Enferm Bras. 2023;22(1):36-50
ARTIGO ORIGINAL
Contexto de trabalho,
prazer e sofrimento de líderes religiosos católicos
Edemilson Pichek dos
Santos1, Samanta Andresa Richter2, Edna Thais Jeremias
Martins1, Claudia Capellari1, Gímerson Erick Ferreira3
1Faculdades Integradas de Taquara
(FACCAT), Taquara, RS, Brasil
2Pontifícia Universidade católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
3Universidade Federal do Mato Grosso
(UFMT), Cuiabá, MT, Brasil
Recebido em 4 de abril de
2022; Aceito em 30 de dezembro de 2022.
Correspondência: Edemilson Pichek dos Santos, E-mail: edemilson@sou.faccat.br
Como citar
Santos EP, Richter SA, Martins ETJ, Capellari C, Ferreira
GE. Contexto de trabalho, prazer e sofrimento de líderes religiosos católicos
Enferm Bras. 2023;22(1):36-50. doi: 10.33233/eb.v22i1.5140
Resumo
Objetivo: Avaliar o contexto de trabalho e os indicadores
de prazer e sofrimento na perspectiva de líderes religiosos da igreja católica.
Métodos: Estudo de abordagem quantitativa, transversal. Aplicou-se a
Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho e a Escala de Indicadores de Prazer
e Sofrimento no Trabalho com 91 sacerdotes do Rio Grande do Sul, Brasil, no
período de agosto a dezembro de 2017. Realizou-se análise estatística
descritiva e inferencial. Resultados: A organização do trabalho recebeu
pior avaliação do contexto (71,4%). Os indicadores de prazer no trabalho
estiveram relacionados à realização profissional (79,1%). Entretanto, 52,7%
apresentaram esgotamento profissional, e 61,5% apresentaram falta de
reconhecimento. Conclusão: Apesar do contexto de trabalho ser avaliado
como propício, o que favorece o prazer no trabalho, os sacerdotes consideram
como grave/crítica a organização do trabalho no contexto sacerdotal,
asseverando aspectos que acentuam os indicadores de sofrimento.
Palavras-chave: saúde do trabalhador; estresse
ocupacional; condições de trabalho; cuidados de enfermagem.
Abstract
Context of work, pleasure and suffering of catholic religious leaders
Objective: To assess the work context and indicators of
pleasure and suffering from the perspective of religious leaders of the
Catholic Church. Methods: Study with a quantitative, cross-sectional
approach. The Work Context Assessment Scale and the Pleasure and Suffering
Indicators Scale at Work were applied to 91 priests in Rio Grande do Sul,
Brazil, from August to December 2017. Descriptive and inferential statistical
analysis was performed. Results: The organization of work received the
worst assessment of the context (71.4%). The indicators of pleasure at work
were related to professional fulfillment (79.1%). However, 52.7% complained about
professional exhaustion, and 61.5% about lack of recognition. Conclusion:
Despite the work context being assessed as favorable, which favors pleasure at
work, priests consider the organization of work in the priestly context as
serious/critical, asserting aspects that accentuate the indicators of
suffering.
Keywords: occupational health; occupational stress; work
conditions; nursing care.
Resumen
Contexto de trabajo, placer y sufrimiento de los líderes
religiosos católicos
Objetivo: Evaluar el contexto laboral y los
indicadores de placer y sufrimiento
desde la perspectiva de los
líderes religiosos de la Iglesia
Católica. Métodos: Estudio con
enfoque cuantitativo y transversal. La Escala de Evaluación del Contexto Laboral y
la Escala de Indicadores de Placer
y Sufrimiento en el Trabajo se aplicaron
a 91 sacerdotes en Rio Grande do Sul, Brasil, de
agosto a diciembre de 2017. Se realizó
análisis estadístico descriptivo
e inferencial. Resultados: La organización del trabajo recibió
la peor valoración
del contexto (71,4%). Los indicadores de placer en el
trabajo se relacionaron con la realización
profesional (79,1%). Sin
embargo, el 52,7% presentaba
agotamiento profesional y el 61,5% carecía de reconocimiento. Conclusión:
A pesar de que el contexto laboral se valora como favorable, lo que favorece el placer en
el trabajo, los sacerdotes consideran la organización del trabajo en
el contexto sacerdotal como seria/crítica, afirmando
aspectos que acentúan los
indicadores de sufrimiento.
