Enferm Bras 2022;21(6):709-25

doi: 10.33233/eb.v21i6.5123

ARTIGO ORIGINAL

Prevalência e fatores associados ao consumo de álcool em uma comunidade indígena do Nordeste brasileiro

 

Kenned da Silva Teixeira, M.Sc.*, Danielle Christine Moura dos Santos, D.Sc.**, Estela Maria Leite Meirelles Monteiro***, Waldemar Brandão Neto, D.Sc.****, Claudinalle Farias Queiroz de Souza, D.Sc.*****, Vania Rocha Fialho de Paiva e Souza, D.Sc.******, Gustavo Aires de Arruda, D.Sc.*******, Angélica de Godoy Torres Lima, M.Sc.********, Jael Maria de Aquino, D.Sc.*********

 

*Enfermeiro, Universidade de Pernambuco (UPE), **Enfermeira, Professora Adjunta da Faculdade de Enfermagem Nossa Senhora das Graças (FENSG) da Universidade de Pernambuco (UPE), ***Enfermeira, Professora Associada do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ****Enfermeiro, Professor Adjunto da Faculdade de Enfermagem Nossa Senhora das Graças (FENSG) da Universidade de Pernambuco (UPE), *****Enfermeira, Professora Adjunta da Faculdade de Enfermagem Nossa Senhora das Graças (FENSG) da Universidade de Pernambuco (UPE), ******Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), *******Educador Físico, Professor Assistente na Escola Superior de Educação Física (ESEF) da Universidade de Pernambuco (UPE), ********Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem pelo Programa Associado de Pós-Graduação UPE/UEPB, Docente do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE) campus Belo Jardim, Belo Jardim/PE, *********Enfermeira, Professora Livre Docente da Faculdade de Enfermagem Nossa Senhora das Graças (FENSG) da Universidade de Pernambuco (UPE)

 

Recebido em 9 de março de 2022; Aceito em 13 de dezembro de 2022.

Correspondência: Angélica de Godoy Torres Lima, Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE) campus Belo Jardim, Av. Sebastião Rodrigues da Costa, s/n - São Pedro, 55145-065 Belo Jardim PE, E-mail: angelicagodoytl@gmail.com

 

Kenned da Silva Teixeira: kenneddasilva@gmail.com

Danielle Christine Moura dos Santos: danielle.moura@upe.br  

Estela Maria Leite Meirelles Monteiro: estelameirellesufpe@gmail.com

Waldemar Brandão Neto: waldemar.neto@upe.br

Claudinalle Farias Queiroz de Souza: claudinalle.souza@upe.br

Vania Rocha Fialho de Paiva e Souza: vania.fialho@uol.com.br

Gustavo Aires de Arruda: arrudaga@yahoo.com.br

Angélica de Godoy Torres Lima: angelicagodoytl@gmail.com

Jael Maria de Aquino: jael.aquino@upe.br

 

Resumo

Introdução: A situação atual do consumo do álcool pelos indígenas é resultante do passado colonial, em consequência das violências vivenciadas pelo povo, sendo catastrófica e desagregadora. Objetivo: Analisar a prevalência e os fatores associados ao consumo de álcool em uma comunidade indígena do Nordeste brasileiro. Métodos: Estudo descritivo, transversal, desenvolvido na comunidade Pankararu, com 268 participantes indígenas aldeados, na faixa etária mínima de 18 anos de idade de ambos os sexos. Realizou-se entrevista com os participantes aplicando-se dois instrumentos, um contendo as características sociodemográficas e consumo do álcool e outro com o instrumento validado Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT). Resultados: Identificou-se maior prevalência de consumo do álcool no sexo masculino (75,3%), com baixa escolaridade (83,1%), solteiros (76,5%), não frequentam igreja ou casa de reza (90,0%), consideram o consumo do álcool um problema (94,3%) e fumam (77,9%). Conclusão: A chance de apresentar consumo de risco foi cerca de quatros vezes maior entre os homens, as chances também foram maiores para os participantes com baixa escolaridade e tabagistas, enquanto o fato de frequentar alguma igreja ou casa de reza reduziu a chance do consumo de risco do álcool.

Palavras-chave: índios sul-americanos; saúde de populações indígenas; consumo de bebidas alcoólicas; Enfermagem.

