Enferm
Bras 2022;21(3):239-53
ARTIGO
ORIGINAL
Violência
sexual contra adolescentes notificada por profissionais de saúde no sul do
Brasil de 2009 a 2016
Carlos
Magno Neves*, Carolina Carvalho Bolsoni**, Thays Berger Conceição**, Sheila Rúbia Lindner**,
Judizeli Baigorria**, Elza
Berger Salema Coelho**
*Programa
de Pós-graduação em Saúde Coletiva do Centro de Ciências da Saúde da
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Faculdade de
Medicina da Universidade de Rio Verde (UniRV),
Goiânia, GO, **Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do Centro de
Ciências da Saúde da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC
Recebido
em 30 de janeiro de 2022; aceito em 5 de abril de 2022
Correspondência: Carlos Magno Neves, UniRV, Av. T-13 qd. S-06
lts.08-13 Setor Bela Vista, 74230-050 Goiânia GO
Carlos
Magno Neves: neves2075@gmail.com
Carolina
Carvalho Bolsoni: carolziinha.flor@gmail.com
Thays Berger Conceição: thaysberger@gmail.com
Sheila
Rúbia Lindner: sheila.lindner@gmail.com
Judizeli Baigorria:
judizeli@yahoo.com.br
Elza
Berger Salema Coelho: elzacoelho@gmail.com
Resumo
Introdução: A violência sexual é uma das formas de
expressão de violência doméstica que ocorre transversalmente nas diferentes
culturas e aflige milhares de adolescentes em todo o mundo. Objetivo:
Descrever as características da violência doméstica do tipo sexual contra
adolescentes da região Sul do Brasil, notificados por profissionais de saúde,
relacionando-as com fatores demográficos, sexo, faixa etária das vítimas e
autores da agressão. Métodos: Estudo transversal sobre violência
doméstica do tipo sexual contra adolescentes a partir dos dados do SINAN. Variáveis:
características da vítima, agressor, ocorrência e tipologia da violência. Foram
realizadas análises bruta e ajustada com os valores expressos em razão de
chance Odds Ratio (OR) e os
respectivos intervalos de confiança de 95%. Resultados: 10.104
notificações, predominando o sexo feminino; cor de pele branca e parda, faixa
etária 10 a 14 anos, agressores do sexo masculino, conhecidos das vítimas e que
não consumiam álcool. A faixa etária de 10-14 anos, ter cor da pele não branca
e possuir alguma deficiência foram alguns dos fatores que aumentaram a chance dos adolescentes sofrerem violência sexual. Conclusão:
A violência sexual na região Sul do Brasil ocorreu em maior proporção entre os
adolescentes do sexo feminino, na faixa etária de 10-14 anos, cor de pele
branca e parda, com 5 a 8 anos de estudo e solteiros. Faz-se necessário ampliar
a discussão entre governo, entidades civis, profissionais, pesquisadores e
população, na busca por formas de prevenção e suporte às vítimas.
Palavras-chave: violência sexual; adolescente; saúde
do adolescente; vigilância epidemiológica.
Abstract
Sexual violence against adolescents notified by health
professionals in Southern Brazil from 2009 to 2016
Introduction: Sexual
violence is one of the forms of expression of domestic violence that occurs
across different cultures and afflicts thousands of adolescents around the
world. Objective: To describe the characteristics of sexual domestic violence
against adolescents in the southern region of Brazil, reported by health
professionals, relating them to demographic factors, gender, age group of
victims and perpetrators of aggression. Methods: Cross-sectional study
on sexual domestic violence against adolescents based on SINAN data. Variables:
characteristics of the victim, aggressor, occurrence and typology of violence.
Crude and adjusted analyzes were performed with values expressed as odds ratio
(OR) and the respective 95% confidence intervals. Results: 10,104
notifications, predominantly female; white and brown skin color, age group 10
to 14 years, male aggressors, known to the victims and who did not consume
alcohol. The age group of 10-14 years, having non-white skin color and having a
disability were some of the factors that increased the chance of adolescents
suffering sexual violence. Conclusion: Sexual violence in the southern
region of Brazil occurred in greater proportion among female adolescents, aged
10-14 years, white and brown, with 5 to 8 years of schooling and single. It is
necessary to broaden the discussion between the government, civil entities,
professionals, researchers and the population; in the search for forms of
prevention and support for victims.