Palabras-clave: salud laboral; estrés laboral; condiciones de trabajo;
atención de enfermería.
A nova
morfologia do trabalho presente no cenário ocupacional contemporâneo promove
repercussões diversas nos modos de viver e de trabalhar dos sujeitos do
trabalho para além do âmbito econômico, político e social [1]. Nesse sentido,
as relações que se estabelecem no contexto laboral, face às configurações de um
cenário multifacetado, constituem-se possível fator iatrogênico para os
trabalhadores, impactando diretamente na sua saúde [2].
No
contexto sacerdotal da Igreja Católica, essa realidade não é diferente, de modo
que a eclosão do pensamento neoliberal, bem como as influências tecnológicas e
governamentais dele decorrentes, intensificam um cenário de metamorfoses na
sociedade como um todo [3]. Nesse ímpeto, a lógica do trabalho no contexto
sacerdotal assume novas configurações, as quais, na medida em que mobilizam o
sujeito para gerir sua própria vida em relação ao trabalho, extrapolam
fronteiras organizacionais, instigando um padrão de comportamento em que o
trabalhador se torna empreendedor de si [4], passando a assumir como sua a
responsabilidade também pelos resultados institucionais.
Inseridos
nesta realidade, os sacerdotes, sujeitos do trabalho que ocupam posição
estratégica de liderança nas organizações religiosas católicas, atuam
conduzindo e influenciando fiéis e sujeitos da comunidade a nortearem-se por
princípios cristãos, sendo necessário lançar mão de competências específicas
que deem conta de tais exigências. Logo, o trabalho sacerdotal é permeado por
diversas responsabilidades e atribuições de caráter imaterial e subjetivo, e,
sob tal perspectiva, exige dos sacerdotes, competências particulares, para além
das tradicionalmente exigidas em outras profissões, como a integridade ética e
moral, comportamento exemplar, dedicação total, polivalência, amizade, saúde
plena, empatia e resiliência para manter o equilíbrio emocional, o que pode ser
gerador de cargas de trabalho e desgastes à saúde [5,6]. Além da prática do
ministério sacerdotal, os sacerdotes são incumbidos de funções assistenciais,
gerenciais, políticas e educativas junto à comunidade, envolvendo-se em
representações jurídicas, arrecadações financeiras, cuidados de bens e
patrimônios, participação em reuniões e conferências, atualizações constantes,
e educação dos membros da comunidade. Face a essas exigências, na condição de
líderes religiosos, não basta apenas a estes executarem o trabalho, eles
precisam assegurar maior qualidade e eficiência à produção, algo que demanda
longas jornadas de trabalho, atividades variadas, rapidez na tomada de decisões
e proatividade constantes [6,7].
Ao
assumirem o papel de pessoas que estão sempre abertas à escuta e ao
aconselhamento, os sacerdotes lidam com situações de envolvimento emocional, as
quais por vezes os colocam como humanos com qualidades dignas de seres
espirituais e onipotentes [8,9,10]. Nesta condição, para não tornar visível suas
próprias dificuldades, estes trabalhadores contam apenas com suas próprias
defesas, submetendo-se às mais diversas condições de sofrimento psíquico, as
quais, por conseguinte, conferem vazão às “patologias da solidão” e à
“degradação do viver junto” [11].
Estudos
realizados nos Estados Unidos, Costa Rica, México e Caribe [6,7] revelam que os
sacerdotes estão suscetíveis potencialmente a riscos relacionados à síndrome de
burnout, a patologias como depressão e ansiedade. Reforçam as associações cada
vez mais significativas entre o trabalho no clero e a exposição a fatores
estressores e tensões no trabalho. Apresentam evidências de que o clero é
frequentemente abordado por ajuda e consolo em tempos de sofrimento ou trauma
psicológico, mais que conselheiros ou profissionais de saúde mental. Essa
condição é potencializadora de exposição a cargas psíquicas, as quais afetam
diretamente o bem-estar físico e emocional do sujeito, e tornam o trabalho
exaustivo, favorecendo um quadro de vulnerabilidade a situações de adoecimento
[8].