 

Abstract

Prevalence and factors associated with alcohol consumption in an indigenous community in Northeastern Brazil

Introduction: The current situation of alcohol consumption by indigenous people is a result of the colonial past, because of the violence experienced by the people, being catastrophic and disruptive. Objective: To analyze the prevalence and factors associated with alcohol consumption in an indigenous community in Northeastern Brazil. Methods: Descriptive, cross-sectional study, developed in the Pankararu community, with 268 indigenous participants in villages, aged at least 18 years old of both sexes. Interviews were carried out with the participants, applying two instruments, one containing the sociodemographic characteristics, and alcohol consumption and the other with the validated instrument Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT). Results: A higher prevalence of alcohol consumption was identified in males (75.3%), with low education (83.1%), single (76.5%), who do not attend church or house of prayer (90.0 %), consider alcohol consumption a problem (94.3%) and smoke (77.9%). Conclusion: The chance of having risky consumption was about four times greater among men; the chances were also higher for participants with low education and smokers, while the fact of attending a church or house of prayer reduced the chance of risky consumption of alcohol.

Keywords: Indians, South American; health of indigenous peoples; alcohol drinking; Nursing.

 

Resumen

Prevalencia y factores asociados con el consumo de alcohol en una comunidad indígena del Noreste de Brasil

Introducción: La situación actual del consumo de alcohol por parte de indígenas es consecuencia del pasado colonial, como consecuencia de la violencia vivida por el pueblo, siendo catastrófica y disruptiva. Objetivo: Analizar la prevalencia y factores asociados al consumo de alcohol en una comunidad indígena del noreste de Brasil. Métodos: Estudio descriptivo, transversal, desarrollado en la comunidad Pankararu, con 268 indígenas de aldeas, con edad mínima de 18 años de ambos sexos. Fueron realizadas entrevistas con los participantes, aplicándose dos instrumentos, que contenían características sociodemográficas y consumo de alcohol y el instrumento validado Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT). Resultados: Se identificó mayor prevalencia de consumo de alcohol en sexo masculino (75,3 %), con baja escolaridad (83,1 %), soltero (76,5 %), que no asiste a iglesia o casa de oración (90,0 %), considera el consumo de alcohol un problema (94,3%) y fumadores (77,9%). Conclusión: La probabilidad de tener un consumo de riesgo fue unas cuatro veces mayor entre los hombres, las probabilidades también fueron mayores para los participantes con bajo nivel educativo y fumadores, mientras que el hecho de asistir a iglesia o casa de oración redujo la probabilidad de consumo de alcohol de riesgo.

Palabras-clave: indios sudamericanos; salud de poblaciones indígenas; consumo de bebidas alcohólicas; Enfermería.

 

Introdução

 

O consumo de bebidas alcoólicas pelos povos indígenas no Brasil antecede a chegada dos portugueses, os nativos já produziam e consumiam bebidas fermentadas. Com a colonização portuguesa, o uso do álcool, que antes era visto de forma tradicional, com a produção e consumo de bebidas fermentadas restritas aos rituais e cerimônias, foi sendo substituído pelas bebidas destiladas, levando a mudanças nas tradições sobre a forma de beber e nos padrões de consumo, induzindo à dependência alcoólica dessa população configurando um problema social e de saúde pública [1].

O consumo do álcool acontecia nos rituais e festividades e sua produção era feita pelos próprios, tendo a liberdade de consumir toda a substância preparada, desde que não causassem desordem. Em detrimento do contato interétnico, os indígenas passam a consumir as bebidas destiladas, com fabricação de modo industrial, em grande quantidade, com teor alcoólico mais elevado e de baixo custo financeiro, levando-os a dependência alcoólica com embriaguez excessiva e sem ponderação, gerando violência, suicídio, desagregação social e surgimentos de patologias relacionadas as mudanças e a introdução de novos hábitos [2].

Os dados epidemiológicos comparativos demonstram que as taxas de consumo variam entre os grupos estudados, indicando que não há uma única causa universal para seu abuso. A prevalência da dependência de álcool em povos indígenas na Austrália, Nova Zelândia, Canadá e Estados Unidos da América foi relatada em revisão sistemática, em que os indicadores variaram amplamente, desde 3,8 a 33,3%, e quando avaliada conforme o sexo, essa prevalência ficava em torno de 3 a 32,8% para homens e 1,3 a 7,6% para mulheres, identificou-se que oito instrumentos diferentes foram usados e nenhum era específico para indígenas [3].

No Brasil, o consumo de bebida alcoólica em indígenas também apresentou índices variáveis de prevalência que vão desde 19 a 70%. Em comunidade Indígena do Brasil Central (19%), entre os povos Potiguaras do estado da Paraíba (41,8%), os Mura na Amazônia brasileira (40,2%) e os Karipuna, no Amapá, extremo Norte da Amazônia brasileira (70%) [2,4,5,6].

