Enferm Bras 2022;21(6):709-25
ARTIGO ORIGINAL
Prevalência e fatores
associados ao consumo de álcool em uma comunidade indígena do Nordeste
brasileiro
Kenned da Silva Teixeira, M.Sc.*,
Danielle Christine Moura dos Santos, D.Sc.**, Estela
Maria Leite Meirelles Monteiro***, Waldemar Brandão Neto, D.Sc.****,
Claudinalle Farias Queiroz de Souza, D.Sc.*****, Vania Rocha Fialho de Paiva e Souza, D.Sc.******, Gustavo Aires de Arruda, D.Sc.*******,
Angélica de Godoy Torres Lima, M.Sc.********, Jael
Maria de Aquino, D.Sc.*********
*Enfermeiro, Universidade
de Pernambuco (UPE), **Enfermeira, Professora Adjunta da Faculdade de
Enfermagem Nossa Senhora das Graças (FENSG) da Universidade de Pernambuco
(UPE), ***Enfermeira, Professora Associada do Departamento de Enfermagem da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ****Enfermeiro, Professor Adjunto da
Faculdade de Enfermagem Nossa Senhora das Graças (FENSG) da Universidade de
Pernambuco (UPE), *****Enfermeira, Professora Adjunta da Faculdade de
Enfermagem Nossa Senhora das Graças (FENSG) da Universidade de Pernambuco
(UPE), ******Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), *******Educador Físico, Professor
Assistente na Escola Superior de Educação Física (ESEF) da Universidade de
Pernambuco (UPE), ********Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem pelo Programa
Associado de Pós-Graduação UPE/UEPB, Docente do Instituto Federal de Educação
Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE) campus Belo Jardim, Belo Jardim/PE,
*********Enfermeira, Professora Livre Docente da Faculdade de Enfermagem Nossa
Senhora das Graças (FENSG) da Universidade de Pernambuco (UPE)
Recebido em 9 de março de
2022; Aceito em 13 de dezembro de 2022.
Correspondência: Angélica de Godoy Torres Lima,
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE) campus
Belo Jardim, Av. Sebastião Rodrigues da Costa, s/n - São Pedro, 55145-065 Belo
Jardim PE, E-mail: angelicagodoytl@gmail.com
Kenned da Silva Teixeira:
kenneddasilva@gmail.com
Danielle Christine Moura dos Santos:
danielle.moura@upe.br
Estela
Maria Leite Meirelles Monteiro: estelameirellesufpe@gmail.com
Waldemar
Brandão Neto: waldemar.neto@upe.br
Claudinalle Farias Queiroz de
Souza: claudinalle.souza@upe.br
Vania
Rocha Fialho de Paiva e Souza: vania.fialho@uol.com.br
Gustavo
Aires de Arruda: arrudaga@yahoo.com.br
Angélica
de Godoy Torres Lima: angelicagodoytl@gmail.com
Jael Maria
de Aquino: jael.aquino@upe.br
Resumo
Introdução: A situação atual do consumo do álcool
pelos indígenas é resultante do passado colonial, em consequência das
violências vivenciadas pelo povo, sendo catastrófica e desagregadora. Objetivo:
Analisar a prevalência e os fatores associados ao consumo de álcool em uma
comunidade indígena do Nordeste brasileiro. Métodos: Estudo descritivo,
transversal, desenvolvido na comunidade Pankararu,
com 268 participantes indígenas aldeados, na faixa etária mínima de 18 anos de
idade de ambos os sexos. Realizou-se entrevista com os participantes
aplicando-se dois instrumentos, um contendo as características
sociodemográficas e consumo do álcool e outro com o instrumento validado Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT). Resultados:
Identificou-se maior prevalência de consumo do álcool no sexo masculino
(75,3%), com baixa escolaridade (83,1%), solteiros (76,5%), não frequentam
igreja ou casa de reza (90,0%), consideram o consumo do álcool um problema
(94,3%) e fumam (77,9%). Conclusão: A chance de apresentar consumo de
risco foi cerca de quatros vezes maior entre os homens, as chances também foram
maiores para os participantes com baixa escolaridade e tabagistas, enquanto o
fato de frequentar alguma igreja ou casa de reza reduziu a chance do consumo de
risco do álcool.
