale do Rio Verde (UninCor), ****Fisioterapeuta e Enfermeiro, Doutorando em Enfermagem, Docente na Faculdade de Medicina de Itajubá (FMIT)

 

Recebido em 29 de novembro de 2021; Aceito em 4 de fevereiro de 2022.

Correspondência: Rogério Donizeti Reis, Av. Reno Júnior, 368, 37502-138 Itajubá MG

 

João Pedro dos Santos Calache: joaopedrocalache@outlook.com

Thales Andrade Coutinho: thalesandradecoutinho@hotmail.com  

José Vitor da Silva: enfjvitorsilva2019@gmail.com  

Guilherme Luís Nascimento Quintiliano: guilhermeluisnquintiliano@hotmail.com  

Rogério Donizeti Reis: rogerioreisfisio@yahoo.com.br

 

Resumo

Introdução: A viuvez é caracterizada pela perda do companheiro ou companheira, um momento de ruptura da relação, de vivência e cumplicidade existente ou não, e esta ruptura vai determinar as modificações no autocuidado e na saúde. Objetivos: Identificar as características sociodemográficas de pessoas idosas viúvas e identificar as modificações no autocuidado e na saúde dessas pessoas. Métodos: Estudo de abordagem qualitativa, do tipo descritivo e exploratório. Participaram do estudo 30 pessoas idosas viúvas. Utilizou-se o método do Discurso do Sujeito Coletivo. Resultados: A idade média observada foi de 74 anos; 76,7% eram do gênero feminino; 53,3% tinham ensino fundamental incompleto; 90% eram católicas; 73,3% possuíam renda de 1 a 2 salários mínimos. Do tema explorado “viuvez e autocuidado” evidenciaram duas ideias centrais: “Modificações positivas e melhoradas” e “Perda de significado de vida e autocuidado”. Do tema “viuvez e saúde” emergiram as seguintes ideias centrais: “Modificações positivas na qualidade de vida e no bem-estar” e “Comprometimento da saúde mental”. Conclusão: A viuvez interferiu dialeticamente no autocuidado e na saúde proporcionando comprometimentos e melhorias.

Palavras-chave: viuvez; autocuidado; idosos.

 

Abstract

Widowhood: changes in self-care and health among older people

Introduction: Widowhood is featured by the loss of a partner, a moment of rupture of a relationship, of experience and complicity, whether existing or not, and this rupture will determine changes in self-care and health. Aims: To identify the sociodemographic characteristics of widowed elders and to identify the changes in self-care and health among widowed elders. Methods: A qualitative, descriptive and exploratory study. Thirty widowed elders participated in the study. The collective subject discourse method was used. Results: The average age observed was 74 years old; 76.7% were females; 53.3% had incomplete elementary school education; 90% were Catholic; 73.3% had an income of 1 to 2 minimum wages. From the explored theme "widowhood and self-care" two central ideas were evidenced: "Positive and improved changes" and "Loss of life meaning and self-care". From the theme "widowhood and health" the following central ideas emerged: "Positive changes in life quality and well-being" and "Mental health impairment". Conclusion: Widowhood dialectically interfered in self-care and health, providing commitments and improvements.

Keywords: widowhood, self-care, elderly.

 

Resumen

Viudez: modificaciones en el autocuidado y en la salud entre adultos mayores

Introducción: La viudez es caracterizada por la pérdida del compañero o compañera, momento de ruptura de la relación de vivencia y complicidad existente o no, y esta separación determina la respuesta de adhesión al autocuidado. Objetivos: Identificar las características sociodemográficas de adultos mayores viudos e identificar las modificaciones en el autocuidado y en la salud entre adultos mayores viudos. Métodos: Estudio de abordaje cualitativo, del tipo descriptivo y exploratorio. La muestra fue compuesta de 30 adultos mayores viudos. Se utilizó el método del Discurso del Sujeto Colectivo. Resultados: La media de la edad fue de 74 años; el 76,7% eran mujeres; el 53,3% con enseñanza fundamental incompleta; el 90% eran católicos; el 73,3% recibían 1 a 2 salarios mínimos. Del tema explorado “viudez y autocuidado” emergieron dos significados: “modificaciones positivas y mejoradas” y “pérdida del significado de la vida y autocuidado”. Del tema “viudez y salud” surgieron las siguientes categorías: “Modificaciones positivas en la calidad de vida y en el bien-estar” y “comprometimiento de la salud mental.” Conclusión: La viudez interfirió dialécticamente en el autocuidado y en la salud proporcionando comprometimientos y mejorías.

