Enferm Bras. 2023;22(3):311-27

doi: 10.33233/eb.v22i3.5172

ARTIGO ORIGINAL

Planejar o pré-natal, parto e pós-parto: possibilidades no enfrentamento à violência obstétrica

 

Luiza Regina de Oliveira Infante1, Laís Barbosa Patrocino2, Margareth Santos Zanchetta3, Fernanda Penido Matozinhos1, Kleyde Ventura de Souza1, Flora Rodrigues Gonçalves1, Érica Dumont-Pena1

 

1Universidade Federal de Minas Gerais

2Universidade do Estado de Minas

3Toronto Metropolitan University, Toronto, Canadá

 

Recebido em 17 de maio de 2022; Aceito em: 15 de janeiro de 2023

Correspondência: Laís Barbosa Patrocino, lais.patrocino@uemg.br

 

Como citar

Infante LRO, Patrocino LB, Zanchetta MS, Matozinhos FP, Souza KV, Gonçalves FR, Dumont-Pena E. Planejar o pré-natal, parto e pós-parto: possibilidades no enfrentamento à violência obstétrica. Enferm Bras. 2023;22(3):311-27. doi: 10.33233/eb.v22i3.5172

 

Resumo

Objetivo: Discutir as potencialidades e os desafios do plano de parto para construção do cuidado humanizado com ênfase na prevenção da violência obstétrica. Métodos: Trata-se de um estudo qualitativo que analisa narrativas de mulheres que planejaram seus partos, por escrito e de modo verbal, e também que não o planejaram. Resultados: Como resultado, foram analisadas potencialidades do planejamento de parto, com destaque para ampliação da percepção da violência obstétrica e sua prevenção. Além disso, evidenciaram-se lacunas como o não planejamento do puerpério e a necessidade de avançar com o plano de (pós) parto. Conclusão: O “Plano de Parto e pós-Parto” mostra-se como ferramenta para a prevenção da violência obstétrica e pode garantir a qualificação do cuidado no puerpério às mulheres que sofreram violência obstétrica.

Palavras-chave: parto humanizado; assistência integral à saúde; tocologia.

 

Abstract

Planning prenatal, birth and postpartum: Possibilities in reducing obstetric violence

Objective: To discuss the potential and challenges of Birth Plan to build humanized care focused on preventing obstetric violence. Methods: This is a qualitative study that analyzes the narratives of women who planned their births, in writing and verbally, as well as those who did not. Results: he potential of birth planning was analyzed, with emphasis on the expansion of the perception of obstetric violence and its prevention. In addition, gaps such as the lack of planning for the puerperium and the need to move forward with the (post)partum plan were evidenced. Conclusion: The “Birth and Postpartum Plan” is shown to be a tool for the prevention of obstetric violence and can guarantee the qualification of care in the puerperium for women who have suffered obstetric violence.

Keywords:  humanizing delivery; comprehensive health care; midwifery.

 

Resumen

Planificación del prenatal, parto y posparto: Posibilidades en el enfrentamiento de la violencia obstétrica

Objetivo: Discutir las potencialidades y desafíos del Plan de Parto para la construcción del cuidado humanizado con énfasis en la prevención de la violencia obstétrica. Métodos: Se trata de un estudio cualitativo que analiza narrativas de mujeres que planificaron sus partos, por escrito y verbalmente, y también que no los planificaron. Resultados: Se analizaron las potencialidades de la planificación del parto, con énfasis en la ampliación de la percepción de la violencia obstétrica y su prevención. Además, se evidenciaron lagunas como la no planificación del puerperio y la necesidad de avanzar con el plan de (post)parto. Conclusión: El “Plan de Parto y Posparto” se muestra como una herramienta para la prevención de la violencia obstétrica y puede garantizar la calificación de la atención en el puerperio a las mujeres que han sufrido violencia obstétrica.

Palabras-clave: parto humanizado; atención integral de salud; partería.