O álcool é fator causal em mais de 60 tipos de doenças e lesões, como também é um componente importante em diversas causas de óbito, como acidentes de transporte, agressões, diabetes, tuberculose, síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) e alguns tipos de câncer. De 2010 a 2012, foram registradas no Brasil, a cada ano, quase 20 mil mortes nas quais o consumo de álcool foi condição necessária para sua ocorrência, equivalendo a mais de 1500 mortes por mês, ou 50 por dia, sendo as doenças do fígado como uma das principais causas [7].

Além de consequências prejudiciais à saúde, o uso excessivo do álcool inflige perdas sociais e econômicas significativas para os indivíduos e a sociedade em geral. O uso nocivo de álcool é apontado como um fator que deve ser considerado para garantir ações sociais e o desenvolvimento econômico em todo o mundo. Para a OMS, a prevenção e a redução do uso nocivo do álcool devem ser tratadas como prioridade, para que se alcance a meta de reduzir em 10% o consumo nocivo mundial até 2025 [8].

Tais pesquisas demonstram a necessidade de se investigar as causas que originam ou determinam o consumo abusivo de álcool em grupos específicos da população indígena, visto que há uma carência de pesquisas epidemiológicas que permitam em linhas gerais dimensionar as demandas do uso prejudicial de álcool por povos indígenas e orientar a execução dos serviços de saúde.

O conhecimento dos fatores de risco de transtornos do uso de álcool é essencial para orientar as políticas de saúde pública, controle de riscos e danos e de promoção da saúde contra o uso abusivo de álcool, visando aperfeiçoar as políticas públicas existentes, desde a regulação da oferta até a venda nos mais diversos contextos sociais e culturais brasileiros [9]. Perante o exposto, o presente estudo teve como objetivo analisar a prevalência e os fatores associados ao consumo de álcool entre os povos indígenas da etnia Pankararu.

 

Métodos

 

Trata-se de estudo descritivo, transversal realizado em uma comunidade indígena localizada no sertão pernambucano, próxima às margens do Rio São Francisco, nos limites dos municípios de Petrolândia, Tacaratu e Jatobá, a 430 km do Recife, Pernambuco, Brasil. A amostra foi constituída por índios ou pessoas que se autodeclararam indígenas; que vivem em uma das 12 aldeias Pankararu, na faixa etária mínima de 18 anos de idade de ambos os sexos, de acordo com a Resolução Nº. 304/2000 [10]. Sendo excluídos do estudo índios com dificuldades de compreensão ou com déficit cognitivo.

Para o cálculo amostral, utilizou-se o software Epi Info 7, estabelecendo uma margem de erro de 5%, intervalo de confiança de 99%, prevalência de problema de 12,1%, conforme estudo realizado por Medeiros [11] em uma população de 5.474 sujeitos, obtendo uma amostra de 268 indígenas. No presente estudo, a amostragem foi do tipo não probabilística por conveniência, justificando-se por se tratar de uma população de difícil acesso e por ser um estudo exploratório.

Os dados foram obtidos por meio de entrevista, através de visitas domiciliares e no Polo Base, em um local reservado de modo a preservar a privacidade dos entrevistados. A entrevista foi realizada mediante aplicação de um questionário referentes às características sociodemográficas elaboradas pelos pesquisadores a partir de informações importantes quanto ao contexto relatado na literatura sobre a temática e o instrumento Alcohol Use Disorders Indentification Test (AUDIT) [11].

O AUDIT foi um instrumento desenvolvido pela OMS, idealizado para ser utilizado na atenção primária como instrumento de rastreamento para uso problemático de álcool. De fácil e rápida aplicação, é composto por 10 itens, cada um com margem de 0 a 4 pontos, permitindo um espectro de pontuação de 0 a 40. A classificação do uso da substância identifica quatro diferentes padrões de consumo: uso de baixo risco - 0 a 7 pontos, em que o consumo que provavelmente não levará a problemas; uso de risco - 8 a 15 pontos, consumo que poderá levar a problemas; uso nocivo - 16 a 19 pontos, consumo que provavelmente já tenha levado a problemas e provável dependência - 20 a 40 pontos. O termo "uso problemático" caracteriza os três últimos padrões de consumo da substância [12,13].