Palavras-chave: índios sul-americanos; saúde de
populações indígenas; consumo de bebidas alcoólicas; Enfermagem.
Abstract
Prevalence and factors associated with alcohol consumption in an
indigenous community in Northeastern Brazil
Introduction: The current situation of alcohol consumption by
indigenous people is a result of the colonial past, because of the violence
experienced by the people, being catastrophic and disruptive. Objective:
To analyze the prevalence and factors associated with alcohol consumption in an
indigenous community in Northeastern Brazil. Methods: Descriptive,
cross-sectional study, developed in the Pankararu
community, with 268 indigenous participants in villages, aged at least 18 years
old of both sexes. Interviews were carried out with the participants, applying
two instruments, one containing the sociodemographic characteristics, and
alcohol consumption and the other with the validated instrument Alcohol Use
Disorders Identification Test (AUDIT). Results: A higher prevalence of
alcohol consumption was identified in males (75.3%), with low education
(83.1%), single (76.5%), who do not attend church or house of prayer (90.0 %),
consider alcohol consumption a problem (94.3%) and smoke (77.9%). Conclusion:
The chance of having risky consumption was about four times greater among men;
the chances were also higher for participants with low education and smokers,
while the fact of attending a church or house of prayer reduced the chance of
risky consumption of alcohol.
Keywords: Indians, South American; health of indigenous
peoples; alcohol drinking; Nursing.
Resumen
Prevalencia y factores asociados con el
consumo de alcohol en una comunidad indígena del Noreste de Brasil
Introducción: La situación
actual del consumo de alcohol por parte de indígenas es consecuencia
del pasado colonial, como consecuencia de la violencia vivida por el pueblo, siendo catastrófica y
disruptiva. Objetivo: Analizar la prevalencia y factores asociados al consumo de alcohol en una comunidad indígena del noreste de Brasil. Métodos: Estudio
descriptivo, transversal, desarrollado
en la comunidad
Pankararu, con 268
indígenas de aldeas, con edad mínima de 18 años de ambos
sexos. Fueron realizadas entrevistas con los participantes, aplicándose dos instrumentos, que contenían
características sociodemográficas y consumo de alcohol
y el instrumento validado Alcohol
Use Disorders Identification
Test (AUDIT). Resultados: Se identificó mayor prevalencia de consumo de alcohol en sexo masculino (75,3
%), con baja escolaridad
(83,1 %), soltero (76,5 %), que no asiste a iglesia o casa de oración (90,0 %), considera el
consumo de alcohol un
problema (94,3%) y fumadores (77,9%). Conclusión:
La probabilidad de tener un consumo de riesgo fue unas cuatro veces mayor entre los hombres, las
probabilidades también fueron
mayores para los
participantes con bajo nivel
educativo y fumadores, mientras que el hecho de asistir
a iglesia o casa de oración redujo la probabilidad de consumo de alcohol de riesgo.
Palabras-clave: indios sudamericanos;
salud de poblaciones
indígenas; consumo de bebidas alcohólicas; Enfermería.
O consumo
de bebidas alcoólicas pelos povos indígenas no Brasil antecede a chegada dos
portugueses, os nativos já produziam e consumiam bebidas fermentadas. Com a
colonização portuguesa, o uso do álcool, que antes era visto de forma
tradicional, com a produção e consumo de bebidas fermentadas restritas aos
rituais e cerimônias, foi sendo substituído pelas bebidas destiladas, levando a
mudanças nas tradições sobre a forma de beber e nos padrões de consumo,
induzindo à dependência alcoólica dessa população configurando um problema
social e de saúde pública [1].
O consumo
do álcool acontecia nos rituais e festividades e sua produção era feita pelos
próprios, tendo a liberdade de consumir toda a substância preparada, desde que
não causassem desordem. Em detrimento do contato interétnico, os indígenas
passam a consumir as bebidas destiladas, com fabricação de modo industrial, em
grande quantidade, com teor alcoólico mais elevado e de baixo custo financeiro,
levando-os a dependência alcoólica com embriaguez excessiva e sem ponderação,
gerando violência, suicídio, desagregação social e surgimentos de patologias
relacionadas as mudanças e a introdução de novos hábitos [2].