 

Introdução

 

O parto é um processo fisiológico que integra os ciclos de vidas das mulheres e homens transexuais que engravidam. Porém, ao longo dos últimos séculos, tornou-se um processo marcado por intervenções tecnicistas e médico-centradas, uma vez que o parto medicalizado e hospitalar tornou-se sinônimo de modernidade e segurança.  Concomitantemente, ressignificou-se o parto como evento patologizado e sem o protagonismo das pessoas que são capazes de gestar [1].

De acordo com a antropóloga Robbie Davis-Floyd [2], considerando os aspectos socioculturais da sociedade ocidental, este modelo de atenção ao parto, caracterizado como modelo tecnocrático, consolidou-se com o uso abusivo de tecnologias em procedimentos rotineiros com nenhum ou pouco embasamento científico, tais como a manobra de Kristeller (pressão sobre a parte superior do útero), tricotomia (depilação do períneo) e enemas (lavagem intestinal). Tal concepção, construída e constituinte de um contexto em que se articulam desigualdades de gênero, também de classe social e raça/etnia, tem como base a compreensão de que:

 

“O corpo feminino, visto como desvio daquele masculino, foi olhado com suspeitas e entendido como inerentemente defeituoso, imprevisível, necessitando da manipulação masculina para poder ser ‘posto em ordem’. Segue que o parto, momento extremo e agudo de uma máquina caótica e não confiável, requer a intervenção hábil e rápida do profissional [2]”.

 

Nesse contexto, tornou-se necessário denominar práticas desnecessárias e prejudiciais como violência obstétrica, permitindo assim o reconhecimento e discussão da temática. De acordo com a Organização Mundial de Saúde [3,4], violência obstétrica refere-se a “violência contra a mulher durante o ciclo reprodutivo, a qual envolve as questões da assistência prestada pelos profissionais durante o abortamento, o trabalho de parto, o parto, o puerpério, e inclusive o planejamento reprodutivo”. 

No Brasil [4], dos 27 estados, apenas quatro delimitam e conceituam violência obstétrica, sendo esses: Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Santa Catarina. Desses, todos compartilham aspectos consoantes à definição da OMS, em que a violência obstétrica é compreendida como violência praticada com conotação inadequada no âmbito verbal, físico, psíquico e sexual que transgride a privacidade e a autonomia de mulheres no ciclo gravídico e puerperal [4].

Nesse sentido, a violência obstétrica [5] tem relação intrínseca com a violência de gênero, marcada pela agressão, independente da natureza, seja física, patrimonial, psicológica e/ou sexual, contra alguém relacionada a sua identidade de gênero. As consequências de uma sociedade em que a masculinidade assume papel social de detentora de poder e em que, por muitos anos, foi permitido o uso da força contra as mulheres [5] refletem diretamente na subtração da mulher ao papel de reprodutora, subjugada ainda nesse lugar como sendo incapaz de parir, o que supostamente justificaria as inúmeras intervenções obstétricas.

A violência obstétrica [6] é ainda mais evidente na vida de mulheres negras, pardas e com pior condição financeira, revelando os impactos da desigualdade racial e de classe social. Sendo assim, essas mulheres são as que mais vivenciam violência obstétrica nos diferentes momentos do ciclo gravídico-puerperal [6].

Durante a segunda metade do século XX, em resposta ao modelo de assistência tecnocrático em vigor, uma série de movimentos ao redor do mundo começaram a se organizar e, apesar de possuírem diferentes estratégias, se reuniram com o objetivo em comum de reivindicar e prover assistência humanizada às mulheres. Um exemplo é o movimento europeu Parto sem medo, em defesa do parto natural [7]. No Brasil [7], na década de 1980, em um cenário com altos índices de cesarianas e mortalidade materno infantil, o movimento de humanização do parto ganhou destaque e, de forma autônoma, grupos em diferentes Estados passaram a oferecer atendimento com respeito, menos intervenções e baseado em evidências científicas, como o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em São Paulo, e o grupo Curumim, em Pernambuco. Nesse contexto, em 1993, foi fundada a pioneira Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (ReHuNa) com o objetivo central de divulgar informações sobre a assistência e cuidados perinatais fundamentados cientificamente, além de ter papel chave na estruturação do movimento “Humanização do parto e nascimento” [7].