O
trabalho possui diversos sentidos que vão além da própria atividade realizada,
por vezes, permeado por diferenças entre o prescrito e o real. Esses sentidos
contribuem para a construção de vínculos, os quais impactam na vida dos
trabalhadores. A Psicodinâmica do Trabalho elucida a relação entre a forma que
o trabalho é organizado e os processos de subjetivação, explicitando as
vivências de prazer e sofrimento, bem como as estratégias desenvolvidas pelo
trabalhador para manter a própria saúde mental [2].
Nesse
sentido, a saúde do trabalhador vislumbra-se a partir da dinâmica das relações
humanas no trabalho, a qual determina as vivências de prazer e/ou de
sofrimento, sob interferência das condições e organização laborais [12]. O
contexto de trabalho se refere ao espaço social em que operam a organização,
condições laborais e as relações socioprofissionais. Nesse aspecto, a
Psicodinâmica do Trabalho visa à percepção que o trabalhador tem sobre o
conteúdo e as normas, o ritmo e a distribuição e divisão das tarefas, cobranças
e negociações, integração, apoio e comunicação entre as pessoas, bem como, o
ambiente, os instrumentos e os recursos disponíveis para o processo de produção
[12]. Para a Psicodinâmica do Trabalho o prazer e o sofrimento no trabalho
relacionam-se com as experiências vivenciadas pelo trabalhador, que imprimem
maior ou menor vulnerabilidade ao adoecimento. O prazer encontra-se amparado na
percepção de realização profissional e liberdade de expressão, já o sofrimento
no trabalho representa a condição que impulsiona a mobilização do trabalhador
frente às incoerências vividas no contexto laboral, ao mesmo tempo que pode
favorecer o adoecimento psíquico [12].
Em meio a
tais explanações, e com base nos principais conceitos da Psicodinâmica do
Trabalho, o presente artigo emerge na perspectiva de contribuir para a redução
de uma lacuna existente em estudos que retratam o contexto sacerdotal,
especialmente ao retratar o trabalho de líderes religiosos católicos, agregando
conhecimento sobre questões que perpassam o trabalho e os riscos de
adoecimento, uma vez que estes podem estar em situação de vulnerabilidade,
sofrendo e adoecendo em silêncio. Além disso, desconhecem-se iniciativas que se
proponham a intervir no cuidado à saúde deste grupo populacional, o que pode
ser viabilizado em detrimento de estudos como este. Frente ao exposto,
questionou-se: Como os líderes religiosos da igreja católica avaliam o seu
contexto de trabalho e os indicadores de prazer e sofrimento no exercício do
sacerdócio? O presente estudo tem como objetivo avaliar o contexto do trabalho
e os indicadores de prazer e sofrimento de líderes religiosos da igreja
católica no Rio Grande do Sul, Brasil.
Trata-se
de um estudo descritivo, transversal, com abordagem quantitativa. Adotou-se
como referencial teórico/metodológico a Psicodinâmica do Trabalho, idealizada
pelo médico psicanalista francês Christophe Dejours
[11]. Para a construção deste estudo, seguiram-se as diretrizes e recomendações
da Rede EQUATOR, o STrengthening the
Reporting of OBservational studies in Epidemiology (STROBE). Participaram da pesquisa sacerdotes
atuantes na Igreja Católica no estado do Rio Grande do Sul (RS), Brasil.
Adotou-se como critérios de inclusão possuir o exercício do sacerdócio igual ou
superior a seis meses e atuar no Estado do RS.
A coleta
de dados foi realizada no período de agosto a dezembro de 2017. Para tal,
procedeu-se uma busca ativa na internet, nos sites das dioceses, para localizar
os endereços de e-mail dos sacerdotes do RS, o que resultou em um total de 430
e-mails, os quais foram selecionados para responderem aos instrumentos da
presente investigação. Utilizou-se um instrumento que continha informações
referentes aos dados demográficos e ocupacionais (idade, função, tipo de
vínculo, formação e ordem sacerdotal), e as escalas, Escala de Avaliação do
Contexto do Trabalho (EACT) e Escala de Indicadores de Prazer-Sofrimento no
Trabalho (EIPST). Estas duas escalas compõem o Inventário sobre Trabalho e
Riscos de Adoecimento (ITRA) que é um instrumento autoaplicável, criado e
validado para o Brasil [12].