Os dados
epidemiológicos comparativos demonstram que as taxas de consumo variam entre os
grupos estudados, indicando que não há uma única causa universal para seu
abuso. A prevalência da dependência de álcool em povos indígenas na Austrália,
Nova Zelândia, Canadá e Estados Unidos da América foi relatada em revisão
sistemática, em que os indicadores variaram amplamente, desde 3,8 a 33,3%, e
quando avaliada conforme o sexo, essa prevalência ficava em torno de 3 a 32,8%
para homens e 1,3 a 7,6% para mulheres, identificou-se que oito instrumentos
diferentes foram usados e nenhum era específico para indígenas [3].
No
Brasil, o consumo de bebida alcoólica em indígenas também apresentou índices
variáveis de prevalência que vão desde 19 a 70%. Em comunidade Indígena do
Brasil Central (19%), entre os povos Potiguaras do estado da Paraíba (41,8%), os Mura na Amazônia brasileira (40,2%) e os Karipuna, no Amapá, extremo Norte da Amazônia brasileira
(70%) [2,4,5,6].
O álcool
é fator causal em mais de 60 tipos de doenças e lesões, como também é um
componente importante em diversas causas de óbito, como acidentes de
transporte, agressões, diabetes, tuberculose, síndrome da imunodeficiência
adquirida (AIDS) e alguns tipos de câncer. De 2010 a 2012, foram registradas no
Brasil, a cada ano, quase 20 mil mortes nas quais o consumo de álcool foi
condição necessária para sua ocorrência, equivalendo a mais de 1500 mortes por
mês, ou 50 por dia, sendo as doenças do fígado como uma das principais causas
[7].
Além de
consequências prejudiciais à saúde, o uso excessivo do álcool inflige perdas sociais
e econômicas significativas para os indivíduos e a sociedade em geral. O uso
nocivo de álcool é apontado como um fator que deve ser considerado para
garantir ações sociais e o desenvolvimento econômico em todo o mundo. Para a
OMS, a prevenção e a redução do uso nocivo do álcool devem ser tratadas como
prioridade, para que se alcance a meta de reduzir em 10% o consumo nocivo
mundial até 2025 [8].
Tais
pesquisas demonstram a necessidade de se investigar as causas que originam ou
determinam o consumo abusivo de álcool em grupos específicos da população
indígena, visto que há uma carência de pesquisas epidemiológicas que permitam
em linhas gerais dimensionar as demandas do uso prejudicial de álcool por povos
indígenas e orientar a execução dos serviços de saúde.
O
conhecimento dos fatores de risco de transtornos do uso de álcool é essencial
para orientar as políticas de saúde pública, controle de riscos e danos e de
promoção da saúde contra o uso abusivo de álcool, visando aperfeiçoar as políticas
públicas existentes, desde a regulação da oferta até a venda nos mais diversos
contextos sociais e culturais brasileiros [9]. Perante o exposto, o presente
estudo teve como objetivo analisar a prevalência e os fatores associados ao
consumo de álcool entre os povos indígenas da etnia Pankararu.
Trata-se
de estudo descritivo, transversal realizado em uma comunidade indígena
localizada no sertão pernambucano, próxima às margens do Rio São Francisco, nos
limites dos municípios de Petrolândia, Tacaratu e
Jatobá, a 430 km do Recife, Pernambuco, Brasil. A amostra foi constituída por
índios ou pessoas que se autodeclararam indígenas; que vivem em uma das 12
aldeias Pankararu, na faixa etária mínima de 18 anos
de idade de ambos os sexos, de acordo com a Resolução Nº. 304/2000 [10]. Sendo
excluídos do estudo índios com dificuldades de compreensão ou com déficit
cognitivo.
Para o
cálculo amostral, utilizou-se o software Epi Info 7, estabelecendo uma margem
de erro de 5%, intervalo de confiança de 99%, prevalência de problema de 12,1%,
conforme estudo realizado por Medeiros [11] em uma população de 5.474 sujeitos,
obtendo uma amostra de 268 indígenas. No presente estudo, a amostragem foi do
tipo não probabilística por conveniência, justificando-se por se tratar de uma
população de difícil acesso e por ser um estudo exploratório.