Em 1996, a OMS reconheceu a necessidade de reformulação da assistência obstétrica e publicou, pela primeira vez, recomendações de “Boas práticas de atenção ao parto e ao nascimento” [3]. Dentre as propostas contidas no documento, na categoria A, estava o instrumento “Plano de Parto”, sendo a categoria A relacionada à prática demonstradamente útil e que deve ser estimulada [3], fortalecendo a assistência com base no modelo humanizado. O plano de parto [8], além de ter caráter legal, é uma ferramenta que fomenta a relação clínica entre profissional e a gestante e pode servir para orientar a atenção à saúde prestada ao longo do ciclo gravídico-puerperal.

Este instrumento, que está presente na caderneta da gestante elaborada pelo Ministério da Saúde [9], incentiva as mulheres à busca de informações qualificadas para a construção de um plano com base em expectativas e decisões sobre o processo individual de parir e, consequentemente, estimula o protagonismo e a autonomia. Considerando que o parto e nascimento são processos biológicos que envolvem aspectos físicos, mentais e espirituais, o plano de parto é a ferramenta cuja potência de englobar tais componentes permite a construção de uma assistência individualizada [10].

Obstante a todas as evidências científicas, no Brasil, o uso do plano de parto ainda enfrenta obstáculos e desafios. No ano de 2019, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ) publicou, no Diário Oficial da União/RJ, a resolução 293/2019 que proíbe “quaisquer documentos, dentre eles o plano de parto ou similares, que restrinjam a autonomia médica na adoção de medidas de salvaguarda do bem-estar e da saúde para o binômio materno-fetal”  [11]. Cabe sinalizar para a contradição de um instrumento que pretende garantir a autonomia médica, mas proíbe a adesão a instrumentos cuja utilização é fomentada pela OMS (1996).

No contexto da pandemia da COVID-19, a subtração das mulheres às decisões dos profissionais de saúde tornou-se mais latente. Os direitos ainda não plenamente garantidos pelas mulheres e suas crianças retrocederam, tais como a garantia de acompanhante, direito à informação e respeito às decisões da mulher [12].

Evidencia-se a permanência do conflito entre o modelo tecnocrático e o modelo humanizado de assistência, centrado na autonomia e protagonismo das mulheres, nas instituições de saúde. Embora haja diferentes modelos assistenciais obstétricos [2], como exemplo, o tecnocrático e humanizado, esses não são seguidos de forma rígida, ou seja, os profissionais de saúde transitam entre eles [10]. Dessa forma, apesar do plano de parto incentivar a construção da assistência humanizada, pode haver desafios para as mulheres e homens trans que utilizam esse instrumento, considerando a coexistência de modelos de atenção na prática assistencial.

Levando em conta a relevância dessa temática, este estudo busca discutir os desafios e potencialidades do plano de parto no pré-natal, parto e pós-parto, indicando possibilidades a serem desenvolvidas com esse instrumento por profissionais de saúde. Nesse sentido, o intuito dessas indicações é promover a melhoria da qualidade do atendimento às mulheres e homens trans e aos recém-nascidos, tanto na prevenção de violência obstétrica quanto na mitigação dos seus danos.

 

Métodos

 

Este trabalho integra o projeto de pesquisa “Violência obstétrica, enfrentamento e empoderamento - VOE”. O projeto tem abrangência nacional e tem como objetivo principal "compreender a percepção de mulheres e profissionais de saúde sobre a violência obstétrica e a humanização do parto e nascimento". Para isso, o estudo adota o método qualitativo de pesquisa nos serviços de saúde, tais como centros de saúde e maternidades, desenvolvendo entrevistas individuais e em grupos focais com as mulheres, acompanhantes e profissionais de saúde.

Este artigo analisa os relatos coletados por meio de um dos instrumentos do projeto VOE para a condução de entrevistas narrativas intitulado “Roteiro de entrevista com mulheres vítimas de violência obstétrica”, composto por perguntas sobre o pré-natal, parto e pós-parto. Também foram coletados dados sobre a renda, escolaridade e autodeclaração étnico racial. Todas as entrevistas foram gravadas para a realização das transcrições.