A EACT é
alicerçada em três domínios: Condições de trabalho, Organização do Trabalho e
Relações Socioprofissionais [12]. É composta por 31 itens, divididos nos três
domínios. Os itens são avaliados por meio de uma escala de frequência de cinco
pontos, com itens negativos, cujo escore fatorial é obtido por meio da média
entre os itens. Sua análise deve ser feita a partir de três níveis que
consideram o ponto médio e desvios-padrão em relação ao ponto médio. Para a
análise, devem ser considerados os seguintes parâmetros: escore acima de 3,7
(grave); escore entre 2,3 e 3,69 (crítico); escore abaixo de 2,29
(satisfatório) [12].
Já a
EIPST busca compreender os indicadores de vivências de prazer e sofrimento no
ambiente laboral, é composta por 32 itens divididos em quatro domínios: dois
avaliam as vivências de prazer, Liberdade de Expressão e a Realização
Profissional; e dois as vivências de sofrimento o Esgotamento profissional e
Falta de Reconhecimento [12]. O escore fatorial também é obtido por meio da
média entre os itens. Sua análise deve ser feita a partir de três níveis que
consideram o ponto médio e desvios-padrão em relação ao ponto médio. Para
avaliação dos fatores relativos aos indicadores de prazer, consideram-se os
seguintes parâmetros: escore fatorial acima de 4,00 (satisfatório); escore
fatorial entre 3,99 e 2,1 (crítico); escore fatorial abaixo de 2,0 (grave). A
análise dos itens de sofrimento ocorre de forma oposta aos itens de prazer
[12].
O
instrumento foi elaborado em forma de questionário e endereçado virtualmente
aos sujeitos, através de seus e-mails, com o auxílio do software SurveyMonkey. Os dados foram transportados do SurveyMonkey para o SPSS (Statistical
Package for the Social Sciences) versão 21.0 para Windows. Realizou-se a análise
descritiva e estatísticas das variáveis, de modo que foram descritas por meio
da média e desvio padrão e amplitude interquartílica e as categóricas foram
descritas por frequências absolutas e relativas. Posteriormente, foram
realizadas análises bivariadas. Para associações entre os fatores da EACT e
EIPST a correlação entre os fatores foi analisada por meio do Coeficiente de
Correlação de Spearman. A força de associação,
apresentada pelo coeficiente de correlação, pode ser classificada conforme a
intensidade de sua correlação, que varia de +1 a -1, sendo classificada quanto
à intensidade da seguinte forma: r = 1 correlação perfeita; 0,80 < r < 1
muito alta; 0,60 < r < 0,80 alta; 0,40 < r < 0, 60 moderada; 0,20
< r < 0,40 baixa; 0 < r < 0,20 muito baixa; r = 0 nula [8]. A
avaliação da confiabilidade dos fatores foi avaliada estimando-se a consistência
interna por meio do coeficiente Alpha de Cronbach. O
nível de significância adotado neste estudo foi de 5% (p < 0,05).
A
pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa das Faculdades
Integradas de Taquara (FACCAT), via Plataforma Brasil obtendo alvitre positivo
sob o CAAE: 71469717.9.0000.8135. Obedeceram-se aos preceitos éticos conforme a
Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta a
pesquisa envolvendo seres humanos [13].
A
amostra
do estudo foi composta por 91 sacerdotes. Quanto às
características
demográficas e ocupacionais, os participantes em sua maioria
ocupavam a função
de pároco (68,25%), e como vigários paroquiais (33,57%).
Em relação à ordem
sacerdotal, 68,25% são diocesanos e 31,75% de
congregação religiosa. Destes,
48,4% possuem somente formação necessária à
ocupação, graduação em Teologia e
Filosofia. Quanto aos demais, 22 % são especialistas, 23,1%
são Mestres, 4,4%
são Doutores, e 2,2% são Pós-Doutores. Referente
ao vínculo com a instituição,
estes são em sua maioria efetivos (84,2%), mas também
são
substitutos/visitantes (2,2%), ou mesmo possuem outros tipos de
vínculos, como
coordenador, professor, formador, entre outros (15,4%). Em geral, estes
líderes
religiosos encontram-se com idade média de 42,9 ±10,6
anos.
Na tabela I são apresentados
os resultados obtidos através das escalas, também são exibidos o valor do Alpha
de Cronbach, as médias e desvio padrão e
classificação de risco das da Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho (EACT)
e da Escala de Prazer e Sofrimento no Trabalho (EIPST), com os percentuais
calculados sobre as respostas.