Os dados
foram obtidos por meio de entrevista, através de visitas domiciliares e no Polo
Base, em um local reservado de modo a preservar a privacidade dos entrevistados.
A entrevista foi realizada mediante aplicação de um questionário referentes às
características sociodemográficas elaboradas pelos pesquisadores a partir de
informações importantes quanto ao contexto relatado na literatura sobre a
temática e o instrumento Alcohol Use Disorders Indentification Test
(AUDIT) [11].
O AUDIT
foi um instrumento desenvolvido pela OMS, idealizado para ser utilizado na
atenção primária como instrumento de rastreamento para uso problemático de
álcool. De fácil e rápida aplicação, é composto por 10 itens, cada um com
margem de 0 a 4 pontos, permitindo um espectro de pontuação de 0 a 40. A
classificação do uso da substância identifica quatro diferentes padrões de
consumo: uso de baixo risco - 0 a 7 pontos, em que o consumo que provavelmente
não levará a problemas; uso de risco - 8 a 15 pontos, consumo que poderá levar
a problemas; uso nocivo - 16 a 19 pontos, consumo que provavelmente já tenha
levado a problemas e provável dependência - 20 a 40 pontos. O termo "uso
problemático" caracteriza os três últimos padrões de consumo da substância
[12,13].
Foram
realizadas análises descritivas dos dados, com a apuração de frequências
simples absolutas e relativas para as variáveis categóricas em estudo. Foi
realizado o teste Qui-quadrado de Pearson para
verificar a associação entre cada variável independente do estudo com a
variável dependente que foi o padrão de consumo de álcool. Nos casos em que os
pressupostos do teste não foram satisfeitos, utilizou-se o teste Exato de Fisher.
Os valores de Odds Ratio
(OR) com seus respectivos IC 95% foram calculados diretamente das frequências
observadas para identificar a associação entre as variáveis dependentes (uso de
álcool na vida e consumo de risco) e independentes, considerando um p-valor
<0,05 para significância estatística dos testes de hipóteses.
Para
desenvolvimento do estudo foram respeitadas as exigências legais determinadas
pela Resolução 466/12, considerando as especificidades indígenas [14]. O estudo
foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Complexo Hospitalar
HUOC/PROCAPE sob número de parecer 2.033.075.
Na tabela
I verifica-se que a maioria dos indígenas foram do sexo feminino, possuíam
idade de 18 a 30 anos ou de 31 a 45 anos, possuíam o ensino médio completo,
eram solteiros e tinham renda familiar de 1 salário mínimo.
Tabela I - Perfil pessoal, de moradia e
religioso dos Indígenas Pankararu, 2017
¹Teste Qui-quadrado; SM = salário mínimo
Observa-se
que 84% do grupo reside em território indígena Pankararu
desde o nascimento. Entre aqueles que moraram em território distante do
Nordeste em área urbana (53,3%) e retornaram para terra indígena Pankararu, alegaram como principal motivo a constituição
familiar (69,6%). Verifica-se que a maioria dos participantes citaram a
presença de igreja católica presente em sua terra e afirmaram que frequentam
algum dos templos religiosos, sendo a própria igreja católica a mais visitada,
contudo 91,4% dos participantes relataram participar dos rituais do povo Pankararu.
Conforme
dados apresentados na tabela II, verifica-se que a maioria dos indígenas fazem
uso de bebida alcoólica, sendo a cerveja a mais consumida. A primeira
experiência de consumo em 47,3% dos indivíduos foi com idade entre 12 e 17
anos. Quanto aos lugares em que mais costumam consumir, está o consumo dentro
da aldeia, onde também costumam comprar a bebida. Na maioria das vezes o
consumo ocorre em festa/confraternização com amigos e familiares, sendo a
própria casa o local mais citado. A maioria dos participantes indicaram
considerar o consumo de bebida alcoólica um problema. Quanto ao uso de cigarro
industrializado, a maioria dos índios informaram não utilizar e menos de 2%
relataram usar outros tipos de drogas.