De modo a analisar as potencialidades e desafios do uso do plano de parto na assistência obstétrica, foi investigado como as mulheres planejam o parto e as possibilidades e limites do uso desse instrumento do pré-natal até o puerpério. Também foram abordadas as repercussões da assistência à mulher e ao bebê e, por fim, a perspectiva das mulheres em relação ao trabalho de profissionais de saúde.

Foram utilizados como critérios de inclusão na pesquisa puérperas com mais de 18 anos, que não tiveram perda fetal e que expressaram a vontade de oferecer consentimento livre e autônomo. Os critérios de exclusão utilizados foram participantes que tiveram filho há 12 meses ou mais, participantes que apresentaram deficiência cognitiva, participantes que se autoidentificaram de origem indígena.

As entrevistas foram realizadas em um hospital filantrópico com atendimento exclusivo pelo Sistema Único de Saúde (SUS), referência em humanização da assistência ao parto, reconhecido pela Iniciativa Hospital Amigo da Criança e a Política de Humanização do Pré-Natal e Parto. Trata-se de um hospital de grande porte, localizado em um bairro periférico de uma capital brasileira.

Foram entrevistadas doze mulheres que vivenciaram o parto no mês de fevereiro de 2020, no período pós-parto, durante a internação. As entrevistas foram conduzidas por pesquisadoras treinadas e tiveram duração média de 50 minutos. A escolha das mulheres foi aleatória e, para garantir anonimato, os relatos foram identificados com nomes fictícios.

A interpretação dos dados foi baseada na análise temática de Bardin [13]. No primeiro momento, os dados foram organizados seguindo critérios de representatividade, homogeneidade, exaustividade, exclusividade e pertinência. Posteriormente, os dados foram categorizados de acordo com características comuns e classificadas em um tronco temático, o que possibilitou análise detalhada dos relatos.

O projeto de pesquisa seguiu as determinações da Resolução nº 466/2012, que regulamenta as normas de pesquisa envolvendo seres humanos. Os procedimentos de pesquisa foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade e do Comitê de Ética do Hospital.

 

Resultados e discussão

 

Caracterização das participantes

 

Todas as entrevistadas se autodeclararam como pardas e pretas, com idade entre 18 e 39 anos. Quanto à condição financeira, as participantes declararam ter renda familiar entre um e três salários mínimos. Onze delas relataram que haviam terminado ou estavam cursando o Ensino Médio, enquanto apenas uma tinha Ensino Superior em curso. Tais dados estão em consonância com a pesquisa “Nascer no Brasil” [14] que aponta que a maior parcela das mulheres pretas e pardas frequentam serviços públicos de saúde e evidencia também que são as mesmas com baixos indicadores socioeconômicos. Essas informações caracterizam as participantes quanto a uma situação desfavorável no que concerne à condição socioeconômica e cultural, relacionada à condição de vulnerabilidade.

 

Plano de parto

 

Dentre as entrevistadas, apenas Jade relatou ter realizado o plano de parto por escrito, enquanto oito, Joana, Elisabete, Ana, Thaís, Gaia, Iracema, Yara e Inaiê relataram ter planejado alguns aspectos do parto e três, Taianara, Gabriela e Moema não planejaram seu parto. Sobre os aspectos planejados pelas mulheres, observa-se que cinco delas, Joana, Elisabete, Gaia, Iracema e Inaiê, relataram o desejo de ter parto normal e, dentre essas, duas, Gaia e Inaiê, mencionaram o interesse de ter acompanhantes. Já Yara informou o interesse de realizar o parto via cirurgia cesariana. Ana e Thaís informaram que tinham apenas planejado ter a companhia de familiares. Sobre as três entrevistadas que informaram não ter planejado nenhum aspecto do parto, uma delas, Moema, descreveu que não planejou o parto, pois o médico a informou quais seriam as melhores opções para ela. Quanto a Jade, a única mulher que relatou ter realizado o plano de parto, informou que o fez “de última hora” devido à pouca orientação recebida durante o pré-natal na Atenção Primária de Saúde (APS).