Tabela I - Estatística descritiva,
classificação de risco e Alfa de Cronbach dos fatores
das escalas EACT e EIPST, Taquara, Rio Grande do Sul, Brasil, 2017
Fonte:
Dados da pesquisa, 2017. *DP = Desvio Padrão; †EACT = Escala de Avaliação do
Contexto do Trabalho; †EIPST= Escala de Indicadores de Prazer e Sofrimento no
Trabalho
Os
resultados da avaliação do contexto de trabalho
sacerdotal apontam para uma
variação entre a situação crítica e
satisfatória, pois a avaliação pela EACT
mostrou escore geral de 3,00, 2,18, e 1,97, respectivamente para os
domínios
Organização do trabalho, Condições e
Organização e Relações Socioprofissionais.
Verificou-se que dentre os indicadores mais graves associados às
Condições e
Organização do Trabalho estão aqueles que se
relacionam ao ritmo de trabalho
excessivo, ao número de pessoas que é insuficiente para
realizar as tarefas e
às tarefas repetitivas, além disso, também foram
avaliadas negativamente a
existência da forte cobrança por resultados e do modo que
as tarefas são
cumpridas com a pressão de prazos. Quanto às
Relações Socioprofissionais, em
geral, os sacerdotes avaliaram como satisfatórias, porém,
destacam-se
negativamente as avaliações dos itens falta apoio das
chefias para o
desenvolvimento profissional e as tarefas não estão
claramente definidas que
foram avaliados como crítica.
No que
tange às vivências de prazer no trabalho obtidos através da EIPST, os
resultados apontam para avaliação entre grave e crítica, demonstrando escore
geral de 4,11, 3,77, 2,49 e 2,16 respectivamente para os domínios Realização
profissional, Liberdade de expressão, Esgotamento Profissional e Falta de reconhecimento.
A liberdade de expressão é representada pela vivência de liberdade de
organizar, pensar e falar sobre o trabalho. Todos os itens desse fator
receberam avaliação crítica, mas os avaliados mais negativamente foram os
resultados satisfação com o trabalho, a liberdade para expressar minhas
opiniões no local de trabalho e a liberdade para falar sobre meu trabalho com
os colegas. A Realização Profissional é conceituada como vivência de
gratificação profissional, orgulho e identificação com o trabalho realizado.
Nesse fator apenas o item valorização recebeu avaliação crítica, o restante
recebeu avaliação satisfatória: orgulho pelo que faço; realização profissional;
identificação com as tarefas. Esses foram os fatores que mais contribuíram para
as vivências de prazer.
Já
referente aos indicadores de sofrimento no trabalho os dois fatores receberam
avaliações críticas. O Esgotamento Profissional foi o fator com maior avaliação
negativa, com maior destaque estão a sobrecarga no trabalho e esgotamento
emocional e estresse. O fator Falta de Reconhecimento foi avaliado
criticamente, no entanto, os itens desqualificação, discriminação e inutilidade
foram avaliados como satisfatórios, já as avaliações mais negativas receberam
os fatores falta de reconhecimento do meu esforço; falta de reconhecimento do
meu desempenho, indignação e desvalorização.
Na Tabela
II estão apresentados os coeficientes de correlação de Spearman
e, com esses resultados, é possível verificar quais fatores estão associados,
os resultados demonstraram que a maior parte dos fatores apresentaram
correlações significativas.
Tabela II - Coeficientes de correlação de Spearman entre os fatores da EACT e EIPST. Taquara, RS, Brasil, 2017
Fonte: Dados da Pesquisa, 2017. (N=91)
†Coeficientes de correlação de Spearman (p < 0,05)
†EACT=Escala de Avaliação do Contexto do Trabalho; ††EIPST= Escala de Indicadores de Prazer e Sofrimento no Trabalho. ‡ OT (Organização do Trabalho); § CT (Condições de Trabalho); II RSP (Relações Sócio profissionais); ¶ LE (Liberdade Expressãol); **RP (Realização Profissional); ††RP (Esgotamento Profissional); ‡‡FR (Falta de Reconhecimento) *p < 0,05; **p < 0,01; ***p < 0,001
Verificou-se
que todos os fatores se relacionam entre si, demonstrando a relação existente
entre os fatores que avaliam o contexto de trabalho e os que avaliam os
indicadores de prazer e sofrimento no trabalho. Foi possível perceber forte e
direta correlação positivamente entre os fatores Organização do Trabalho com o
Esgotamento Profissional (r = 0,540; p < 0,001), Condições de Trabalho com a
Falta de reconhecimento (r = 0,581; p < 0,001), Liberdade de Expressão com a
Realização Profissional (r = 0,629; p < 0,001) e o Esgotamento Profissional
com Falta de Reconhecimento (r = 0,776; p < 0,001). Além disso, verificou-se
relação forte e direta negativamente entre os fatores Realização Profissional e
Contexto de Trabalho (r = -0,530; p < 0,001), Falta de Reconhecimento com
Liberdade de Expressão (r = -0,563; p < 0,001) e Realização Profissional (r
= -0,548; p < 0,001).
