Enferm Bras 2022;21(5):663-79

doi: 10.33233/eb.v21i5.5078

REVISÃO

Aspectos subjetivos do câncer: um estudo de representação social

 

Rômulo Frutuoso Antunes*, Rachel Verdan Dib*, Carolina Cristina Scrivano dos Santos**, Raquel de Souza Ramos, D.Sc.***, Antonio Marcos Tosoli Gomes****, Denize Cristina de Oliveira, D.Sc.*****, Luiz Carlos Moraes França, M.Sc.******, Ana Paula Kelly de Almeida Tomaz********

 

*Enfermeiro, Residente em Oncologia pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), Pós-graduando em Cuidados Paliativos e Terapia de Dor pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG), **Enfermeira, Residente em Oncologia pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), Rio de Janeiro, RJ, ***Enfermeira do Instituto Nacional do Câncer e do Hospital Universitário Pedro Ernesto, Rio de Janeiro, RJ, ****Professor Titular do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica e do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), *****Enfermeira, Professora Associada da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, ******Enfermeiro, Doutorando em Enfermagem pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor do Centro Universitário Anhanguera de Niterói, Rio de Janeiro, RJ, *******Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, RJ

 

Recebido em 8 de fevereiro de 2022; Aceito em 21 de junho de 2022.

Correspondência: Luiz Carlos Moraes Franca, Centro Universitário Anhanguera de Niterói (UNIAN), Av. Visconde do Rio Branco, 123, 24020-000 Niterói RJ

 

Rômulo Frutuoso Antunes: romulofantunes@gmail.com

Rachel Verdan Dib: rachelvdib@gmail.com

Carolina Cristina Scrivano dos Santos: carolscrivano02@gmail.com@gmail.com

Raquel de Souza Ramos: kakelramos@gmail.com

Antonio Marcos Tosoli Gomes: mtosoli@gmail.com

Denize Cristina de Oliveira: dcouerj@gmail.com

Luiz Carlos Moraes França: lcmoraesfranca@hotmail.com

Ana Paula Kelly de Almeida Tomaz: kellyanapaula@yahoo.com.br

 

Resumo

Introdução: O câncer é uma doença crônica que impacta diretamente a vida das pessoas diagnosticadas devido à sua capacidade de comprometer a qualidade e continuidade da vida. Objetivo: Identificar aspectos subjetivos do câncer para os pacientes oncológicos presentes nas produções científicas nacionais e internacionais apoiados na Teoria das Representações Sociais (TRS). Métodos: Revisão integrativa da literatura, com abordagem qualitativa e descritiva. Utilizaram-se as bases de dados Lilacs, BDEnf e Medline, no período de junho de 2021, com os seguintes descritores: câncer AND representação social. Dos 27 artigos encontrados, 9 foram analisados através da análise de conteúdo temático-categorial. Resultados: Foram identificadas 123 unidades de registro, distribuídas entre 4 categorias: representação social do câncer como um processo de finitude, medo e negação; vivendo com câncer: mudanças físicas, impactos no cotidiano e sentimentos atrelados ao diagnóstico; representação social do câncer como um processo de cura, tratamento e suas complexidades; rede de apoio e repercussões sociais no viver com o câncer. Conclusão: Os conteúdos dimensionais relacionados ao câncer permeiam, pelo processo de finitude e negação, as mudanças físicas e no cotidiano, bem como os tratamentos disponíveis e suas complexidades, e os conteúdos referentes à rede de apoio.

Palavras-chave: neoplasia; Enfermagem Oncológica; cuidados de enfermagem; psicologia social.

 

Abstract

Subjective aspects of cancer: a study of social representation

Introduction: Cancer is a chronic disease that directly impacts the lives of diagnosed people due to its ability to compromise the quality and continuity of life. Objective: To identify subjective aspects of cancer for cancer patients present in national and international scientific productions supported by the Theory of Social Representations (SRT). Methods: Integrative literature review, with a qualitative and descriptive approach. The Lilacs, BDEnf and Medline databases were used in the period of June 2021, with the following descriptors: cancer AND social representation. Of the 27 articles found, 9 were analyzed through thematic-category content analysis. Results: 123 registration units were identified, distributed among 4 categories: social representation of cancer as a process of finitude, fear and denial; living with cancer: physical changes, impacts on daily life and feelings linked to the diagnosis; social representation of cancer as a process of healing, treatment and its complexities; support network and social repercussions in living with cancer. Conclusion: The dimensional contents related to cancer permeate the process of finitude and denial, the physical and daily changes, as well as the available treatments and their complexities, and the contents related to the support network.