Foram realizadas análises descritivas dos dados, com a apuração de frequências simples absolutas e relativas para as variáveis categóricas em estudo. Foi realizado o teste Qui-quadrado de Pearson para verificar a associação entre cada variável independente do estudo com a variável dependente que foi o padrão de consumo de álcool. Nos casos em que os pressupostos do teste não foram satisfeitos, utilizou-se o teste Exato de Fisher. Os valores de Odds Ratio (OR) com seus respectivos IC 95% foram calculados diretamente das frequências observadas para identificar a associação entre as variáveis dependentes (uso de álcool na vida e consumo de risco) e independentes, considerando um p-valor <0,05 para significância estatística dos testes de hipóteses.

Para desenvolvimento do estudo foram respeitadas as exigências legais determinadas pela Resolução 466/12, considerando as especificidades indígenas [14]. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Complexo Hospitalar HUOC/PROCAPE sob número de parecer 2.033.075.

 

Resultados

 

Na tabela I verifica-se que a maioria dos indígenas foram do sexo feminino, possuíam idade de 18 a 30 anos ou de 31 a 45 anos, possuíam o ensino médio completo, eram solteiros e tinham renda familiar de 1 salário mínimo.

 

Tabela I - Perfil pessoal, de moradia e religioso dos Indígenas Pankararu, 2017

 

¹Teste Qui-quadrado; SM = salário mínimo

 

Observa-se que 84% do grupo reside em território indígena Pankararu desde o nascimento. Entre aqueles que moraram em território distante do Nordeste em área urbana (53,3%) e retornaram para terra indígena Pankararu, alegaram como principal motivo a constituição familiar (69,6%). Verifica-se que a maioria dos participantes citaram a presença de igreja católica presente em sua terra e afirmaram que frequentam algum dos templos religiosos, sendo a própria igreja católica a mais visitada, contudo 91,4% dos participantes relataram participar dos rituais do povo Pankararu.

Conforme dados apresentados na tabela II, verifica-se que a maioria dos indígenas fazem uso de bebida alcoólica, sendo a cerveja a mais consumida. A primeira experiência de consumo em 47,3% dos indivíduos foi com idade entre 12 e 17 anos. Quanto aos lugares em que mais costumam consumir, está o consumo dentro da aldeia, onde também costumam comprar a bebida. Na maioria das vezes o consumo ocorre em festa/confraternização com amigos e familiares, sendo a própria casa o local mais citado. A maioria dos participantes indicaram considerar o consumo de bebida alcoólica um problema. Quanto ao uso de cigarro industrializado, a maioria dos índios informaram não utilizar e menos de 2% relataram usar outros tipos de drogas.

 

Tabela II - Distribuição do consumo atual de bebida alcoólica pelos indígenas Pankararu e avaliação do risco de dependência alcoólica - AUDIT, 2017

 

¹Teste Qui-quadrado

 

Ainda na tabela II, verifica-se que na avaliação do risco de dependência alcoólica segundo o AUDIT o presente estudo identificou uma elevada prevalência de baixo risco de consumo (74,0%) entre os participantes. O mesmo ocorreu quando foi avaliado apenas o grupo que se declara usuário de bebida alcoólica (62,1%), porém observa-se que 22,0% apresenta o consumo de risco.

Na tabela III verifica-se maior prevalência do consumo de bebida alcoólica no grupo do sexo masculino, com 60 anos ou mais, que possui ensino fundamental incompleto, solteiro e com renda familiar menor do que 1 salário mínimo. Foi identificada associação significativa do consumo de bebidas alcoólicas com o sexo (p = 0,002), a escolaridade (p = 0,012) e o estado civil (p = 0,004).

Quanto à distribuição do consumo de bebida alcoólica, segundo o perfil religioso dos índios avaliados (tabela III), há maior prevalência do consumo de bebidas alcoólicas no grupo de índios que não frequenta igreja ou casa de reza e que participa dos rituais do povo Pankararu. O teste de independência foi estatisticamente significante no fator "frequentar alguma igreja ou casa de reza da comunidade" (p < 0,001). Encontra-se uma maior prevalência do consumo nos indígenas que não consideram o uso da bebida alcoólica um problema (p < 0,001) e que possui o hábito de fumar cigarro (p = 0,004).

 

Tabela III - Associação do consumo de bebida alcoólica com variáveis sociodemográficas e perfil religioso dos indígenas Pankararu, 2017

 

¹Teste Qui-quadrado. ²Teste Exato de Fisher

 

Conforme tabela IV, a prevalência de consumo de risco de álcool (≥ 8 pontos), encontrada na amostra foi de 26,1%. Os homens apresentaram cerca de 4 vezes mais chances de ter consumo de risco. Para a variável escolaridade, a maior prevalência de consumo de risco está entre o grupo com < 8 anos de estudo, apresentando 2,4 vezes mais chance de apresentar esse desfecho. Em relação a frequentar alguma igreja ou casa de reza e o consumo de risco maior prevalência de consumo foi observada para os indivíduos que não frequentam tais instituições, conferindo fator protetor para os que frequentam (OR = 0,177).