Tabela II - Distribuição do consumo atual de
bebida alcoólica pelos indígenas Pankararu e
avaliação do risco de dependência alcoólica - AUDIT, 2017
¹Teste Qui-quadrado
Ainda na
tabela II, verifica-se que na avaliação do risco de dependência alcoólica
segundo o AUDIT o presente estudo identificou uma elevada prevalência de baixo
risco de consumo (74,0%) entre os participantes. O mesmo ocorreu quando foi
avaliado apenas o grupo que se declara usuário de bebida alcoólica (62,1%),
porém observa-se que 22,0% apresenta o consumo de risco.
Na tabela
III verifica-se maior prevalência do consumo de bebida alcoólica no grupo do
sexo masculino, com 60 anos ou mais, que possui ensino fundamental incompleto,
solteiro e com renda familiar menor do que 1 salário mínimo. Foi identificada
associação significativa do consumo de bebidas alcoólicas com o sexo (p =
0,002), a escolaridade (p = 0,012) e o estado civil (p = 0,004).
Quanto à
distribuição do consumo de bebida alcoólica, segundo o perfil religioso dos
índios avaliados (tabela III), há maior prevalência do consumo de bebidas
alcoólicas no grupo de índios que não frequenta igreja ou casa de reza e que
participa dos rituais do povo Pankararu. O teste de
independência foi estatisticamente significante no fator "frequentar
alguma igreja ou casa de reza da comunidade" (p < 0,001). Encontra-se
uma maior prevalência do consumo nos indígenas que não consideram o uso da
bebida alcoólica um problema (p < 0,001) e que possui o hábito de fumar
cigarro (p = 0,004).
Tabela III - Associação do consumo de bebida
alcoólica com variáveis sociodemográficas e perfil religioso dos indígenas Pankararu, 2017
¹Teste Qui-quadrado. ²Teste Exato de Fisher
Conforme
tabela IV, a prevalência de consumo de risco de álcool (≥ 8 pontos),
encontrada na amostra foi de 26,1%. Os homens apresentaram cerca de 4 vezes
mais chances de ter consumo de risco. Para a variável escolaridade, a maior
prevalência de consumo de risco está entre o grupo com < 8 anos de estudo,
apresentando 2,4 vezes mais chance de apresentar esse desfecho. Em relação a
frequentar alguma igreja ou casa de reza e o consumo de risco maior prevalência
de consumo foi observada para os indivíduos que não frequentam tais
instituições, conferindo fator protetor para os que frequentam (OR = 0,177).
Tabela IV - Descrição da amostra segundo
variáveis sociodemográficas e tabagismo, prevalência de consumo alcoólico de
risco (AUDIT ≥ 8) e análise bruta (regressão simples) entre o consumo de
risco e os preditores do povo indígena Pankararu,
2017
¹Teste Qui-quadrado. 2Intervalo de confiança
Os
fumantes apresentaram prevalência de 39,4% de consumo de risco, enquanto entre
os não fumantes essa foi de 17,6%. A chance de indivíduos fumantes apresentarem
consumo de risco foi aproximadamente três vezes maior em relação aos não
fumantes. Participar do ritual do povo Pankararu não
apresentou associação, embora foi possível observar que o grupo que não
participa dos rituais apresenta a maior prevalência de dependentes, com 34,8%,
apresentando OR = 0,632.
No
presente estudo, o consumo de bebidas alcoólicas foi declarado por 67,7% dos
participantes, sendo identificada uma prevalência de 26% para o consumo de
risco do álcool. Ao analisar as informações apenas daqueles que declararam
consumir álcool, essa prevalência aumentou para 37,9%. Dados semelhantes foram
encontrados nos índios da etnia Kaingáng [15] que
apresentaram prevalência de 26,8%. Contudo, pode-se considerar elevada a
prevalência do presente estudo quando comparada a 10,1% entre os Terenas de
Mato Grosso do Sul [16] e 13,27% da população aldeada dos indígenas do estado
de Tocantins [17] e inferior a existente entre indígenas Xukuru
de Ororuba [11] cuja prevalência é de 44,3% de consumo.