O modelo de atenção humanizada [7] propõe um movimento de abertura para o diálogo como reivindicação de legitimidade dos direitos das mulheres na assistência ao nascimento. Apesar do plano de parto ser um otimizador da humanização, com a significativa característica de ser uma ferramenta institucionalizada, não exclui a importância das decisões expressadas verbalmente por essas mulheres no momento do partejar. Neste sentido, apesar da maioria dos relatos apresentarem em comum a não formulação do plano de parto, a maioria das mulheres expressaram o planejamento de determinado aspecto dessa experiência.

Por outro lado, sob o mesmo aspecto, acende um alerta com o seguinte relato:

 

“Não! O médico me explicou, né, qual seria o melhor pro meu caso. Durante o pré-natal e depois que eu cheguei aqui também”. (Moema)

 

Independentemente do tipo de parto e das condições clínicas, ressalva em situações de urgência e emergência, as decisões devem ser tomadas em conjunto entre gestantes e profissionais de saúde. O planejamento do parto compreende diversos aspectos que transcendem a escolha da via do parto que abarca desde fornecimento de informações sobre o processo gestacional, aos valores e desejos pessoais [15]. Fica explícito o impasse entre a autonomia da mulher e a denominada autonomia profissional. De acordo com Palharini [16], a violência obstétrica fica imbricada no discurso da autonomia profissional, resultando na resistência às mudanças científicas e fomentando uma relação profissional-paciente autoritária. É evidente no relato de Moema o papel passivo da entrevistada sobre a assistência recebida.

 

Plano de parto: desafios e possibilidade entre pré-natal e parto

 

Quanto à experiência do parto, todas as mulheres que responderam à questão avaliaram como positiva. Apenas Taianara e Inaiê não informaram. Apesar dessa síntese sobre a experiência, somente Joana, Inaiê, Ana, Gabriela, Gaia e Jade reconheceram que sofreram violência obstétrica, no entanto todas as participantes vivenciaram situações que são coerentes com o conceito de violência obstétrica. Das entrevistadas que compreenderam que vivenciaram violência obstétrica, Joana, Gabriela e Inaiê relataram que havia outras pessoas presentes durante a situação, mas em apenas um caso esses indivíduos tentaram intervir. Das participantes que reconheceram o acontecimento de violência obstétrica, Gabriela, Joana, Gaia e Inaiê informaram que receberam suporte dos profissionais de saúde após o ocorrido, e Gaia foi apoiada pelos familiares também, Jade recebeu suporte apenas do companheiro, enquanto Ana não recebeu suporte profissional e não foi mencionado nenhum tipo de apoio familiar.

Embora o plano de parto se refira explicitamente ao parto, ele também estimula a discussão de aspectos que abrangem todo o ciclo gravídico puerperal. Por exemplo, no pré-natal deve ser incentivada a visita à maternidade para que a mulher escolha o lugar em que ela tem interesse de parir, assim como a discussão sobre planejamento reprodutivo, com a possibilidade de implantação, no pós-parto imediato. Percebe-se, portanto, que o plano de parto vai além do processo de parir e os elementos que compõem esse instrumento, como a valorização da autonomia da usuária, respeito aos direitos das mulheres, liberdade de escolha e apoio empático por profissionais de saúde devem ser seguidos nas demais etapas da assistência. Todavia, conforme os relatos abaixo, essa realidade nem sempre é vivenciada pelas mulheres nas maternidades, no pré-natal e no pós-parto.