 

Tabela IV - Descrição da amostra segundo variáveis sociodemográficas e tabagismo, prevalência de consumo alcoólico de risco (AUDIT ≥ 8) e análise bruta (regressão simples) entre o consumo de risco e os preditores do povo indígena Pankararu, 2017

 

¹Teste Qui-quadrado. 2Intervalo de confiança

 

Os fumantes apresentaram prevalência de 39,4% de consumo de risco, enquanto entre os não fumantes essa foi de 17,6%. A chance de indivíduos fumantes apresentarem consumo de risco foi aproximadamente três vezes maior em relação aos não fumantes. Participar do ritual do povo Pankararu não apresentou associação, embora foi possível observar que o grupo que não participa dos rituais apresenta a maior prevalência de dependentes, com 34,8%, apresentando OR = 0,632.

 

Discussão

 

No presente estudo, o consumo de bebidas alcoólicas foi declarado por 67,7% dos participantes, sendo identificada uma prevalência de 26% para o consumo de risco do álcool. Ao analisar as informações apenas daqueles que declararam consumir álcool, essa prevalência aumentou para 37,9%. Dados semelhantes foram encontrados nos índios da etnia Kaingáng [15] que apresentaram prevalência de 26,8%. Contudo, pode-se considerar elevada a prevalência do presente estudo quando comparada a 10,1% entre os Terenas de Mato Grosso do Sul [16] e 13,27% da população aldeada dos indígenas do estado de Tocantins [17] e inferior a existente entre indígenas Xukuru de Ororuba [11] cuja prevalência é de 44,3% de consumo.

Entre os Pankararus, a cerveja é a mais consumida, seguida pela pinga/cachaça e o vinho, dados semelhantes aos tipos de bebidas mais consumido pela população brasileira em geral, evidenciado no I Levantamento Nacional sobre os padrões de consumo de álcool na população brasileira, cujos resultados apontam uma preferência nacional pela cerveja (61%), seguida do vinho (25%) e outras bebidas destiladas (12%) [18].

Ao analisar o padrão de consumo de risco entre os sexos, verificou-se maior proporção entre os homens. Estes resultados corroboram o que tem sido amplamente descrito na literatura [11,15,16,18,19]. A cultura de dominação masculina e a associação do álcool aos momentos de lazer, relaxamento e descontração desempenham forte influência para o estabelecimento dessa realidade. Já as mulheres são mais susceptíveis aos prejuízos causados pelas bebidas alcoólicas do que os homens, tanto para fatores biológicos, pois sofrem danos cerebrais e de outros órgãos mais graves e mais rápidos após a compulsão ou abuso crônico de álcool, quanto para a vulnerabilidade à violência associada ao seu consumo [20,21].

Aspecto importante observado nesta pesquisa foi que o início do consumo ocorreu para elevada proporção dos participantes entre 12 e 17 anos, sendo a compra e consumo de maior frequência na aldeia e em situações de festas com os amigos e familiares. Apesar do Estatuto do Índio [22], Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, no seu artigo 58, proibir a entrada e comercialização de bebidas alcoólicas em área indígena, observa-se que não existe um controle efetivo.

Muitos dos indígenas Pankararu exercem funções trabalhistas fora das terras indígenas e residem em terras indígenas, existindo uma ambiguidade da norma legal, caracterizando o consumo fora das terras indígenas como lícito e dentro delas ilícito, surgindo como alternativa a fuga da própria lei. A ausência de empregos, os baixos preços da produção agrícola e diminuição das verbas governamentais repassadas à população, fazem da venda do álcool uma possibilidade de aumentar a renda, acentuando o valor financeiro em detrimento do “valor de uso" [23].

Com relação à escolaridade, o estudo identificou uma maior prevalência do uso do álcool entre os indígenas com ensino fundamental incompleto e uma maior associação do uso de risco de álcool com menor escolaridade. Já o estudo realizado com os povos indígenas Xucuru de Ororubá, não mostrou maior chance de consumo de bebida alcoólica, porém o autor destaca que a maioria dos nativos possuía uma baixa escolaridade, confirmando o baixo grau de instrução entre os povos indígenas [11].