Keywords: sexual violence; adolescent;
adolescent health; epidemiological monitoring.
Resumen
Violencia sexual contra adolescentes reportada
por profesionales de la salud en el
sur de Brasil entre 2009 y 2016
Introducción: La violencia
sexual es una de las formas de expresión
de la violencia
intrafamiliar que se presenta en diferentes culturas
y aqueja a miles de
adolescentes en todo el
mundo. Objetivo: Describir las
características de la violencia
sexual intrafamiliar contra adolescentes en la región sur
de Brasil, relatadas por profesionales de la salud, relacionándolas
con factores demográficos,
género, grupo etario de las
víctimas y perpetradores de la
agresión. Métodos: Estudio
transversal sobre violencia sexual intrafamiliar
contra adolescentes con base en
datos del SINAN. Variables: características de la
víctima, agresor, ocurrencia y tipología de la violencia. Se realizaron análisis crudos y ajustados con los valores expresados como odds ratio (OR) y los respectivos intervalos de confianza
del 95%. Resultados: 10.104 notificaciones, predominantemente femeninas;
color de piel blanca y
morena, grupo de edad de 10 a 14 años,
agresores masculinos, conocidos
de las víctimas y que no consumían alcohol. El grupo de edad de 10 a 14 años, tener color de piel no blanca y tener alguna discapacidad fueron algunos de los factores que aumentaron la probabilidad
de que las adolescentes sufrieran
violencia sexual. Conclusión:
La violencia sexual en la región sur
de Brasil ocurrió en mayor proporción entre
adolescentes del sexo femenino,
de 10 a 14 años, blancas y
pardas, con 5 a 8 años de escolaridad y solteras. Es necesario ampliar la discusión entre el gobierno, las entidades civiles, los profesionales,
los investigadores y la población; en la
búsqueda de formas de prevención
y apoyo a las víctimas.
Palabras-clave: violencia sexual; adolescente; salud adolescente; vigilancia
epidemiológica.
Violência
sexual abrange todo ato ou jogo sexual ou qualquer ação na qual o agressor,
valendo-se de sua posição de poder e usando de força física, coerção,
intimidação ou influência psicológica, sob uso ou não de armas ou drogas,
obriga a vítima a ter, presenciar ou participar, de alguma maneira, de
interações sexuais diretas ou não com o agressor [1]. Reconhecida como uma
violação dos direitos humanos, a violência sexual é uma das formas de expressão
de violência doméstica que ocorre transversalmente nas diferentes culturas,
povos e nos diferentes níveis sociais e aflige milhares de adolescentes em todo
o mundo [2,3].
A
prevalência de violência sexual em países da Europa é de 20,0% em meninas e
5,0% a 10,0% nos meninos [4]. Nos Estados Unidos, 19,9% de adolescentes que
sofreram alguma forma de violência foram vítimas de violência sexual [5]. Dados
da UNICEF revelam que, em todo o mundo, cerca de 15 milhões de meninas
adolescentes de 15 a 19 anos tiveram relações sexuais forçadas ao longo da vida
[6].
No
Brasil, entre 2011 e 2017 foram notificados 184.524 casos de violência sexual,
sendo 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068 (45,0%) contra adolescentes [7].
Em Santa Catarina, estudo realizado com dados do Sistema de Informação de
Agravos de Notificação (SINAN) identificou 2.010 notificações de casos
suspeitos ou confirmados de violência sexual, que representaram 12,9% das
notificações de todos os tipos de violência contra mulheres, com predominância
para as adolescentes como vítimas: 47,3% tinham de 10 a 14 anos de idade [8].
