Enferm
Bras 2022;21910;1-5
EDITORIAL
Da sofrência à violência
obstétrica-ginecológica: o clamor da mulher retratado na música e na medicina
Adília Maria Pires Sciarra, D.Sc.*, Zaida Aurora Sperli
Geraldes Soler, D.Sc.**
*Graduada em Letras, Especialista Língua
Instrumental, PUC, SP, Especialista Informática em Saúde, UNIFESP, SP, Membro
da Internacional ESP Teacher’s Association,
UK (IESPTA), Membro Participante da Organização Children’s
HeartLink (USA), atuante na pós-graduação da FAMERP,
**Obstetriz, enfermeira, docente e orientadora da
graduação e pós-graduação (mestrado acadêmico) da Faculdade de Medicina de São
José do Rio Preto (FAMERP)
Adília Maria Pires Sciarra: adilia@famerp.br
Zaida Aurora Sperli Geraldes Soler: zaidaaurora@gmail.com
No ano de 2021, duas ocorrências no
Brasil receberam grande atenção nas plataformas digitais: a morte da cantora
sertaneja Marília Mendonça e a assistência médica no período expulsivo do
parto, denunciada pela influenciadora digital Shantal
Verdelho. Os dois fatos nos levaram a escrever este Editorial, no contexto da
palavra sofrência, de um lado pela denominação como era exaltada a cantora
(rainha da sofrência) e a analogia com a violência obstétrica, que ficou
escancarada nos relatos e vídeos disseminados sobre a experiência no parto da
citada influencer.
As músicas de Marília Mendonça
arrebataram o Brasil com letras e melodias intensas e românticas. Mais do que
cantar sobre a sofrência de um amor não correspondido ou de uma traição; ela
empoderou as mulheres ao falar com simplicidade e honestidade sobre temas
cotidianos a partir do olhar feminino no sertanejo. Foi com o álbum de estreia,
"Marília Mendonça", de 2016, que ela conseguiu projeção nacional com
a canção "Infiel" e ganhou o título de "Rainha da
Sofrência", por cantar músicas de vociferação da mulher quanto ao amor não
correspondido, traição ou decepção amorosa. A mulher parou de cantar o que o
homem quer ouvir e passou a cantar o que a mulher gosta de ouvir. Antes, as
mulheres tinham que ouvir a música voltada para o homem", afirmou, em 2016
[1].
O que é a sofrência? A origem do termo é
incerta, mas parece ter surgido da junção de sofrimento com carência; o mesmo
que sofrimento; ação contínua de sofrer. No caso da música a palavra nada mais
é do que uma nova nomenclatura para chamar o que antes era conhecido como “dor
de cotovelo”. Sofrência pode ser incluída como neologismo, que é explicado como
criação de novos termos que não faziam parte da língua, ou atribuindo novos
significados a termos já existentes. A propósito, é possível evidenciar muitos
neologismos nos meios de comunicação, pois nesse espaço a linguagem é
disseminada em seu contexto atual, com objetivos comunicativos diversificados,
usando na criação lexical processos autóctones ou “empréstimo” linguístico [2].
Geralmente, os neologismos são criados a
partir de processos que já existem na língua: justaposição, prefixação,
aglutinação, verbalização e sufixação. Pode ser fruto de um comportamento
espontâneo, próprio do ser humano e da linguagem, ou artificial, para fins
pejorativos ou não. Como sofrência não se encontra no dicionário, existe a
teoria que deriva da palavra sofrença, que é uma
variação antiga de sofrimento [3].
Junto da eternização do sofrimento
amoroso da mulher expresso pela arte na música de Marília Mendonça, vimos o
sofrimento ginecológico-obstétrico expresso pela influenciadora digital Shantal Verdelho, nos relatos orais e em vídeo acerca do
atendimento do médico obstetra, no parto. Em áudio enviado a amigas, relata que
foi vítima de violência obstétrica por parte do médico que fez o parto de sua
segunda filha, em setembro. A mensagem foi divulgada na internet, e a
veracidade, confirmada por ela [4]. A gestação e o nascimento de um filho são
momentos importantes na vida de uma mulher, em que ela precisa de respeito,
acolhimento e cuidados. Mas algumas mulheres vivenciam o contrário: humilhação,
ameaças e gritos são marcas de violência obstétrica psicológica relatadas por
mães [5].
A palavra sofrência também já vem sendo
utilizada em comunicações científicas, mais no contexto da música, mas também
no enfoque de significação de violência, da desumanização, seja nas relações
interpessoais e familiares, seja na atenção em saúde, nas diferentes fases do
ciclo vital humano. As publicações abordam os diferentes tipos de ações
violentas nos relacionamentos interpessoais, quer sejam físicas ou de ameaças,
humilhações e desrespeito, reforçando a dicotomia vítima e agressor [6,7].
Segundo o site do Ministério da Saúde,
"um quarto das brasileiras que vivem partos normais referem ter sido
vítimas de violência e/ou maus-tratos nas maternidades, a chamada “violência
obstétrica". De acordo com o Conselho Nacional de Saúde, "violência
obstétrica" são abusos e desrespeitos sofridos pelas gestantes durante o
parto por profissionais e instituições de saúde. A violência obstetrícia e
ginecológica é uma forma de violência que há muito tempo está escondida. Na
privacidade da consulta médica ou do parto, as mulheres são vítimas de práticas
que são violentas ou que podem ser percebidas como tal. Incluem atos
inadequados ou não consensuais, tais como, episiotomias, ou intervenções
dolorosas sem anestesia. O comportamento sexista também tem sido relatado [8].
Nos últimos anos, milhares de mulheres
no mundo inteiro se manifestaram, em redes sociais e na mídia, sobre atos
sexistas e de violência experimentados durante consultas ginecológicas ou
durante o parto. Elas perceberam que estes não eram casos isolados. Esta
violência reflete uma cultura patriarcal que ainda é dominante na sociedade,
visível no campo da medicina. Mesmo com denúncias, protestos e reivindicações
de órgãos públicos e movimentos sociais, além de pesquisas com evidências
científicas sobre a violência obstétrica, tem se destacado no Brasil o discurso
médico hegemônico de resistência em debater e participar ativamente de
propostas de mudanças na assistência obstétrica. A criação e respeito a atos
normativos legais, campanhas de conscientização, criação de mecanismos de
informação e reclamação, participação de enfermeiros obstetras na assistência a
parturientes, com atuação compartilhada multi e
interprofissional, o desenvolvimento de competências na arte de “partejar”,
permitir o protagonismo da mulher e recursos financeiros adequados para os
estabelecimentos de saúde, são necessários para assistência obstétrica segura,
respeitosa e prazerosa [9,10,11,12,13,14,15].
Na última década, ações na internet, via
redes sociais, facilitada pela conectividade digital de grande parcela da
população, permitiram que mulheres vítimas de danos na assistência recebida
durante o ciclo gravídico-puerperal denunciassem as violências ou maus tratos
que sofreram, em especial aquelas que vivenciaram partos vaginais. Utilizando
as mídias digitais como ferramenta, foi amplamente divulgado no Brasil o
denominado “Teste da Violência Obstétrica” e o vídeo documentário “Violência
obstétrica – a voz das brasileiras” [16]. Ações como essas são somadas e
multiplicadas, dando voz às mulheres que estavam silenciadas, revelando o
barulho ensurdecedor da sofrência de gestantes, parturientes e puérperas.