Apesar de majoritariamente considerarem o consumo do álcool um problema, a maioria dos indígenas fazem uso de risco. Destaca-se o papel da mídia que tem romantizado e estimulado o consumo do álcool, associando tal consumo a sexualidade, beleza e bem-estar. As empresas de publicidade raramente tratam o álcool pelo estigmatizado nome “droga”, facilitando a sua aceitação e veiculação [24].

No presente estudo, o consumo abusivo de álcool está associado ao tabagismo, corroborando estudo de André et al. [25], em que o uso do cigarro foi associado ao consumo de bebida alcoólica, pois favorece desejo em consumir o cigarro, que os deixa relaxados, menos estressados e com sensação prazerosa.

Frequentar alguma igreja ou casa de reza mostrou-se como fator protetor para o consumo de álcool, pois participar destas instituições geralmente requer que o indivíduo siga algumas regras, como a do não uso do álcool. Apesar de outros estudos não encontrarem diferença estatisticamente significativa quanto às taxas de alcoolismo, destacam a importância dessas instituições nas tentativas de se abster e se manter em abstinência [26,27,28].

A participação nos rituais Pankararu aparece com uma alta prevalência para abstinentes, porém a identificação da relação do consumo do álcool e os rituais requer uma análise mais aprofundada a fim de compreender o processo de incorporação de tal bebida pelos nativos. Acioli [23] traz em seu estudo que, durante o ritual menino do rancho, um dos principais rituais do povo Pankararu, cachaça foi servida, porém não foi possível identificar o papel desta substância no rito, pois tradicionalmente existe um limite do que pode ser visto por não indígenas nesses rituais.

Historicamente a inserção do álcool destilado na cultura etílica do povo indígena foi pautada pela dominação dos índios pelas civilizações europeias, modificando sua forma de beber e influenciando o comportamento atual dos nativos [24]. Segundo Fernandes [29], os europeus souberam se imiscuírem nas estruturas sociais, políticas e culturais nativas e utilizar a universal busca humana pelas substâncias psicoativas em função de suas próprias ações de conquistas e utilizá-las em proveito próprio. Diversos documentos históricos relatam que o suposto vício da bebida por partes dos nativos chegou a ser apresentado como uma circunstância atenuante para roubo das terras indígenas praticado pelos europeus e pela sociedade nacional.

Quando tratamos da incorporação da bebida destilada nos rituais da população indígena, destaca-se que apesar do contato com os europeus e a chegada das bebidas destiladas serem responsáveis por muitos agravos à população, é certo que os índios possuem dinâmicas próprias e autônomas para determinar as formas particulares segundo os quais eram absorvidas as alterações da experiência etílica resultante do contato [24].

Estudos epidemiológicos sobre os padrões de consumo de bebidas alcoólicas ajudam na compreensão da magnitude do problema fornecendo informações importantes para as lideranças indígenas, gestores e profissionais da área da saúde e a própria população. Segundo Oliveira [30], as ações de saúde dentro das terras indígenas devem perpassar pelo desenvolvimento de ações integradas e articuladas aos saberes e práticas tradicionais do povo, concentrando-se em componentes educativos, que propiciem a disseminação de conhecimento científico articulado ao saber popular, instrumentalizando os profissionais de saúde e a população na identificação e priorização dos problemas de saúde, como também no levantamento de propostas para sua resolutividade.

Entre as limitações deste estudo, destaca-se que, por se tratar de estudo transversal, seus resultados não permitem afirmar relação de causalidade, a autorreferência ao consumo de bebidas alcoólicas pode ter sido subestimada. Deve-se ainda ressaltar a limitação advinda do instrumento utilizado que, não contempla as especificidades das populações indígenas. Porém, o instrumento está validado para a população brasileira e já foi utilizado em outros estudos com indígenas brasileiros possibilitando a comparação dos resultados.

 

Conclusão

 

A realização deste estudo permitiu a compreensão do uso do álcool em uma população indígena, bem como identificou a elevada prevalência de consumo de bebidas alcoólicas e o tabagismo como comportamento de risco associado. Algumas variáveis sociodemográficas e culturais, tais como sexo, escolaridade e frequentar alguma igreja ou casa de reza parecem influenciar o padrão de consumo de risco.

O consumo de álcool em comunidades indígenas brasileiras parece ser um fenômeno complexo, multifatorial e com influências socioculturais. Intervenções que visem a redução do consumo de álcool nessas comunidades devem considerar tais aspectos em suas estratégias de intervenção, que busque a promoção da saúde das comunidades indígenas, respeitando sua organização cultural, procurando desenvolver nesses grupos valores relacionados à qualidade de vida e hábitos saudáveis.

 

Conflito de interesse

Não há nenhum conflito de interesse de quaisquer um dos autores.