Dada
a complexidade do problema, as vítimas de violência sexual podem passar por
diferentes setores cumprindo protocolos distintos, em órgãos e serviços
diversos que por vezes não se comunicam. Essas informações, permitem
identificar o problema, mesmo que de forma fragmentada, e até mesmo vislumbrar
sua abrangência, no entanto, podem representar apenas uma fração de uma
situação cuja real magnitude pode ser desconhecida devido à subnotificação [9].
Em
2016 no Brasil, houve 22.918 notificações de violência sexual no setor saúde
comparada a 49.497 registros policiais. Como agravante dessa situação, se
considera que muitos casos não sofrem registro em nenhum órgão, devido a todas
as barreiras enfrentadas pelas vítimas. Nos Estados Unidos, apenas 15% do total
dos estupros é reportado à polícia. Caso a taxa de subnotificação no Brasil
fosse semelhante à norte americana, ou, mais crível, girasse em torno de 90%,
estaríamos falando de uma prevalência de estupro em território nacional entre
300 a 500 mil casos por ano [10].
A
violência sexual pode gerar adoecimento, morte ou sequelas físicas e emocionais
que irão acompanhar a vítima ao longo da vida, como polivitimização,
depressão, ansiedade e síndrome de stress pós-traumático [11,12]. A dependência
química, suicídio, comportamento violento, gravidez indesejada, óbito e
abortos, grande número de parceiros sexuais, infecções sexualmente
transmissíveis e doenças crônicas não transmissíveis também são citadas como
sequelas deste tipo de violência [4].
Por
se tratar de um fenômeno impactante, de grande magnitude e pela vulnerabilidade
dos adolescentes frente à violência sexual, torna-se relevante o
desenvolvimento de estudos que permitam uma melhor compreensão sobre esse grave
problema de saúde pública, fornecendo dados que possam contribuir na elaboração
de estratégias de enfrentamento. Assim, este estudo teve por objetivo descrever
as características dos casos de violência doméstica do tipo sexual contra adolescentes
da região Sul do Brasil, notificados por profissionais de saúde,
relacionando-as com fatores demográficos, sexo, faixa etária das vítimas e
autores da agressão.
Estudo
transversal, com base de dados dos registros do SINAN de violência doméstica do
tipo sexual contra adolescentes, no período de 2009 a 2016, dos três estados da
região Sul do Brasil: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
O
Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) comporta o Sistema de Vigilância
de Violências e Acidentes (VIVA) que permite a notificação e processamento de
dados de vigilância das violências doméstica, sexual e/ou outras violências. É
alimentado por profissionais dos serviços públicos e privados de saúde, por
meio da ficha de notificação e investigação dos casos de violências [13].
Para
este estudo, foram incluídas as notificações realizadas nos três estados da
Região Sul do Brasil de violência sexual contra adolescentes de ambos os sexos
pertencentes a faixa etária de 10 a 19 anos de acordo com a classificação
utilizada pela Organização Mundial de Saúde [1].
A
fonte de dados provém das notificações do SINAN VIVA Contínuo, um Sistema de
Informação em Saúde, com acesso público liberado por meio de trâmite no Serviço
de Informação ao Cidadão da Coordenação Geral de Vigilância de Agravos e
Doenças Não Transmissíveis do Ministério da Saúde [13].
Para
as análises estatísticas foi utilizado o software Stata
14.0. O desfecho violência sexual foi estratificado segundo sexo e faixa
etária, em dois grupos: 10 a 14 e 15 a 19 anos, por representarem diferentes
fases de desenvolvimento da adolescência. As demais características foram
analisadas de acordo com as informações registradas nas fichas de notificação
de violência, sendo descritas a seguir.
Com
relação à vítima, foram considerados: sexo, cor da pele, faixa etária,
escolaridade, situação conjugal, presença de deficiência ou transtorno. Quanto
à ocorrência, considerou-se a violência do tipo doméstica, e ainda, sexo do
autor, número de envolvidos, vínculo com a vítima e consumo de álcool.