Keywords: neoplasms; Oncology Nursing; nursing care; psychology, social.

 

Resumen

Aspectos subjetivos del cáncer: un estudio de representación social

Introducción: El cáncer es una enfermedad crónica que impacta directamente en la vida de las personas diagnosticadas por su capacidad de comprometer la calidad y continuidad de vida. Objetivo: Identificar aspectos subjetivos del cáncer para pacientes oncológicos presentes en producciones científicas nacionales e internacionales sustentadas en la Teoría de las Representaciones Sociales (TRS). Métodos: Revisión integrativa de la literatura, con enfoque cualitativo y descriptivo. Se utilizaron las bases de datos Lilacs, BDEnf y Medline en el período de junio de 2021, con los siguientes descriptores: cáncer y representación social. De los 27 artículos encontrados, 9 fueron analizados mediante análisis de contenido por categorías temáticas. Resultados: Se identificaron 123 unidades de registro, distribuidas en 4 categorías: representación social del cáncer como proceso de finitud, miedo y negación; vivir con cáncer: cambios físicos, impactos en la vida diaria y sentimientos vinculados al diagnóstico; representación social del cáncer como proceso de curación, tratamiento y sus complejidades; red de apoyo y repercusiones sociales en la convivencia con el cáncer. Conclusión: Los contenidos dimensionales relacionados con el cáncer permean el proceso de finitud y negación, los cambios físicos y cotidianos, así como los tratamientos disponibles y sus complejidades, y los contenidos relacionados con la red de apoyo.

Palabras-clave: neoplasias; enfermería oncológica; atención de enfermería; psicología social.

 

Introdução

 

A existência da Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer (PNPCC) traz ações holísticas para o paciente com câncer. Pensando nisso, a PNPCC tem como objetivo a redução da mortalidade e da incapacidade causada por esta doença, bem como diminuir a incidência de alguns tipos de câncer, contribuir para uma melhoria na qualidade de vida dos usuários através de ações de promoção, prevenção, detecção precoce, tratamento oportuno e cuidados paliativos [1].

Dessa maneira, a PNPCC ressalta a responsabilidade do Estado e das demais esferas de gestão de Saúde, a garantia ao serviço de saúde dos indivíduos com câncer baseada no tripé proposto pela Lei nº 8080/1990: promoção, proteção e recuperação [1,2]. Sabe-se que a principal porta de entrada na Rede de Atenção à Saúde (RAS) é a Atenção Básica e é a unidade de referência para o usuário do Sistema Único de Saúde (SUS), nesse sentido, urge a necessidade de profissionais com olhar voltado para a detecção precoce da referida doença e rastreamento adequado para alguns tipos deste, a fim de reduzir os agravos do diagnóstico tardio.

Diante do elevado número de casos de câncer estimados para o triênio 2020-2022, como também a alta mortalidade causada por essa doença, se identifica a indispensabilidade do profissional enfermeiro e a ampliação da visão acerca do paciente oncológico, entendendo-o como um ser social que vivencia momentos de tristeza, insegurança, angústia e muitas incertezas desde o diagnóstico dessa enfermidade. Assim, reconhece-se a importância da reformulação dos cuidados de enfermagem voltados a esse público ao entender que as demandas que ele apresenta giram em torno de aspectos físicos, sociais, espirituais e emocionais, não somente remetidos à doença em si [3,4,5].

O presente artigo possui como base teórica a Teoria das Representações Sociais (TRS), descrita por Serge Moscovici, psicólogo social, no ano de 1978. Ela traz a subjetividade de grupos distintos, que possuem diferentes vivências e experiências, sobre um objeto em comum, contribuindo para um melhor entendimento do contexto social existente [6]. A TRS considera a pessoa como um ser independente, visto que o conhecimento sobre o objeto é construído de acordo com os estímulos externos e/ou internos que a pessoa sofre, ou seja, sua representação sofre mudanças de acordo com os estímulos recebidos [6].