Palabras-clave: viudez, autocuidado, adultos mayores.

Introdução

 

A intensidade da dor do sujeito em luto está diretamente relacionada com os laços afetivos estabelecidos entre este e o parceiro falecido [1]. O impacto da viuvez e as reações das pessoas enlutadas demonstraram sempre grandes diferenças, que são, em parte, explicáveis por características individuais, tais como sensibilidade, estrutura psicológica, ou por determinantes do contexto sociocultural no qual o indivíduo se insere.

A forma de vivenciar a viuvez varia conforme a história de vida e a personalidade de cada um, bem como das estratégias de enfrentamento utilizadas nessa situação. Sendo este um evento mais frequente na velhice, especialmente para as mulheres, é de grande relevância compreender quais as estratégias que têm sido usadas pelos idosos para superá-lo. Há no grupo dos idosos enlutados uma maior vulnerabilidade, fato que exige a atenção e o tratamento de profissionais da saúde [2].

É importante se falar do significado da perda do companheiro e as mudanças que são produzidas na viuvez, um acontecimento trágico ou natural da vida, que gera transformações [3]. A viuvez, em latim vidua, significa “ser privado de algo, assim, a morte de um cônjuge ou companheiro agrega à pessoa a característica do estado de viuvez, e ela passa a exercer esse papel social, isto é, estar na condição de viúvo ou viúva [4].

Escudeiro [5] dá ênfase à questão das perdas, citando: “Em tese, a perda mais difícil de enfrentar é a perda por morte, mas não se pode comparar perdas, pois cada indivíduo sente-se e reage a elas diferentemente”.

A viuvez é um período da vida caracterizado pela perda do companheiro ou companheira, é um momento de ruptura da relação, de vivência e de cumplicidade existente ou não entre ambos. Sem dúvida, é uma das situações mais críticas de perda e uma das mais difíceis de superar, no entanto, como bem leciona o autor, cada pessoa vivencia de forma individual cada processo de perda e por isso não deve ser afirmado que uma perda é mais fácil ou mais difícil do que outra, contudo é inegável que a perda causada pelo estado de viuvez é uma situação peculiar e única [6].

É notório o impacto na qualidade de vida das pessoas idosa viúvas, assim como a dificuldade do enfretamento no autocuidado, haja vista que as pessoas idosas se mostram mutuamente dependentes. Portanto faz-se necessário uma investigação para avaliar a capacidade de autocuidado das pessoas idosas. O autocuidado é um conceito abrangente, relacionado com as ações que as pessoas realizam individualmente, com o objetivo de preservar a saúde e/ ou prevenir a doença [7].

Diante do exposto, os objetivos deste trabalho foram: identificar as características sociodemográficas de pessoa idosas viúvas e identificar as modificações no autocuidado e na saúde dessas pessoas.

 

Métodos

 

O presente estudo foi desenvolvido por meio da abordagem qualitativa, do tipo descritivo e exploratório. Participaram do estudo pessoas idosas viúvas de ambos os sexos que residem na cidade de Itajubá/MG. A amostra foi constituída por 30 pessoas idosas viúvas. Os critérios de inclusão foram: pessoas idosas viúvas residentes nas comunidades urbana e rural e ser viúva há pelo menos 6 meses e os critérios de exclusão foram: respostas que não contemplaram a entrevista semiestruturada e instrumento de caracterização sociodemográfica e de saúde incompleto quanto ao preenchimento.

A coleta de dados teve início após a aprovação do estudo pelo CEP da Faculdade de Medicina de Itajubá sob o parecer número: 4.220.738. Obedeceu-se aos preceitos estabelecidos pela Resolução nº 466/12, de 12 de dezembro de 2012, do Ministério da Saúde que trata da ética em pesquisa envolvendo seres humanos e pela especial proteção devida aos participantes das pesquisas científicas considerando as medidas de prevenção, proteção e biossegurança da pessoa idosa nessa fase de pandemia da COVID-19.