As
variáveis foram analisadas por meio da estatística descritiva com apresentação
das frequências absoluta e relativa e intervalos de confiança de 95%(IC95%). A
associação entre as variáveis foi testada por meio da regressão logística não
ajustada e ajustada com os valores expressos em razão de chance Odds Ratio (OR) e os respectivos
intervalos de confiança de 95%. As variáveis que apresentaram valores de p ≤
0,20 no modelo não ajustado, entraram no modelo ajustado, e os valores de p ≤
0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
Por
se tratar de banco de dados secundários de acesso público, previamente tratado
para preservar a privacidade dos participantes de pesquisa e em consonância com
resoluções do Conselho Nacional de Saúde, este tipo de estudo dispensa a
aprovação de um comitê de ética em pesquisa envolvendo seres humanos. Foram
respeitados os princípios de ética na pesquisa com seres humanos presentes nas
resoluções do Conselho Nacional de Saúde.
No
período de janeiro de 2009 a dezembro de 2016 foram notificados 10.104 casos de
violência doméstica do tipo sexual em adolescentes no Sul do Brasil, sendo 994
contra o sexo masculino e 9.110 contra o feminino. Em ambos os sexos, a
violência sexual ocorreu majoritariamente em adolescentes de cor de pele branca
e parda, na faixa etária de 10 a 14 anos (77,7% no sexo masculino e 67,9% no
feminino), com escolaridade de 5 a 8 anos de estudo completos e solteiros.
Entre as vítimas do sexo masculino, 25,4% apresentaram alguma
deficiência/transtorno (Tabela I).
Tabela
I – Características
sociodemográficas de adolescentes vítimas de violência sexual da Região Sul do
Brasil, 2009 a 2016
*Fundamental
I 1º ao 5ºano; **Fundamental II 6º ao 9ºano; ***Ensino Médio 1º ao 3ºano;
****Ensino Superior
A
ocorrência da violência sexual em mais de um episódio, de repetição, ocorreu em
quase 50,0% dos casos, sendo mais prevalente nos adolescentes do sexo masculino
(60,4% versus 48,0% no feminino). Em relação a autoria da agressão, a maioria
era do sexo masculino, conhecidos ou familiares, agiram sozinhos e em 63,0% não
haviam consumido álcool (Tabela II).
Tabela
II - Caracterização
dos autores de violência sexual de adolescentes e da presença de repetição,
segundo sexo das vítimas, notificados na Região Sul do Brasil (SINAN),
2009-2016
*Familiar:
Pai, Mãe, Padrasto e Irmã(o)
Para
adolescentes de ambos os sexos ter de 10 a 14 anos aumenta em mais de três
vezes as chances de sofrer violência sexual quando comparado com a faixa etária
superior (15 a19 anos). As adolescentes de cor de pele preta, parda, amarela e
indígena apresentam mais chance de sofrer violência que as de cor branca. A
presença de deficiência/transtorno nas vítimas do sexo masculino aumenta em 3,4
vezes as chances dos adolescentes de sofrerem violência sexual. As adolescentes
apresentam mais chance de sofrer violência sexual quando os agressores são do
sexo masculino quando comparados a ambos os sexos (13,1 vezes para vítimas do
sexo feminino e 11,4 vezes para o masculino). A suspeita de uso de álcool pelo
agressor não se confirmou como fator de risco neste estudo. Os adolescentes têm
mais chances de sofrer violência sexual do cuidador (6,1 vezes) e de um
conhecido (2,5 vezes) e as adolescentes do desconhecido (12,5 vezes) e de um
conhecido (5,0 vezes). Outras informações estão contidas na tabela III.
Tabela
III - Análise não
ajustada e ajustada dos fatores associados a violência sexual contra
adolescentes estratificados por sexo, Região Sul do Brasil 2009-2016 (ver PDF anexo).
O
perfil das vítimas do presente estudo, quanto à faixa etária e etnia, pode
estar relacionado à predominância da cor de pele branca na população dos
estados da região Sul, corroborando estudos realizados em Santa Catarina [14] e
no Rio Grande do Sul [15]. As características referentes a escolaridade e
estado civil, conferem com o esperado para a população estudada.
No
período analisado, os registros de vítimas do sexo feminino foram
destacadamente maiores do que os do sexo masculino. A violência sexual feminina
é culturalmente “esperada” e a violência sexual contra meninos e homens é vista
como um tabu, sendo comumente banalizada devido às condições atreladas aos
estereótipos de masculinidade e que contribuem para a subnotificação [16].