Nesse contexto, o questionamento que norteou este estudo foi: “Quais os aspectos subjetivos abordados nas produções científicas do viver com o câncer e suas representações sociais para os pacientes?” Seguindo essas premissas, o objetivo deste estudo é identificar aspectos subjetivos e representacionais do câncer para os pacientes oncológicos presentes nas produções científicas nacionais e internacionais.

 

Métodos

 

Trata-se de uma revisão integrativa da literatura, com abordagem qualitativa e descritiva. A pesquisa envolvendo a revisão integrativa é relevante no campo da saúde, uma vez que unifica, em um único estudo, os assuntos que foram discutidos de forma separada, outrossim, permite a identificação da necessidade de se investir em resultados que não foram evidenciados e em pesquisas cujos resultados são conflitantes [7].

Adotou-se à estratégia PICO, na qual os participantes (P) são os pacientes adoecidos pelo câncer, a intervenção (I) diz respeito aos aspectos subjetivos abordados nas produções científicas do viver com o câncer e suas representações sociais, a comparação (C) não é aplicável para este estudo, e os resultados (O) referem-se à dimensão representacional do paciente frente ao diagnóstico de câncer.

Para selecionar a amostra do estudo foram utilizadas as bases de dados, Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciência da Saúde (Lilacs), Base de Dados de Enfermagem (BDEnf) e Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (Medline), no mês de junho de 2021, adotando a combinação dos descritores: câncer AND representação social.

Para configurar a amostragem, foram aplicados os seguintes critérios de inclusão: artigos gratuitos e disponíveis na íntegra; idiomas português, inglês e espanhol; e artigos que abordassem o câncer e suas representações sociais como tema. Não realizou restrição temporal a fim de captar ao máximo os estudos publicados sobre a temática. Como critérios de exclusão, consideraram-se: teses, dissertações, publicações duplicadas e trabalhos que não atendem a temática.

Foram encontrados 27 trabalhos científicos na primeira busca; após aplicar os critérios de eleição para este estudo, restaram 21 publicações. Após análise dos títulos e resumos destes trabalhos, a amostra final resultou em 9 artigos científicos que respondem aos critérios desta pesquisa.

Para analisar os estudos, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo temático-categorial dos itens referentes aos resultados e as discussões das obras. Esta técnica permite identificar, por meio de um conjunto de técnicas de análise de comunicação, através de estratégias sistemáticas e objetivas, os conhecimentos sociais produzidos pelos conteúdos das mensagens [8].

Assim sendo, a análise de conteúdo compreende o processo pelo qual o material empírico é analisado de forma sistemática e codificado em unidades, as quais posteriormente corroboram para descrição das características provenientes dos discursos elencados [9]. Para este estudo, a análise de conteúdo adotada foi a análise categorial, a qual visa descobrir os núcleos de sentido de uma comunicação.

A análise de conteúdo categorial se configura da seguinte maneira: 1. leitura flutuante e aproximação geral do conteúdo do texto; 2. definição de hipóteses provisórias sobre o objeto estudado e o texto analisado; 3. determinação das unidades de registro (UR); 4. seleção das UR do corpus de análise; 5. construção das unidades de significação (US) ou temas; 6. análise temática das US; 7. análise categorial do texto; 8. tratamento e apresentação dos resultados [9].

 

Resultados

 

Após a escolha dos artigos, foram adicionados nesta análise 9 artigos científicos, representados no quadro 1, o qual apresenta as informações sobre os títulos, os autores, idioma de publicação, ano de publicação e identificação do periódico de origem.

 

Quadro 1Estudos sobre representações sociais do câncer, 2021

 

Fonte: Os autores, 2021

 

Cabe destacar que o assunto é amplamente discutido na literatura, no entanto, numa perspectiva temporal dos últimos 5 anos, foram identificados apenas quatro estudos, sendo apenas um em 2020, 2019, 2017 e 2016, respectivamente, e nenhuma publicação no ano de 2018. Percebe-se a ascensão da temática no campo da saúde como campo de pesquisa.