A
Organização do Trabalho foi o fator avaliado como pior na Escala de Avaliação
do Contexto de Trabalho. Esta avaliação foi atrelada ao ritmo de trabalho
excessivo, à repetitividade das tarefas, ao número limitado de pessoas para a
realização das tarefas e à forte cobrança por resultados, aspectos
determinantes para o sofrimento do trabalhador. Definidos como situação crítica
esta avaliação vai ao encontro de estudos realizados, com o clero, em países da
América do Sul e Europa que evidenciam significativamente patologias como
depressão, ansiedade e a síndrome de burnout [7,14]. A classificação crítica
pode ser entendida como uma situação limite, o que pode ser um fator gerador de
sofrimento para o trabalhador [12]. Tais condições podem desencadear danos e
afastamento do trabalho, sendo necessária uma avaliação ou intervenções com
medidas que possam eliminar ou minimizar tais fontes de risco relacionadas ao
trabalho.
Quanto ao
fator das Relações Socioprofissionais, embora tenha sido avaliada como positiva
satisfatória, ressalta a condição crítica que envolve a falta de apoio das
chefias no desenvolvimento das atividades, assim como na definição clara das
tarefas. Desta forma, ao se depararem com as dificuldades reais do trabalho, e
com a falta de apoio de seus superiores, faz com que estes se sintam
desvalorizados. O forte reflexo do capitalismo, caracterizado por um sistema
hierárquico e a divisão de atividades são elementos que causam sofrimento ao
trabalhador à medida que o excluem do processo de produção do trabalho e em
consequência deterioram a cooperação, elemento imprescindível para a manutenção
da saúde [12]. Por outro lado, as atribuições religiosas demonstram ter um
relevante papel social, e neste cenário, os líderes religiosos, que atuam em
atividades da Igreja Católica, sentem faltam de uma participação mais ativa da
Igreja na comunidade, o que fazendo um paralelo com os achados do presente
estudo pode estar relacionado, entre outros aspectos, com a saúde física e
mental das lideranças religiosas que gerenciam/organizam tais atividades. Isso
pode estar relacionado ao fato de muitos serem capacitados, porém poucos
permanecem atuando nessa atividade da Igreja, o que demonstra a carência de
lideranças religiosas motivadas e que incentivem e caminhem junto com esses
voluntários da Igreja, já que a Igreja não acontece sozinha [15].
Nesta
perspectiva, o cenário contemporâneo do desmantelamento dos coletivos de
trabalho, em que imperam a desconfiança, a falta de solidariedade e a
hipocrisia [2], a intensificação do individualismo acentua a condição de
vulnerabilidade [16], que nos sujeitos do trabalho transforma-se em fragilidade
psíquica, insegurança, isolamento e solidão. Frente a este contexto, os
sacerdotes encontram dificuldades no âmbito das relações sociais no trabalho,
vivenciam situações de sofrimento e precisam lançar mão de estratégias de
defesa para lidar com as adversidades.
As
condições para realização do trabalho foram consideradas satisfatórias pelos
sacerdotes, porém os fatores, instrumentos e materiais são insuficientes para
realização das tarefas e materiais de consumo são insuficientes, foram os mais
avaliados negativamente. As situações ambientais podem agravar ainda mais esse
contexto de trabalho, como acontece com sacerdotes que gerenciam paróquias
situadas em região de vulnerabilidade social, marcada pela escassez de
recursos, especialmente de cunho financeiro. O número de fiéis neste território
tornar-se mais um complicador, interferindo fortemente na sustentabilidade
financeira da organização paroquial, e potencializando a condição gerencialista dos sacerdotes, que são cobrados e se cobram
pelos resultados insatisfatórios que permeiam o seu cenário laboral [5]. Além
disso, o trabalhador, ao se deparar com as exigências, muitas vezes,
vivenciadas na discrepância entre o trabalho prescrito e o trabalho real, adota
a autoaceleração como estratégia de defesa, frente a
sobrecarga da pressão por produção, desassociando o trabalhado da vivência de
sofrimento [12] para seguir suas atividades laborais.