O
fato de a maioria das notificações se referirem ao sexo feminino, parece
remeter a violência de gênero, que tem profundas raízes nas relações sociais,
envolvendo duas desigualdades básicas: gênero e geração [17]. A resultante
desta distorção nas relações é a agressão massiva do sexo feminino até os dias
atuais, conforme apontam estudos nacionais e internacionais [10,18,19].
Para
o senso comum, o fator gênero dita a relação de poder e os papéis esperados,
definindo comportamentos de ambos os sexos. Estudos sobre gênero se dedicam a
conhecer as diversas condições de vida das mulheres que resultam em
desigualdades de poder, tem revelado um cenário grave associado à violência
[17]. Os estereótipos cultivados de forma explícita ou velada nas diferentes
culturas contribuem para a desigualdade entre os gêneros; e fomentam o silêncio
e a culpabilização das vítimas de violência sexual do sexo feminino e a
humilhação ou banalização da vítima do sexo masculino [16].
Neste
estudo foi identificado um baixo número de notificações de violência doméstica
do tipo sexual contra adolescentes do sexo masculino, apontando a necessidade
de outros estudos que busquem identificar os fatores por trás desse fato, além
disso consta na literatura como a negação do ocorrido por vergonha, condição
que pode levar as vítimas a não comunicação ou denúncia dos casos de abuso
[16].
A
ocorrência da violência, em ambos os sexos, foi maior nos adolescentes mais
jovens, corroborando estudo realizado na região Nordeste do país, onde a chance
de sofrer violência sexual foi 2,4 vezes maior na faixa etária de 10 a 14 anos
[20]. Talvez, um importante fator para o maior número de vítimas nesse grupo
possa ser explicado pela alta vulnerabilidade desses jovens, imaturidade diante
de uma situação de risco ou mesmo confiança no agressor, que pode impor sua
autoridade para concretizar a prática sexual [8].
Contrário
ao encontrado no presente estudo, pesquisa realizada na região Nordeste do
Brasil com dados da violência sexual contra crianças e adolescentes demonstrou
que em 52,9% dos casos não foi observada recorrência da violência sexual,
porém, considerando o número de envolvidos, a violação sexual foi praticada por
um único agressor (95,1%), corroborando os achados do presente estudo [21].
Entre 2009 e 2013 no Brasil, o número de notificações de violência sexual de
repetição e das ocorrências de violência na residência aumentaram
consideravelmente [9]. O ambiente residencial pode proporcionar proximidade do
agressor com a vítima, favorecendo o uso de outros tipos de violência para
perpetrar a violência sexual [14,22].
Os
resultados do presente estudo evidenciaram que a maioria dos agressores era
conhecido da vítima, concordando com estudos que apontam os familiares em
diferentes graus de parentesco, parceiros íntimos e pessoas do círculo social
da vítima, como os perpetradores de violência sexual mais frequentes [22,23].
Dos
tipos de violência praticada contra o ser humano, a violência sexual é o delito
possivelmente menos denunciado, seja por represálias do agressor, ou ainda, nos
casos incestuosos, por medo de estigma por parte da vítima, pois a denúncia
geralmente acarreta sérias modificações emocionais, estruturais e mesmo
financeiras no sistema familiar [24]. Essa postura sigilosa por parte de
familiares em relação ao ocorrido com a vítima revela uma face cruel da
violência, pois o lugar em que se espera encontrar apoio para superar o trauma
é justamente onde se encontra o agressor.
A
chance de sofrer violência por parte de desconhecidos foi maior entre as
meninas. Muitos casos não são reportados às autoridades, contribuindo para o
desconhecimento da sociedade, dificuldade em se lidar com o problema e o
desamparo das vítimas, que culminam desenvolvendo sequelas físicas,
psicológicas e comportamentais diversas [25,26,27].