Em relação aos periódicos, a temática é discutida em três estudos do campo da Psicologia e seis na Enfermagem, o que revela que as representações sociais dos indivíduos são objetos de estudo predominantemente discutidos no campo da psicologia social, havendo harmonia interdisciplinar na saúde. Quanto ao idioma de publicação, a maioria dos trabalhos foram publicados em português, enquanto somente um foi publicado em espanhol, o que remete à necessidade de amplificar o assunto em periódicos internacionais.

No que se refere ao periódico de veiculação do artigo, dois foram publicados na Revista da Escola de Enfermagem USP, dois na Revista de Enfermagem UERJ, e os demais artigos foram publicados cada um nos seguintes periódicos: Texto & Contexto Enfermagem, Revista de Pesquisa Cuidado é Fundamental Online (Universidade Federal do Estado do Rio Janeiro), Psicologia em Estudo, Psicologia e Sociedade e Psicologia Teoria e Prática.

Através do resultado da análise de conteúdo categorial, foram encontradas 123 unidades de registro (UR), distribuídas em 4 categorias, as quais evidenciam os conteúdos apresentados pelos estudos analisados. A saber: 1) Representação social do câncer como um processo de finitude, medo e negação (46 UR); 2) Vivendo com câncer: mudanças físicas, impactos no cotidiano e sentimentos atrelados ao diagnóstico (34 UR); 3) Representação social do câncer como um processo de cura, tratamento e suas complexidades (25 UR); 4) Rede de apoio e repercussões sociais no viver com o câncer (18 UR). Essas categorias serão apresentadas a seguir.

 

Discussão

 

Representação social do câncer como um processo de finitude, medo e negação

 

A categoria 1 foi mais expressiva na análise do conteúdo categorial, representando 37,40% do total de 123 UR. Esta revela os sentimentos negativos dos pacientes frente ao diagnóstico de câncer baseado principalmente no tripé morte-medo-negação. Alguns exemplos de UR retirados dos estudos analisados demonstram estas representações:

 

“(...) os termos medo e morte, (...) podem expressar condições relativas ao câncer que se construíram no decorrer da história da doença”. [10]

“Apesar de uma sutil desvinculação do estigma atrelado à morte, o câncer ainda significa uma ameaça aos pacientes e possui o poder de afetar o bem-estar de pessoas adoecidas”. [10]

“(...) a palavra câncer sempre vem acompanhada de morte e (...) passar por esta experiência exige muito mais do que coragem e força, mas também preparo emocional (...). (...) o enfermeiro deve estar muito bem preparado para encarar o sofrimento do paciente e fazer que esse momento difícil se torne suportável tanto para o lado físico como para o emocional”. [5]

“(...) a presença das palavras doença, medo e morte, as quais refletem uma imagem negativa por parte dos sujeitos desta pesquisa quanto ao objeto estudado”. [15]

 

A evolução histórica do câncer construiu uma sequência de etapas que continua sendo passada por gerações há séculos: medo, dor, sofrimento e morte. Algumas dessas etapas mudaram com o passar dos anos, mas a última permanece e segue sendo a mais temida [17]. Embora seja possível notar alterações na percepção da sociedade sobre a referida doença e morte, os resultados das pesquisas mencionadas demonstram que a correlação entre essas duas palavras ainda mantém um forte vínculo, principalmente para aqueles que se deparam com o diagnóstico pela primeira vez.

Percebe-se nos discursos que ainda existe a linha tênue entre a morte e a cura atrelada ao câncer. Os pacientes ainda sofrem os anseios direcionados para o diagnóstico e veem a doença como ameaçadora da vida [5,13,14,15]. No entanto, com o avanço constante das tecnologias de saúde, observa-se mudança na óptica grupal onde, apesar do receio, veem-se elementos representacionais referentes à cura desta e a esperança por tratamentos curativos [11].