 

Fonte de financiamento

A pesquisa foi financiada pela Universidade de Pernambuco (UPE)

 

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa: Teixeira KS, Aquino JM; Coleta de dados: Teixeira KS, Aquino JM; Análise e interpretação dos dados: Teixeira KS, Aquino JM, Santos DCM, Monteiro EMLM, Brandão Neto W, Souza CFQS, Souza VRFP, Lima AGT; Análise estatística: Arruda GA; Redação do manuscrito: Teixeira KS, Aquino JM, Brandão Neto W, Arruda GA, Lima AGT; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Santos DCM, Monteiro EMLM, Brandão Neto W, Souza CFQS, Souza VRFP, Arruda GA, Lima AGT

 

Referências

 

  1. Vianna JJB, Cedaro JJ, Ott AMT. Aspectos psicológicos na utilização de bebidas alcoólicas entre os Karitiana. Psicol Soc 2012;24(1):94-103. doi: 10.1590/S0102-71822012000100011 [Crossref]
  2. Melo JRF, Maciel SC, Oliveira RCC, Silva AO. Implicações do uso abusivo e do consumo de álcool na comunidade indígena Potiguara. Physis 2011;21(1):319-33. doi: 10.1590/S0103-73312011000100019 [Crossref]
  3. Weatherall TJ, Conigrave KM, Conigrave JH, Lee KSK. What is the prevalence of current alcohol dependence and how is it measured for Indigenous people in Australia, New Zealand, Canada and the United States of America? A systematic review. Addict Sci Clin Pract 2020;15(1):32. doi: 10.1186/s13722-020-00205-7 [Crossref]
  4. Ferreira AA, Souza-Filho ZA, Gonçalves MJF, Santos J, Pierin AM. Relationship between alcohol drinking and arterial hypertension in indigenous people of the Mura ethnics, Brazil. Plos One 2017;12(8):e0182352. doi: 10.1371/journal.pone.0182352 [Crossref]
  5. Oliveira GF, Oliveira TR, Ikejiri AT, Andraus MP, Galvão TF, Silva MT, et al. Prevalence of hypertension and associated factors in an indigenous community of central brazil: a population-based study. PloS One 2014;9(1):e86278. doi: 10.1371/journal.pone.0086278 [Crossref]
  6. Castelo Branco FMF, Vargas D. Alcohol use patterns and associated variables among the Karipuna indigenous people in the extreme Northern Brazilian Amazon. J Ethn Subst Abuse 2021;1-16. doi: 10.1080/15332640.2021 [Crossref]
  7. Garcia LP, Freitas LRS, Gawryszewski VP, Duarte EC. Uso de álcool como causa necessária de morte no Brasil, 2010 a 2012. Rev Panam Salud Publica [Internet]. 2015 [cited 2022 Dec 13];4(38):418-24. http://www.scielosp.org/pdf/rpsp/v38n5/v38n5a10.pdf
  8. World Health Organization. Global status report on alcohol and health [Internet]. [cited 2022 Dec 13]. Geneva, p.392, 2014. Available from: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/112736/1/9789240692763_eng.pdf
  9. Malta DC, Mascarenhas MDM, Porto DL, Barreto SM, Neto OLM. Exposure to alcohol among adolescent students and associated factors. Rev Saúde Pública 2014;48(1):52-62. doi: 10.1590/S0034-8910.2014048004563 [Crossref]
  10. Brasil. Ministério Nacional da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução 304/2000 sobre as Normas para Pesquisas Envolvendo Seres Humanos – Área de Povos Indígenas. Brasília: Conselho Nacional de Saúde; 2000.
  11. Medeiros ACLV. O consumo de bebidas alcoólicas e o trabalho no povo indígena Xukuru do Ororubá dissertação. Recife: Fundação Oswaldo Cruz: Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães; 2011.
  12. Babor TF, Higgings-Biddle JC, Sauders JB, Monteiro MG. AUDIT: teste para identificação de problemas relacionados ao uso de álcool: roteiro para uso em atenção primária. Ribeirão Preto: Programa de Ações Integradas para Prevenção e Atenção ao Uso de Álcool e Drogas na Comunidade; 2003.
  13. Moretti-Pires RO, Corradi-Webster CM. Adaptação e validação do Alcohol Use Disorder Identification Test (AUDIT) para população ribeirinha do interior da Amazônia, Brasil. Cad Saúde Pública 2011;27(3):497-509. doi: 10.1590/S0102-311X2011000300010 [Crossref]
  14. Brasil. Ministério Nacional da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução 466/12 sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília: Conselho Nacional de Saúde; 2012.