Para a coleta de dados foram adotados os seguintes procedimentos: o pesquisador responsável dispunha de amplo banco de WhatsApp de pessoas idosas viúvas de Itajubá/MG. A partir desse banco de dados, foram selecionadas intencionalmente 30 pessoas idosas viúvas e enviado um link por meio do seu WhatsApp. Nesse link constava o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) o qual convidava, orientava e solicitava a anuência da pessoa idosa. Se ela concordasse em participar, ao final do TCLE ela devia clicar na afirmativa: “concordo em participar”, caso contrário: “não concordo em participar”. Se a sua opção era a concordância em participar, a seguir, estava a sua disposição o Questionário sobre as suas características pessoais, sociais e de saúde. Tendo completado esse instrumento, foram-lhes apresentadas duas perguntas abertas, sendo a primeira: A viuvez provocou modificações nas suas práticas de autocuidado? Comente isso para mim. A segunda pergunta: O que a viuvez modificou na sua saúde? Após responder essas duas perguntas, a pessoa idosa viúva devia clicar em enviar e após era visualizado o agradecimento por ter participado do estudo.

Para a análise de dados, utilizou-se o método do Discurso do Sujeito Coletivo que consiste em um discurso-síntese elaborado com partes de discursos de sentido semelhante, por meio de procedimentos sistemáticos e padronizados fundamentado na Teoria das Representações Sociais representado por quatro figuras metodológicas: 1) Expressão-chave (ECH) que são partes ou todo o conteúdo das transcrições literais do discurso de cada sujeito. 2) Ideia Central (IC) que são nomes ou expressões linguísticas que revelam e descrevem da maneira mais sintética, precisa e fidedigna possível o sentido de cada um dos discursos analisados. 3) Ancoragem (AC) que é a manifestação linguística explícita de uma determinada teoria, ou crença que o autor do discurso professa e que, na qualidade de afirmação genérica, está sendo utilizada pelo enunciador para “enquadrar” uma situação específica e 4) Discurso do Sujeito Coletivo (DSC): reunião das ECH presentes nos depoimentos, que têm ICs e/ ou ACs de sentido semelhante ou complementar [8]. O presente estudo adotou três figuras metodológicas, excluindo a Ancoragem levando em consideração a tipologia dos participantes e, segundo Lefevre [8], a dispensa dessa figura não traz alteração alguma ao método do DSC.

 

Resultados

 

Os resultados estão apresentados em dois momentos: 1) Tabela I - identificação dos dados relacionados com as características pessoais, familiar e socioeconômicas das pessoas idosas viúvas e 2) análise dos resultados do tema explorado e seus DSC.

 

Tabela I - Caracterização pessoal, familiar, socioeconômica e de saúde de pessoas idosas, Itajubá/MG, (n = 30)

 

Fonte: dos autores

 

A seguir nos Quadros 1 e 2 estão evidenciadas as ideias centrais e o respectivo DSC relacionada à viuvez e o autocuidado e no Quadro 3 e 4 as ideias centrais e o respectivo DSC relacionada à viuvez e saúde.

 

Quadro 1 - IC e DSC relacionados à viuvez e autocuidado

 

 

Quadro 2 - Ideia central e Discurso do Sujeito Coletivo relacionados à viuvez e autocuidado

 

 

Quadro 3 - Ideia central e Discurso do Sujeito Coletivo relacionados à viuvez e saúde

 

 

Quadro 4 - Ideia central e Discurso do Sujeito Coletivo relacionados à viuvez e saúde

 

 

Discussão

 

Em relação ao sexo feminino, que foi predominante neste estudo, há um consenso no qual às mulheres constituem a maioria da população idosa em todas as regiões do mundo. Estatisticamente, no Brasil, dados encontrados mostram que o contingente feminino de mais de 60 anos de idade passou de 2,2%, em 1940, para 4,7% em 2000; e 6% em 2010 e, em 2050 as mulheres continuarão sendo maioria, com estimativa de população com 7 milhões de mulheres a mais do que homens. A proporção de mulheres idosas que alcança idades mais avançadas também é superior à dos homens, ou seja, o mundo dos idosos com mais de 80 anos é o mundo das mulheres [9]. Esses dados vêm ao encontro dos achados deste estudo nos quais 76,7% dos participantes do estudo eram do sexo feminino.

No último censo da população brasileira, foi apresentado o predomínio do sexo feminino em relação ao masculino. Além dos fatores intrínsecos, as mulheres buscam mais cuidar de si mesmas do que os homens [9]. O fato de, até então, ser a cuidadora da família, participando das práticas de saúde com os filhos e até mesmo como cuidadora familiar, ela se capacita melhor para o autocuidado da saúde e esse poderá ser um fator importante.