Ademais, os sentimentos negativos relacionados à patologia também permeiam a representação dos pacientes, como pode-se ver em alguma UR abaixo:

 

“(...) no que se refere ao medo, considera-se sua associação com a angústia e a ameaça, relativos ao adoecimento por câncer, assim como ao desafio da doença, ao atentado contra a vida e ao inesperado, inclusive se mencionou o fato de não se querer ouvir a palavra câncer e nem conhecer seu significado”. [10]

“O medo do câncer é sentimento presente na sociedade, em maior grau entre pessoas já diagnosticadas com a doença, mas também prevalente na população geral”. [10]

“(...) o diagnóstico de câncer tem efeito devastador na vida das mulheres, pois traz a ideia de morte, o medo de mutilações e desfiguração provocados pelos dolorosos tratamentos, além das perdas decorrentes da doença, ocasionando o surgimento de vários problemas emocionais”. [5]

 

No decorrer do processo evolutivo do câncer e do tratamento, as principais expressões emocionais dos pacientes e familiares são seguidas pelo medo: medo da morte, da dor e do sofrimento. A dor é um dos maiores temores frequentemente relatados, principalmente pelo estigma da dor intensa e incessante que permeia o câncer. Além disso, a dor é comumente associada ao agravamento da doença e ineficácia do tratamento [5,18].

Seguindo, assim, as representações negativas associadas ao câncer impactam diretamente no processo de adoecer [5]. O estigma que a doença tem para o doente e para a sociedade é arraigado por sentimentos temerosos, haja vista que trazem consigo as imagens corporais mutiladoras e as alterações no cotidiano, que muitas vezes, impactam drasticamente no convívio social e no campo econômico [10,12].

Receber o diagnóstico de câncer é um momento de grande carga emocional, especialmente pela estigmatização deste acerca do sofrimento e morte. A negação é considerada um mecanismo de defesa psíquica comumente utilizado ao diagnóstico, notícia de agravamento ou ineficácia do tratamento de uma doença crônica e essa defesa é, muitas vezes, necessária para evitar a ocorrência de um transtorno mental ou surto. A duração e intensidade deste mecanismo dependerá da forma de enfrentamento utilizada pelo paciente e sua rede social de apoio [19]. Na literatura, a negação é amplamente evidenciada e suas consequências a longo prazo devem ser consideradas, como a não adesão ao tratamento.

 

Vivendo com câncer: mudanças físicas, impactos no cotidiano e sentimentos atrelados ao diagnóstico

 

Esta categoria representa, quantitativamente, a segunda maior na análise, correspondendo a 27,64% do total de UR. Nela, abordam-se as questões do viver com o câncer no seu dia a dia, as mudanças corporais, as experiências diárias e suas formas de lidar com a doença. Os sujeitos passam por inúmeras situações e alterações que os obrigam a se reinventar para lidar com a sua condição atual, bem como existem aqueles que preferem negá-las do que acompanhá-las [12].

 

“A representação social, por outro lado, percebe as consequências físicas como algo muito mais permanente no tempo e não se diferencia em relação ao tipo de câncer contraído”. [13]

“[...] ou sintomas e sinais orgânicos mais complexos, que levam direta e indiretamente a limitações físicas e psicológicas – como impossibilidade de deambulação, ausência de sensibilidade tátil, a queda de cabelo, a cifose, entre outros”. [17]

“As alterações corporais também se configuraram como um grande impeditivo para que os participantes executassem suas atividades diárias, exigindo assim o seu afastamento do trabalho, o que também foi vivenciado com grande tristeza”. [12]

“Com maior variabilidade, a representação social também se referiu às mudanças em pacientes com câncer relacionadas às relações sociais, relações afetivas / sexuais e personalidade”. [13]

 

O processo de adoecimento por câncer pode causar alterações corporais, porém, os efeitos das principais terapêuticas antineoplásicas são os mais impactantes para os pacientes. Na literatura encontram-se mais evidências destes impactos em mulheres e crianças, como queda dos cabelos, perda de peso, limitações na realização de atividades físicas ou total impossibilidade, perda de membros ou partes do corpo em procedimentos cirúrgicos. Essas alterações corporais levam a uma ressignificação da autoimagem para estes indivíduos que passam a se enxergar e, em geral, serem enxergados pela sociedade como corpos doentes, debilitados e frágeis [13,19].