Entretanto,
este esforço, se mantido por longo período de tempo e sem perspectivas de
mudança, pode lhe impor sobrecarga e em consequência haveria efeitos negativos
à saúde. Não obstante, a organização do trabalho resulta das relações
intersubjetivas e sociais dos trabalhadores com as organizações [17], ou seja,
requer interações entre o ambiente, conteúdo, natureza e condições de trabalho
e as capacidades, necessidades e condições de vida do trabalhador. O resultado
destas interações pode constituir riscos psicossociais capazes de afetar a
saúde, o rendimento e a satisfação no trabalho.
Na
avaliação dos fatores de Prazer e Sofrimento no Trabalho, observou-se a
prevalência da Realização Profissional, Falta de Reconhecimento e Esgotamento
Profissional. O domínio que apresentou mais avaliações graves foi o esgotamento
profissional relacionado aos itens sobrecarga no trabalho, esgotamento
profissional e estresse. O domínio Realização Profissional foi o que apresentou
mais avaliações críticas, essas se referem ao reconhecimento, a valorização e
motivação. As questões relativas ao esgotamento emocional e estresse alcançaram
as maiores médias nesta avaliação, apontando que os sacerdotes vivenciam o
sofrimento, o que pode ser explicado pela correlação desses com a avaliação
sobre a organização e o contexto de trabalho. Além disso, os resultados apontam
insegurança e medo como fatores que causam sofrimento.
Em outros
estudos realizados com presbíteros [5,6,7,8] são evidenciados riscos em potenciais
de adoecimento desses trabalhadores, em geral relacionados com a síndrome de
burnout, na qual são expostos a sobrecarga de trabalho, muitas vezes
burocrático e repetitivo, e o pouco retorno afetivo. Embora estes sacerdotes se
dediquem à vida religiosa com coragem e idealismo, encontrando sentido no
trabalho na vocação e realização daquilo que fazem, relacionado muitas vezes à
questão da missão divina; carregam o peso da autoimagem, por serem vistos e
tratados como seres sobre-humanos, dos quais sempre se espera mais do que se
deveria. Com o passar do tempo, sentem-se diminuídos quanto à realização
pessoal, bem como desvalorizados e impotentes frente às expectativas
inalcançáveis. Isso faz com que estes se tornem esgotados emocionalmente e
impossibilitados de recuperar as motivações e forças espirituais iniciais,
podendo gerar sinais e sintomas de adoecimento [5].
Uma forma
de retribuição pelo engajamento de sua subjetividade e inteligência no trabalho
é expressa através do reconhecimento [5]. Quando o trabalhador se sente
reconhecido, ele se percebe aceito, admirado, dispondo de liberdade para
expressar sua individualidade nas diversas situações de trabalho, e, assim,
encontra no trabalho um espaço de constituição de si, de expressão, e não
somente de produção para sobrevivência.
No que
tange aos itens avaliados positivamente na Realização Profissional, estão o
orgulho pelo que fazem, identificação com as tarefas e gratificação pessoal com
as suas atividades. No domínio Liberdade de Expressão foram avaliados como
satisfatórios à liberdade para expressar opiniões no local de trabalho e
liberdade para falar sobre o trabalho com os colegas e chefias, levando a
inferir que, apesar das deficiências da organização e do contexto do trabalho
apontados, estes trabalhadores encontram prazer no trabalho.
Essa
vivência pode ser decorrente do fato de gostarem da atividade executada,
circunstância que afeta positivamente o desempenho profissional e a organização
do trabalho e também pela relação com a comunidade, a qual por vezes imprime
significado de gratidão no labor de suas atividades. Corroboram para este
resultado especialmente pela realização pessoal, o encontro com ser Divino, com
sua espiritualidade. Também se sentem realizados quando há o reconhecimento das
pessoas pelo seu trabalho, assim como quando conseguem ajudá-las [5]. No que
tange ao cruzamento dos dados entre os domínios em estudo, é possível observar
que as correlações em sua maioria foram significativas e, com esses resultados,
é possível verificar que esses fatores estão associados.