Outro dado que merece destaque é o baixo nível instrucional dos participantes do estudo, sendo representado por quase a metade da amostra. O ensino médio incompleto é um dado que reflete o nível instrucional do idoso no Brasil. Esse dado também foi encontrado em outros estudos realizados com idosos em Teresina no Piauí que traçou o perfil sociodemográfico da mulher idosa e dentre elas 74% eram analfabetas ou possuíam ensino fundamental incompleto [9]. Essa informação corrobora os achados deste estudo no qual a população feminina foi a que mais sobressaiu e 53,3% possuíam ensino fundamental incompleto.

O predomínio da religião dos entrevistados foi a Católica Apostólica (90%) a qual conta com a maioria de adeptos na realidade brasileira e está presente desde o período pré-colonial, quando foi introduzida por missionários, que acompanhavam os colonizadores portugueses. E desde então essa religião passou a integrar a vida dos brasileiros e exercer grande influência nos aspectos sociais, políticos e culturais dos brasileiros. As famílias, na sua grande maioria, desde o nascimento dos filhos, os educam nessa religião [10].

Quanto a renda familiar dos idosos geralmente se concentra em torno de 1 a 2 salários mínimos, uma vez que a maioria são aposentados e não possuem outra fonte de renda. Em estudos sobre renda e composição familiar no Brasil detectou-se um grande número de idosos vulneráveis de acordo com a renda [11]. Esse dado associado ao bem-estar do idoso reflete um comprometimento importante e o idoso com menor renda aponta mais problemas com estresse e ansiedade. Ser mais vulnerável, portanto, significa maior frequência de insônia e de dependência em atividades instrumentais da vida diária [12].

Do tema explorado relacionado à categoria “viuvez e autocuidado” foram evidenciadas duas ideias centrais agrupadas descritas a seguir: “Modificações positivas e melhorada” e “Perda de significado de vida e do autocuidado”. Na categoria “viuvez e saúde” emergiram as seguintes ideias centrais agrupadas: “Modificações positivas na qualidade de vida e no meu bem-estar” e “Manifestação de tristeza, depressão e desarranjo da saúde física”.

A ideia central “modificações positivas e melhorada” congrega o DSC que aponta para a consciência de se autocuidar o que beneficiou tanto o aspecto social, como a autoestima.

O processo de transição para a viuvez representa uma etapa repleta de desafios. A mobilização de recursos relacionados ao autocuidado tem sido importante para a consolidação de uma transição saudável. Vale salientar que o autocuidado sobressalta a capacidade de lidar com o luto. Relaciona-se à virtude de ser e construir como uma única pessoa [13].

A sociedade atual reflete um processo de feminilização da velhice, em função da maior mortalidade masculina [14,15]. Culturalmente, as mulheres estão inseridas em um contexto social de dominação masculina, no qual as mesmas eram dirigidas aos ofícios de procriação e os homens aos de produção [16]. Nesse contexto, a viuvez pode atuar como uma quebra desse paradigma [17], o que resultam uma remodelação das questões referentes ao gênero consolidadas em outrora [9].

A amostra deste estudo é composta, em sua maioria, por indivíduos do sexo feminino (76,7%). A maior parte da mesma apresentou um desfecho positivo, no que tange ao autocuidado, ao alegar que a viuvez convergiu em um aumento na capacidade dessa modalidade. Resultados convergentes com os obtidos neste estudo podem ser encontrados na literatura, que estabelecem relações entre o advento da viuvez e o surgimento de um sentimento de liberdade [3].

Indiscutivelmente, no presente estudo, a viuvez fez emergir sentimentos de liberdade, ou seja, a certeza que uma nova vida se inicia mesmo diante da perda do cônjuge. No caso da mulher viúva, o estigma criado em torno do sexo frágil, submissa e procriadora, deu lugar as mulheres idosas viúvas empoderadas e encorajadas. O dispêndio de energia agora é focado interiormente em busca de paz interior e para a recuperação e manutenção do seu bem-estar. Com a viuvez nasce uma nova mulher gerenciadora do seu ato e da própria felicidade.

A ideia central agrupada “Perda de significado de vida e autocuidado” congrega excertos das falas dos participantes que apontam o falecimento do companheiro e consequentemente a ausência física, uma representatividade de um vazio existencial, que tende a potencializar a falta de significado de vida, depressão e tantos outros sintomas que tomam proporções grandiosas e muitas vezes devastadoras.