  15. Kohatsu M. O alcoolismo na comunidade Kaingáng de Londrina (PR): dados preliminares. In: Seminário sobre Alcoolismo e Vulnerabilidade às DST/AIDS entre os Povos Indígenas da Macrorregião Sul, Sudeste e Mato Grosso do Sul. Anais. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2001. p. 189-2001.
  16. Souza JA, Aguiar JA. Alcoolismo em população Terena no Estado do Mato Grosso do Sul – Impacto da sociedade envolvente. In: Seminário sobre Alcoolismo e Vulnerabilidade às DST/AIDS entre os Povos Indígenas da Macrorregião Sul, Sudeste e Mato Grosso do Sul. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2001 p. 149-65.
  17. Silva RP, Sousa AR. Alcoolismo e uso do álcool entre os Akwen Xerente do Tocantins: a perspectiva indígena. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção [Internet]. 2015 [cited 2022 Dec 14];14(42):109-20. Available from: http://www.cchla.ufpb.br/rbse/ReijanePinheiroSilvaArt.pdf
  18. Laranjeira R, Pinsky I, Zaleski M, Caetano R. I Levantamento Nacional sobre os padrões de consumo de álcool na população brasileira. In: Antidrogas, Brasília, 2007. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/relatorio_padroes_consumo_alcool.pdf. [Internet]. [cited 2022 Dec 22]. Available from: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/93283
  19. Mascarenhas MDM, Malta DC, Silva MMA, Carvalho CG, Monteiro RA, Neto OLM. Consumo de álcool entre vítimas de acidentes e violências atendidas em serviços de emergência no Brasil, 2006 e 2007. Ciênc Saúde Coletiva 2009;14(5):1789-96. doi: 10.1590/S1413-81232009000500020 [Crossref]
  20. Ferreira LN, Bispo Junior JP, Sales ZN, Casotti CA, Braga Junior ACR, et al. Prevalência e fatores associados ao consumo abusivo e à dependência de álcool. Ciênc Saúde Coletiva 2013;18(11):3409-18. doi: 10.1590/S1413-81232013001100030 [Crossref]
  21. Ceylan-Isik AF, McBride SM, Ren J. Sex difference in alcoholism: Who is at a greater risk for development of alcoholic complication? Life Sci 2010; 87(5-6):133-8. doi: 10.1016/j.lfs.2010.06.002 [Crossref]
  22. Brasil. Lei n. 6001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Brasil. Brasília: DOU; 1973.
  23. Acioli MD. O processo de alcoolização entre os Pankararu: Um Estudo em Etnoepidemiologia [Tese]. Campinas: Faculdade de Ciências Médica, Universidade Estadual de Campinas; 2002.
  24. Langdon EJ. O abuso de álcool entre os povos indígenas no Brasil: uma avaliação comparativa. In: Processo de alcoolização indígena no Brasil: perspectivas plurais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 27-46.
  25. André MFS, Alves APB, Barreto HCS, Almeida SL, Rodrigues FS, Alves PTB, et al. Fatores relacionados à prática do tabagismo entre adolescentes e jovens em uma comunidade indígena no estado de Roraima. Revista Eletrônica Acervo Saúde [Internet]. 2022 [cited 2022 Dec 22];15(2):e9595. Available from: https://acervomais.com.br/index.php/saude/article/view/9595
  26. Devóglio LL, Corrente JE, Borgato MH, Godoy I. Smoking among female sex workers: prevalence and associated variables. J Bras Pneumol. 2017; 43 (1):6-13. http://www.scielo.br/pdf/jbpneu/v43n1/1806-3713-jbpneu-43-01-00006.pdf
  27. Souza MLP (Org). Processos de alcoolização indígena no Brasil: perspectivas plurais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. 252 p.
  28. Souza JA, Aguiar JA. Alcoolismo em população Terena no Estado do Mato Grosso do Sul Impacto da sociedade envolvente. In: Anais do Seminário sobre Alcoolismo e DST/AIDS entre os Povos Indígenas (pp. 149-165). Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2001.
  29. Fernandes JA. Cauinagens e bebedeiras: os Índios e o álcool na história do Brasil. In: Processo de Alcoolização Indígena no Brasil: Perspectivas Plurais. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 47-64.
  30. Oliveira JWB, Aquino JM, Monteiro EMLM. Promoção da saúde na comunidade indígena Pankararu. Rev Bras Enferm 2012;65(3):437-44. doi: 10.1590/S0034-71672012000300007 [Crossref]