As
limitações do estudo em clínica do trabalho na área proposta assemelham-se as
dificuldades de outros estudos na área, neste em específico, centraram-se na
análise da demanda e na coordenação do retorno dos dados da pesquisa. Superados
estes desafios o pesquisador deve orientar-se pelas etapas propostas por Dejours para condução da clínica do trabalho, mas não deve
ater-se estritamente a sua prescrição para que a flexibilidade defendida pela
teoria da psicodinâmica do trabalho seja praticada de forma coerente com os
pressupostos teóricos.
Os
resultados da pesquisa indicaram que, no geral, o contexto de trabalho foi
considerado como propício pelos sacerdotes, principalmente pelos fatores condições
de trabalho e relações socioprofissionais. Contudo, a organização do trabalho,
primeira dimensão do contexto, apresentaram as piores avaliações, classificada
como crítica, indicando que essa dimensão representa um ponto fraco do ambiente
de trabalho dos sacerdotes.
Sobre os
indicadores de prazer e sofrimento no trabalho, observou-se que nos quatros
domínios, realização profissional, falta de reconhecimento, liberdade de
expressão e esgotamento profissional, foram na maioria indicados como grave/crítico,
o que indica fontes de sofrimento. Foi possível observar que as fontes de
prazer estão diretamente ligadas ao orgulho e realização pessoal dos
sacerdotes. A mensuração dessa percepção, a partir da própria subjetivação
atribuída pelos trabalhadores acerca dos principais fatores causadores de
prazer e sofrimento no trabalho, sugere a necessidade de interpretação
multifocal e sinérgica com uso de estratégias quantitativa e qualitativa, a fim
de que se possa mapear com maior riqueza os problemas existentes entre os
sacerdotes investigados.
Ao
relacionar os domínios das escalas entre si, verifica-se quanto melhor o
contexto de trabalho e mais bem-sucedidas as relações socioprofissionais,
menores são o esgotamento profissional e melhor a realização profissional,
visto que o contexto de trabalho e o bom relacionamento com chefias e colegas
promove a cooperação e proporciona o trabalho em equipe. Quanto melhor a
liberdade de expressão e realização profissional menor seria o esgotamento
profissional, maior o reconhecimento pelo trabalho, proporcionando mais
vivências de prazer no trabalho. Frente a isso, recomenda-se que as
instituições, e aqueles que ocupam cargos de chefia na Igreja Católica, bem
como, os sacerdotes se mobilizem conjuntamente para normatizar a organização e
condições laborais, a fim de elaborar medidas para reduzir o sofrimento e
potencializar as fontes de prazer no trabalho.
Espera-se
com este estudo poder contribuir com o conhecimento científico
dos
profissionais de saúde e também dar mais visibilidade
às instituições e aos
sacerdotes sobre o conhecimento abrangente em saúde dos
trabalhadores
sacerdotes, já que esta condição é
preocupante e merece visibilidade, reflexão
e ação, configurando-se em situação de
negligência de atenção à saúde. No
momento em que há evidências significativas de que esta
população beira o
adoecimento, e que já apresentam sinais e sintomas de patologias
do trabalho,
mesmo que ainda não diagnosticadas, precisam ser associadas ao
trabalho e
consideradas em sua essência.
Considerando
implicações práticas e o potencial para o avanço do conhecimento científico,
este estudo como pioneiro pode contribuir para estudos futuros, favorecendo a
elaboração de estratégias de promoção da saúde no trabalho de líderes
religiosos, as quais devem ser permanentemente (re)planejadas
frente as constantes mudanças do cenário social.
Conflito
de interesses
Nenhum
declarado.
Fontes
de financiamento
Não houve
financiamento.
Contribuição
dos autores
Concepção
e desenho da pesquisa:
Santos EP, Ferreira GE; Coleta de dados: Santos EP; Análise e
interpretação dos dados: Santos EP, Richter AS; Análise estatística:
Santos EP, Martins ETJ; Redação do manuscrito: Santos EP; Revisão crítica
do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Ferreira GE,
Martins ETJ