O advento do luto tem atuado como precursor do surgimento de um sentimento de falta e solidão e de uma luta constante para buscar um novo significado para a vida sem o cônjuge [13,18]. A transição para a viuvez pode ser considerada um período marcado por dificuldades diversas. Para que esse processo ocorra, de forma atenuada, torna-se necessário um alinhamento de fatores internos e externos, tais como a força interior dos enlutados e relações familiares próximas, respectivamente [9,13,19].

Os vínculos familiares frágeis podem impactar, diretamente, no modo como os indivíduos vivenciam esse processo. A existência de entraves no relacionamento familiar contribui para o surgimento de impactos negativos no comportamento daqueles que vivenciam a perda, o que culmina na negligência do autocuidado [13]. O panorama destacado pode atuar como uma provável justificativa para os relatos negativos, relacionados ao autocuidado, encontrados nesse trabalho.

A ausência do(a) companheiro(a) traz consigo sentimentos e experiências em certos casos traumáticos. A dificuldade de enfrentamento e aceitação influencia negativamente o equilíbrio e a lucidez do indivíduo que muitas vezes anula sua própria existência. Pode-se entender que por meio da somatização da dor e da interiorização do luto em pessoas idosas viúvas inicia-se um processo de patologização crônica.

Para Freud [20], no luto, existem traços emocionais marcantes, como um desânimo profundamente doloroso influenciando a disposição do indivíduo; deixando de haver interesse pelo mundo externo; surge a incapacidade de amar outro objeto de amor por pensar que está substituindo o que perdeu; existe ainda a dificuldade em pensar em qualquer atividade com receio de não envolver a pessoa. Desta forma, ao observar e analisar o luto, observaram-se comportamentos que parecem representar alguma anormalidade das pessoas enlutadas, parecendo que estas problematizavam o conceito de doença associada ao luto.

Na categoria “viuvez e saúde” a ideia central agrupada “modificações positivas na qualidade de vida e no bem-estar” sugere, de acordo com as pessoas idosas viúvas, uma apropriação de fatos em suas vidas que apontam para uma libertação, ou um novo modo de viver com alterações substanciais em termos de práticas de vida diária.

Pode-se observar uma parcela considerável da amostra que relacionou o processo de viuvez com um resultado positivo, no cenário da saúde, fato que se assemelha aos resultados obtidos pelo trabalho de Krochalk, Li e Chi [11] que associou melhores percepções de saúde a indivíduos viúvos com idade avançada e menor nível de escolaridade, características essas encontradas na população do presente estudo. Vale salientar que, para pessoas que vivenciam a perda do cônjuge, o envolvimento social tem atuado como uma importante ferramenta de proteção contra a instalação de sintomas depressivos e mazelas de saúde, em geral [12].

A diminuição da incidência de violência doméstica, após o cenário de viuvez, foi relatada por muitos participantes do presente estudo, os quais a correlacionaram com uma melhora na saúde mental. Tal circunstância pode ser elucidada pelo estudo de Knight e Hester [21], o qual destacou que a violência doméstica está, fortemente, relacionada a problemas de saúde física e mental, e também que os abusos físicos diminuem com a idade, mas o mesmo não ocorre com os emocionais, que sem mantém, mesmo com o passar dos anos. Como resultado dessa perspectiva, observa-se um impacto negativo na qualidade de vida dos envolvidos.

No entanto, essa melhora, relatada por parcela relevante da população envolvida neste estudo, pode se apresentar, em alguns casos, como temporária, devido ao surgimento de um declínio na saúde mental do indivíduo, que vivencia o luto. Esse declínio tem perdurado por anos após o falecimento do cônjuge e, consequentemente, favorecido o desenvolvimento de doenças, não somente psicológicas, como a depressão, mas também as físicas [21,22].

Por fim a representação social constatada na ideia central agrupada “comprometimento da saúde mental” aponta, pela própria fala das pessoas idosas viúvas, uma interferência emocional o que leva a desencadear outros fatores que impossibilitam o autocuidado. Nesse agrupamento nota-se que a imposição da patologia se torna presente.

O tipo de relacionamento durante o matrimônio pode ser destacado como um dos fatores que repercutem, de modo relevante, na forma de lidar com a saúde no processo pós-luto. Indivíduos que vivenciaram uma convivência conjugal pouco conflituosa correlacionaram o luto a dificuldades emocionais, isolamento e sentimento de falta [9].