Observar seu corpo sofrer as mais diversas e dolorosas mudanças, sentindo-se totalmente sem controle sobre esses eventos, além de, em alguns casos, perder a autonomia para realizar as atividades diárias mais simples, perder sensibilidade tátil, paladar e, até mesmo, a libido, causam enorme sofrimento psicológico e emocional em toda pessoa acometida pelo câncer em qualquer idade e sexo. Aprender a conviver com um corpo diferente é uma árdua tarefa para o indivíduo e seus familiares e amigos, adaptar-se a uma nova realidade estética e funcional, mesmo que temporária em certos casos, dependerá do uso de mecanismos e de uma atenção multiprofissional abrangente [12,17].

Por ser um diagnóstico complexo, que demanda a constante presença da pessoa com câncer para a realização de múltiplos exames, além da realização do tratamento (ambulatorial ou hospitalar), os usuários e as suas famílias passam por readaptação, seja por meio da mudança na comunicação, redução do convívio social, no exercício de papéis e relacionamentos, abdicação de emprego para cuidar de si ou do seu ente, mudança do local de moradia a fim de melhorar o deslocamento ao serviço de saúde; além das questões emocionais, como medo e incerteza, e sentimentos que variam de raiva a não aceitação, todos esses iniciados a partir do recebimento do diagnóstico, sendo atrelados à nova realidade enfrentada [5,20].

Ainda nessa perspectiva, as reações decorrentes da terapêutica para o câncer debilitam sensivelmente os pacientes, tornando-os mais dependentes na realização de atividades comuns no dia a dia como tomar banho e limpar a casa, por exemplo, como também os impede de trabalhar, afetando a dimensão financeira e toda uma estrutura familiar a depender do papel que esse paciente ocupa, necessitando de adequações na família [5,21].

 

“Apesar de conhecerem os exames preventivos do câncer da próstata e a importância da sua realização na faixa etária em que se encontravam, os participantes não os realizavam. De modo geral, a busca pelos exames preventivos se deu tardiamente, a partir da manifestação e agravamento de sintomas ou, ainda, a partir de algum outro dano da saúde, como acidentes e lesões, doenças agudas, dentre outros, que exigia a busca imediata por um serviço de saúde”. [12]

“(...) aos exames preventivos, em especial ao exame de toque retal, também se revelaram como fatores que dificultavam a realização das ações de prevenção e diagnóstico precoce”. [12]

 

Os homens são historicamente menos atentos e proativos com relação à saúde, como apontado por Martins e Nascimento [12], muitos deles apresentam maior resistência e menor assiduidade a exames preventivos e pouca percepção de sinais e sintomas de determinadas doenças. Quando se aborda a questão do câncer de próstata e, principalmente, do exame de toque retal, diversos indivíduos recusam-se a realizar o exame ou o fazem tardiamente, quando já existem sinais e sintomas avançados. Apesar de muitos homens reconhecerem a importância de medidas preventivas, aspectos simbólicos da masculinidade suscitam na criação de barreiras para a adesão e assiduidade às unidades de saúde [12].

 

Representação social do câncer como um processo de cura, tratamento e suas complexidades

 

A categoria 3 representa 20,33% do total de 123 UR. Esta mostra os percalços no tratamento do câncer até atingir a cura e seus impactos na qualidade de vida do paciente, como pode-se ver alguns exemplos de UR retirados dos estudos analisados:

 

“De fato, atualmente a incurabilidade do câncer não é tão expressiva como outrora: houve um avanço importante no que tange ao diagnóstico e aos tratamentos para variados tipos de neoplasias, aumentando a sobrevida desses pacientes de maneira progressiva”. [10]

“Nesse contexto, cura transmite a ideia de livrar-se da doença e de continuar tendo uma vida saudável, fato que se contrapõem à morte (...) e à expressão sem-cura (...)”. [15]

 

De acordo com os estudos analisados, percebe-se a cura como um mecanismo para enfrentamento da doença, apesar dos dilemas da patologia e sua forte ligação com a morte. Os tratamentos oncológicos existentes, como cirurgia, quimioterapia e radioterapia, são importantes para o paciente, pois permitem que vislumbre a cura por meio destes [10,11,15].