Neste
estudo ter deficiência ou transtorno, entre os meninos, caracterizou-se como
fator de risco, elevando a chance de ocorrência do abuso sexual. Esse risco é
apontado por outros achados nacionais, que apresentam um percentual expressivo
de vítimas de estupro como sendo pessoas com deficiência [10,14]. Fatores como
exclusão de educação e emprego, dependência em diferentes níveis, defesas
físicas e emocionais reduzidas, barreiras de comunicação, estigma e
discriminação podem não só aumentar o risco de violência, mas também contribuir
para que a violência seja repetida, prolongada e não denunciada [28].
Como
limitações do presente estudo podemos apontar aquelas próprias das pesquisas
com base de dados secundários, referente a qualidade do preenchimento das
fichas de notificação e alimentação dos sistemas de informação. As variáveis
cujos dados foram ignorados ou não informados, sem possibilidade de resgate da
informação, tornam-se um entrave ao pesquisador.
Uma
outra questão refere-se ao fato de que a amostra reflete a realidade das
notificações de apenas uma região do país, com características econômicas,
sociais e culturais específicas, dificultando a generalização dos achados. No
entanto, um ponto forte diz respeito ao recorte etário utilizado pela OMS e a
desagregação por duas faixas de idade, permitindo uma análise mais detalhada da
violência nesse grupo.
Os
resultados deste estudo indicaram que a violência sexual na região Sul do
Brasil ocorreu em maior proporção entre os adolescentes do sexo feminino, na
faixa etária de 10-14 anos, cor de pele branca e parda, com 5 a 8 anos de
estudo e solteiros. Em ambos os sexos, os fatores associados à violência sexual
foram a faixa etária de 10-14 anos, a cor da pele não branca e o agressor ser
do sexo masculino. Considerando apenas o sexo masculino possuir algum tipo de
deficiência aumentou a chance da ocorrência do desfecho, bem como o agressor
ser um cuidador ou conhecido da vítima. Já no sexo feminino a chance da
violência sexual aumentou consideravelmente com o agressor sendo um
desconhecido ou conhecido da vítima.
A
violência sexual é um fenômeno social que causa constrangimento, vergonha,
repúdio e revela uma imagem distorcida da sociedade. Tristemente estudos
apontam que as notificações representam apenas um recorte da realidade, e estes
números expõem as fragilidades ou ineficiências de nossas políticas de combate
e prevenção da violência sexual contra adolescentes, ampliando a sensação de
desamparo das vítimas e da sociedade como um todo.
Faz-se
necessário reelaborar nossa atual maneira de combater a violência sexual e
encontrar formas de nos aproximar do público adolescente, criando um diálogo
que envolva setores de governo, entidades civis, profissionais, pesquisadores e
a população em geral, na busca por formas de prevenção, acesso e suporte às
vítimas.
Ações
que visem a prevenção de violências em
crianças e adolescentes; a erradicação
da pobreza e superação de iniquidades;
ampliação de acesso de crianças,
adolescentes e suas famílias a mecanismos de
proteção social básicos; criação
de programas educativos de orientação e atendimento a
crianças, adolescentes e
suas famílias que estejam envolvidos em situações
de violência; implantação de
mecanismos que favoreçam o funcionamento dos conselhos
tutelares; melhoria dos
mecanismos de denúncias, notificação e
investigação das violências; promoção
do
protagonismo e autonomia de crianças e adolescentes para
estimular a construção
da cidadania; bem como investimentos em políticas e programas
com foco na
criança e adolescente são algumas das estratégias
que poderiam colaborar no
enfrentamento deste importante problema de saúde pública.
Conflito
de interesses
Não
há conflito de interesses.
Financiamento
O
estudo não recebeu financiamento para a sua realização.
Contribuições
dos autores
Concepção
e desenho da pesquisa:
Neves CM, Coelho EBS; Coleta de dados: Neves CM; Análise e
interpretação dos dados: Neves CM, Bolsoni
CC; Análise estatística: Bolsoni CC; Lindner SR; Redação do manuscrito: Neves CM,
Conceição TB, Coelho EBS; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo
intelectual: Neves CM, Baigorria J, Lindner SR, Coelho EBS