Entre os Pankararus, a cerveja é a mais consumida, seguida pela
pinga/cachaça e o vinho, dados semelhantes aos tipos de bebidas mais consumido
pela população brasileira em geral, evidenciado no I Levantamento Nacional
sobre os padrões de consumo de álcool na população brasileira, cujos resultados
apontam uma preferência nacional pela cerveja (61%), seguida do vinho (25%) e
outras bebidas destiladas (12%) [18].
Ao
analisar o padrão de consumo de risco entre os sexos, verificou-se maior
proporção entre os homens. Estes resultados corroboram o que tem sido
amplamente descrito na literatura [11,15,16,18,19]. A cultura de dominação
masculina e a associação do álcool aos momentos de lazer, relaxamento e
descontração desempenham forte influência para o estabelecimento dessa
realidade. Já as mulheres são mais susceptíveis aos prejuízos causados pelas
bebidas alcoólicas do que os homens, tanto para fatores biológicos, pois sofrem
danos cerebrais e de outros órgãos mais graves e mais rápidos após a compulsão
ou abuso crônico de álcool, quanto para a vulnerabilidade à violência associada
ao seu consumo [20,21].
Aspecto
importante observado nesta pesquisa foi que o início do consumo ocorreu para
elevada proporção dos participantes entre 12 e 17 anos, sendo a compra e
consumo de maior frequência na aldeia e em situações de festas com os amigos e
familiares. Apesar do Estatuto do Índio [22], Lei nº 6.001, de 19 de dezembro
de 1973, no seu artigo 58, proibir a entrada e comercialização de bebidas
alcoólicas em área indígena, observa-se que não existe um controle efetivo.
Muitos
dos indígenas Pankararu exercem funções trabalhistas
fora das terras indígenas e residem em terras indígenas, existindo uma
ambiguidade da norma legal, caracterizando o consumo fora das terras indígenas
como lícito e dentro delas ilícito, surgindo como alternativa a fuga da própria
lei. A ausência de empregos, os baixos preços da produção agrícola e diminuição
das verbas governamentais repassadas à população, fazem da venda do álcool uma
possibilidade de aumentar a renda, acentuando o valor financeiro em detrimento
do “valor de uso" [23].
Com
relação à escolaridade, o estudo identificou uma maior prevalência do uso do
álcool entre os indígenas com ensino fundamental incompleto e uma maior
associação do uso de risco de álcool com menor escolaridade. Já o estudo
realizado com os povos indígenas Xucuru de Ororubá,
não mostrou maior chance de consumo de bebida alcoólica, porém o autor destaca
que a maioria dos nativos possuía uma baixa escolaridade, confirmando o baixo
grau de instrução entre os povos indígenas [11].
Apesar de
majoritariamente considerarem o consumo do álcool um problema, a maioria dos
indígenas fazem uso de risco. Destaca-se o papel da mídia que tem romantizado e
estimulado o consumo do álcool, associando tal consumo a sexualidade, beleza e
bem-estar. As empresas de publicidade raramente tratam o álcool pelo
estigmatizado nome “droga”, facilitando a sua aceitação e veiculação [24].
No
presente estudo, o consumo abusivo de álcool está associado ao tabagismo,
corroborando estudo de André et al. [25], em que o uso do cigarro foi
associado ao consumo de bebida alcoólica, pois favorece desejo em consumir o
cigarro, que os deixa relaxados, menos estressados e com sensação prazerosa.
Frequentar
alguma igreja ou casa de reza mostrou-se como fator protetor para o consumo de
álcool, pois participar destas instituições geralmente requer que o indivíduo
siga algumas regras, como a do não uso do álcool. Apesar de outros estudos não
encontrarem diferença estatisticamente significativa quanto às taxas de
alcoolismo, destacam a importância dessas instituições nas tentativas de se
abster e se manter em abstinência [26,27,28].
A
participação nos rituais Pankararu aparece com uma
alta prevalência para abstinentes, porém a identificação da relação do consumo
do álcool e os rituais requer uma análise mais aprofundada a fim de compreender
o processo de incorporação de tal bebida pelos nativos. Acioli [23] traz em seu
estudo que, durante o ritual menino do rancho, um dos principais rituais do
povo Pankararu, cachaça foi servida, porém não foi
possível identificar o papel desta substância no rito, pois tradicionalmente
existe um limite do que pode ser visto por não indígenas nesses rituais.