 

“(...) o câncer, apesar de ser considerado como uma doença normal pelos pacientes, ainda carrega em si o medo da morte e possui um tratamento difícil de ser enfrentado”. [10]

“(...) Os discursos que se referem ao tratamento reforçam sua importância no combate ao câncer, (...), além da eficácia deste em relação à doença, associado ao elemento bom, no sentido de que o tratamento permite que a pessoa recupere sua saúde após o adoecimento”. [11]

“(...) aceitar, conformado, paciência, tranquilidade e vida, transmitindo a ideia de que a aceitação da patologia, a paciência para enfrentá-la e a manutenção da tranquilidade psíquica, mental, espiritual e social estão relacionadas a um maior sucesso no tratamento do câncer e, talvez, à sua cura”. [15]

 

Os aspectos positivos acerca da importância e necessidade do tratamento para o câncer estão cada vez mais difundidos pela sociedade, principalmente no que se relaciona à eficácia do mesmo e a possibilidade de cura. Uma visão diferente e positiva sobre este é um passo importante do processo de aceitação e enfrentamento da doença, além de contribuir para a construção de uma crença espiritual ou religiosa que auxilia na manutenção do equilíbrio emocional e psicológico durante todo o processo [11,15].

Entretanto, os tratamentos disponíveis atualmente para o câncer ainda possuem pontos negativos, sendo estes responsáveis por diversos sentimentos e percepções estigmatizadas sobre a doença, como medo dos diversos efeitos colaterais da quimioterapia. Como abordado por Wakiuchi et al. [10], o tratamento é visto pelos pacientes como difícil, um “mal necessário”, e o medo e desconhecimento criam cenários que, de fato, podem vir a acontecer, como a queda dos cabelos, o desconforto físico intenso, dentre outros, são mencionados por inúmeros pacientes ao iniciarem tal processo e, em alguns casos, tornam-se um dos motivos para o abandono deste.

 

“Os efeitos colaterais podem fazer com que os pacientes voltem suas percepções relativas à quimioterapia com ênfase nas consequências desagradáveis do tratamento, sendo esta a principal dificuldade encontrada pelos pacientes durante o período da terapêutica”. [11]

“(…) o próprio processo de tratamento é carregado de imagens negativas, nomeadamente a ocorrência de ressecções cirúrgicas, amputações para além dos efeitos colaterais da quimioterapia e radioterapia”. [14]

 

Os efeitos colaterais e psicológicos do tratamento são perceptíveis em quase todos os estudos analisados, haja vista que tais danos impactam diretamente na ótica do paciente frente a este processo oncológico. No estudo de Wakiuchi et al. [11], veem a análise prototípica repleta de cognemas voltados para os efeitos adversos da quimioterapia, como a queda do cabelo, enjoo, fraqueza, entre outros, enquanto no estudo de Martins e Nascimento [12], revela-se o impacto dos efeitos adversos do tratamento no corpo dos pacientes entrevistados, uma vez que as transformações corporais interferem negativamente no modo de se ver, pensar, sentir e agir. Tais impactos gerados são vistos como barreiras neste processo, a ponto de desqualificar uma representação positiva do mesmo.

 

Rede de apoio e repercussões sociais no viver com o câncer

 

A categoria foi a menor comparada às outras e representou 14,63% do total das UR. Este grupo revela a importância da rede de apoio, seja familiar ou social, durante o processo de tratamento do câncer, tendo em vista às alterações que alguns medicamentos podem ocasionar ao organismo e suas repercussões no cotidiano do paciente.

De acordo com a pesquisa de Wakiuchi et al. [10], os pacientes oncológicos obtiveram resultados positivos através do apoio da família no controle dos sintomas físicos, psicológicos e clínicos do câncer e do tratamento. Como pode-se ver em algumas UR abaixo:

 

“Ressalta-se a família (...), ao considerar seu papel como fonte de apoio e cuidados do paciente com câncer, no contexto de enfrentamento da doença”. [10]

“A família, a luta e a esperança se relacionam como estratégias positivas utilizadas pelos pacientes a fim de se protegerem contra os danos que a doença pode lhes causar”. [10]

“(...) encontraram no suporte espiritual uma estratégia para o enfrentamento da doença, alcançando assim uma expectativa de cura não somente do fator patológico ligado à doença, mas também ao fator emocional relacionado ao medo”. [5]