A repercussão positiva, desencadeada pela viuvez, observada em questões relacionadas ao autocuidado, não foi, igualmente encontrada, naquelas relacionadas à saúde. A maioria dos participantes da pesquisa convergiu em um desfecho de saúde negativo, após experimentar o processo de viuvez. Fatores como a convivência prolongada, vivenciada por casais idosos, atuam como uma das justificativas plausíveis para a conjuntura mencionada [23].

O cenário destacado corrobora a consolidação de uma condição de maior incapacidade funcional, o que resulta em uma perda de autonomia, por parte do indivíduo idoso [15]. Tal fato pode ser elucidado por outros estudos [9,24] os quais destacam a existência, entre cônjuges idosos, de um auxílio mútuo no cuidado à saúde. Sendo assim, o processo de viuvez pode atuar como um fator desencadeante de negligência, e de dificuldade de mensurar seu real estado de saúde.

O incremento no autocuidado aliado a um decaimento dos cuidados relacionados à saúde representa uma peculiaridade identificada neste estudo, uma vez que, em grande parte dos estudos, ambas as grandezas se apresentam prejudicadas, após o processo de viuvez [9,14].

O advento do processo de luto resulta em impactos importantes na vida de quem o vivencia. Esses podem culminar em prejuízos relacionados ao bem-estar, a aspectos psicológicos e, até mesmo, ao desenvolvimento de doenças, como a depressão [25,26]. Essas repercussões psicológicas podem favorecer a consolidação de comorbidades físicas, e essas, por sua vez, prejudicam a qualidade de vida dos afetados, o que impacta na sua condição de saúde [26].

Embora os impactos causados pela viuvez tenham sido elucidados por esse e outros estudos, torna-se fundamental a realização de trabalhos a fim de reduzir as lacunas existentes, no que tange o referido tema. Nota-se na literatura um excesso de pesquisas transversais [27] o que impede uma análise desse processo a longo prazo. Dessa forma, sugere-se a realização de estudos futuros que possibilitem um acompanhamento dos indivíduos e a trajetória desses, na vivência do processo de luto.

 

Conclusão

 

Buscou-se, neste trabalho, trazer à baila uma temática de grande importância para o processo de envelhecimento que são as repercussões frente à viuvez. O enfretamento imposto por esse novo modo de viver é a resposta imperativa das relações criadas entre os cônjuges. Surgem para alguns a liberdade, a felicidade, o prazer e a autonomia, para outros, no entanto, emergem a perda da própria identidade, da incapacidade, do medo, da depressão e do vazio existencial que necessita ser compreendido e resolvido pela pessoa idosa viúva e a sociedade/família que está em seu entorno.

Ao aventado hipoteticamente, o estudo, em questão, apresentou uma peculiaridade, representada por um desfecho positivo, no autocuidado, o que difere de estudos prévios. Entretanto, foi possível identificar relatos negativos no mesmo âmbito, por parte de alguns participantes. No que se refere à saúde, houve uma convergência, em relação à maioria dos trabalhos existentes na literatura sobre o tema, em função da maior parte da amostra ter apontado para um desfecho negativo, no contexto pós-viuvez. Com base nos resultados obtidos neste estudo é possível compreender que o processo de viuvez repercute impactando a vida de quem o vivencia e o desfecho dependerá de diversos fatores: internos e externos para determinar o estilo de vida a seguir.

Todavia, os próprios participantes desta pesquisa tiveram a oportunidade de expressarem seus sentimentos, aqui entendidos como Representações Sociais ou comportamentos latentes. Assim, entendeu-se que a vivência da viuvez é tão complexa e plural que se torna seu entendimento multifatorial mediados por variáveis individuais e contextuais.

Com a realização deste estudo, constatou-se que alguns participantes carregam consigo conflitos de ordem moral, social e conjugal e que as relações entre si determinarão, consequentemente, o estado de vulnerabilidade, fragilidade e sofrimento.

 

Conflitos de interesse

Os autores declaram que não houve quaisquer conflitos de interesse.

 

Fonte de financiamento

Não se aplica

 

Contribuição dos autores

Concepção e desenho do estudo: Calache JPS, Coutinho TA, Silva JV, Quintiliano GLN, Reis RD; Coleta de dados, interpretação dos dados e redação do manuscrito: Calache JPS, Coutinho TA; Revisão crítica e aprovação do final do manuscrito: Silva JV, Quintiliano GLN, Reis RD

 

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