Historicamente
a inserção do álcool destilado na cultura etílica do povo indígena foi pautada
pela dominação dos índios pelas civilizações europeias, modificando sua forma
de beber e influenciando o comportamento atual dos nativos [24]. Segundo
Fernandes [29], os europeus souberam se imiscuírem nas estruturas sociais,
políticas e culturais nativas e utilizar a universal busca humana pelas
substâncias psicoativas em função de suas próprias ações de conquistas e
utilizá-las em proveito próprio. Diversos documentos históricos relatam que o
suposto vício da bebida por partes dos nativos chegou a ser apresentado como
uma circunstância atenuante para roubo das terras indígenas praticado pelos
europeus e pela sociedade nacional.
Quando
tratamos da incorporação da bebida destilada nos rituais da população indígena,
destaca-se que apesar do contato com os europeus e a chegada das bebidas
destiladas serem responsáveis por muitos agravos à população, é certo que os
índios possuem dinâmicas próprias e autônomas para determinar as formas
particulares segundo os quais eram absorvidas as alterações da experiência
etílica resultante do contato [24].
Estudos
epidemiológicos sobre os padrões de consumo de bebidas alcoólicas ajudam na compreensão
da magnitude do problema fornecendo informações importantes para as lideranças
indígenas, gestores e profissionais da área da saúde e a própria população.
Segundo Oliveira [30], as ações de saúde dentro das terras indígenas devem
perpassar pelo desenvolvimento de ações integradas e articuladas aos saberes e
práticas tradicionais do povo, concentrando-se em componentes educativos, que
propiciem a disseminação de conhecimento científico articulado ao saber
popular, instrumentalizando os profissionais de saúde e a população na
identificação e priorização dos problemas de saúde, como também no levantamento
de propostas para sua resolutividade.
Entre as
limitações deste estudo, destaca-se que, por se tratar de estudo transversal,
seus resultados não permitem afirmar relação de causalidade, a autorreferência
ao consumo de bebidas alcoólicas pode ter sido subestimada. Deve-se ainda
ressaltar a limitação advinda do instrumento utilizado que, não contempla as
especificidades das populações indígenas. Porém, o instrumento está validado
para a população brasileira e já foi utilizado em outros estudos com indígenas
brasileiros possibilitando a comparação dos resultados.
A
realização deste estudo permitiu a compreensão do uso do álcool em uma
população indígena, bem como identificou a elevada prevalência de consumo de
bebidas alcoólicas e o tabagismo como comportamento de risco associado. Algumas
variáveis sociodemográficas e culturais, tais como sexo, escolaridade e frequentar
alguma igreja ou casa de reza parecem influenciar o padrão de consumo de risco.
O consumo
de álcool em comunidades indígenas brasileiras parece ser um fenômeno complexo,
multifatorial e com influências socioculturais. Intervenções que visem a redução
do consumo de álcool nessas comunidades devem considerar tais aspectos em suas
estratégias de intervenção, que busque a promoção da saúde das comunidades
indígenas, respeitando sua organização cultural, procurando desenvolver nesses
grupos valores relacionados à qualidade de vida e hábitos saudáveis.
Conflito
de interesse
Não há
nenhum conflito de interesse de quaisquer um dos autores.
Fonte
de financiamento
A pesquisa
foi financiada pela Universidade de Pernambuco (UPE)
Contribuição
dos autores
Concepção
e desenho da pesquisa:
Teixeira KS, Aquino JM; Coleta de dados: Teixeira KS, Aquino JM; Análise
e interpretação dos dados: Teixeira KS, Aquino JM, Santos DCM, Monteiro
EMLM, Brandão Neto W, Souza CFQS, Souza VRFP, Lima AGT; Análise estatística:
Arruda GA; Redação do manuscrito: Teixeira KS, Aquino JM, Brandão Neto
W, Arruda GA, Lima AGT; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo
intelectual importante: Santos DCM, Monteiro EMLM, Brandão Neto W, Souza
CFQS, Souza VRFP, Arruda GA, Lima AGT