“A religiosidade tem sido descrita como fonte de suporte e conforto para os indivíduos, durante o período de sofrimento, por lhes propiciar a serenidade para enfrentar as adversidades da doença. Constituiu uma estratégia como suporte espiritual usado frequentemente entre os pacientes com doença maligna”. [5]

 

Para enfrentar o diagnóstico de câncer, os pacientes buscam por sentimentos bons, como a esperança, o otimismo, bem como pela rede de apoio à religiosidade/espiritualidade. Tais mecanismos são fontes de energias positivas das quais os pacientes se apegam para lidar com a nova situação a qual se encontram [10,15].

As relações sociais e individuais são influenciadas pelas crenças pessoais e pelas práticas religiosas/espirituais da comunidade as quais o indivíduo está inserido, bem como exercem interferência nas práticas terapêuticas [22]. Nas pesquisas analisadas, o suporte espiritual se fez basilar para o enfrentamento da patologia, uma vez que a fé no Divino corrobora para o paciente transcender no entendimento da doença, como também uma estratégia para alcançar a cura, reforçar os sentimentos de esperança e de otimismo para enfrentar o câncer e suas mazelas [5,15].

 

Conclusão

 

Os resultados destacaram alguns aspectos da representação social do câncer evidenciados pelas publicações científicas. Foram identificados conteúdos dimensionais relacionados à referida doença como um processo de finitude e negação pelos seus portadores, as mudanças físicas e os impactos no cotidiano, os tratamentos disponíveis e suas complexidades e, por fim, os conteúdos referentes à rede de apoio.

Desse modo, os sentidos e as crenças atrelados à doença são baseadas no estigma que o câncer tem em sua história e, também, na valorização do senso comum. Salienta-se que o estigma e a imagem negativa trazidos pela patologia são constitutivos da representação social e decorrem, em parte, da memória coletiva construída ao longo do tempo, a qual ainda persiste nas representações do câncer nos dias atuais. Porém, cabe destacar, que com o advento das tecnologias de saúde e do desenvolvimento constante de alternativas terapêuticas, tal representação tem ganhado novos horizontes, dos quais os pacientes passam a vislumbrar elementos positivos, como por exemplo, a cura.

Assim sendo, diante do investimento no conhecimento científico e nos tratamentos, surgem termos desencadeadores de mudança da representação do câncer de maneira que um subgrupo de pacientes passa a ver a doença como passível de cura, ao invés de uma sentença de morte.

Portanto, esta pesquisa é relevante no campo da enfermagem e da saúde, pois demonstra, através dos aspectos subjetivos dos pacientes sobre uma doença potencialmente ameaçadora da continuidade da vida, os sentimentos, as crenças, os conhecimentos e os anseios envolvidos no diagnóstico de câncer. Dessa forma, entender o que o usuário sabe e sente a respeito da sua condição possibilita ao profissional de saúde o ensejo de buscar medidas que proporcionem a melhor adesão aos tratamentos.

Ressalta-se, ainda, como limitação deste estudo, a possível dicotomia das publicações incluídas na revisão, bem como o fato de a palavra-chave “representação social” não fazer parte do Portal Descritores de Ciências da Saúde (DeCS), atravancando a localização dos estudos que utilizam esse referencial teórico.

 

Conflitos de interesse

Declaramos não termos conflitos de interesse.

 

Fontes de financiamento

Declaramos não termos recebido fontes de financiamento.

 

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa: Antunes RF, Dib RV, Santos CCS e Ramos RS; Coleta de dados: Antunes RF, Dib RV e Santos CCS; Análise e interpretação dos dados: Antunes RF, Dib RV e Santos CCS; Redação do manuscrito: Antunes RF, Dib RV, Santos CCS, Ramos RS, Gomes AMT, Oliveira DC, França LCM e Tomaz APKA; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Ramos RS, Gomes AMT, Oliveira DC, França LCM e Tomaz APKA

 

Referências

 

  1. Brasil. Ministério da Saúde. Anexo IX da Portaria de Consolidação n. 2 de 28 de setembro de 2017. Institui a Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer na Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet]. Brasília; 2017. [cited 2021 June 15]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0002_03_10_2017.html
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