 

Foi só essa, essa profissional do ultrassom que veio me questionando coisas que eu acho que é um particular da gente, né? Sobre peso, sobre idade, a decisão de ter filho ou não. Foi indelicadeza dela mesmo e ainda mais vim contar caso de outras pacientes [...]. Ela foi muito infeliz nas colocações dela comigo, porque eu sou paciente igual a qualquer um. (Joana)

 

Só na hora de colocar o DIU que a médica foi muito ignorante comigo, porque eu falei com ela assim que tava doendo. [...] Ela falou assim: “Você vai querer que eu coloque isso daqui em você, porque se não for querer eu vou embora” (relato com tom alto e firme), querendo sair da sala. Então eu sentindo dor, acabei deixando ela colocar. (Gabriela)

 

Esse mesmo aspecto também foi percebido no momento de parturição como nos relatos a seguir.

 

Até as 15 horas de indução foi tranquilo, eu andava com as dores da contração e tinha uma expectativa muito grande de ter o parto normal, só que aí quando eu vi que não tava mais dilatando, eu já não queria mais fazer a indução só que o doutor falou que deveria continuar. [..] Naquele momento, eu só pensava no que era melhor para o meu filho. As médicas, as enfermeiras interviram, conversaram com o médico, todos conversaram com o médico, até ele aceitar a condição de fazer a cesárea. (Inaiê)

 

Eu comecei a gritar, sabe? De muita dor, aí a mulher virou para mim e falou assim "Pode parar de gritar, porque na hora que você tava fazendo você num tava gritando, por que você está gritando agora no meu ouvido? (Ana)

 

Nesses relatos, é perceptível o silenciamento da mulher durante o ciclo gravídico puerperal enquanto sujeito, ressalta-se a presença da repreensão verbal com julgamento de valor, agressões físicas por meio de procedimentos violentos, humilhações e negligência quanto à consideração da demanda da parturiente. Tais aspectos estão na contramão das orientações do Ministério da Saúde [17] para a atenção obstétrica, que salientam a importância da humanização do atendimento, reconhecendo a individualidade, as necessidades e capacidades envolvidas no processo de partejar. De acordo com Wolff e Waldow [18]:

 

A cliente, nessa situação, configura-se em receptáculo de uma ação autoritária, sem nenhuma possibilidade de interferir, sem poder emitir seu parecer ou fazer respeitar os seus direitos e desejos. A competência científica e a tecnologia têm maior destaque do que a qualidade de vida ou o bem-estar da clientela.

 

Essa perspectiva também é apontada em outros relatos em que pessoas presenciaram a violência obstétrica, mas não intervieram.

 

Tinha, sim... aham. Tinha mais duas pessoas. (Joana)

 

Meu marido estava presente. Os médicos estavam lá, ninguém falou nada e ela foi muito bruta comigo. (Gabriela)

 

A presença de acompanhante [19] é fundamental na prevenção da violência e esse fator é contemplado e amplamente incentivado no plano de parto. Para que a presença da/o acompanhante se torne mais efetiva, deve-se estimular sua participação na construção do plano individual, o qual deve ser criado pela gestante, subsequente refletido junto à pessoa que fará o acompanhamento [19].

Sob diferente aspecto, com base nos relatos das entrevistadas que não perceberam que sofreram violência obstétrica, é possível indagar que a naturalização da violência devido ao descrédito na capacidade fisiológica da mulher em parir pode contribuir para a não percepção da violência. Deve ser ponderada também a violência consentida [18], que se deve à desigualdade de poder no relacionamento entre paciente-profissional, em que o profissional é o detentor do conhecimento científico, e as pacientes aceitam o tratamento por temerem pela não continuação dos cuidados a ela e ao bebê. Por isso, torna-se ainda mais necessária a inclusão da/o acompanhante no pré-natal, o compartilhamento do plano de parto e na distinção da violência obstétrica, como já evidenciado na literatura, por garantir proteção e contribuir para uma experiência positiva [20].

O plano de parto permite ainda que as mulheres, apoiadas pela/o companheira/o, saibam distinguir procedimentos necessários de técnicas obsoletas que podem prejudicar a saúde da parturiente e do bebê. O plano de parto fomenta, ainda, a apropriação dos próprios direitos, além de contribuir para a emancipação da usuária como receptora passiva da assistência para a determinadora dos cuidados prestados.

Uma das práticas ainda presentes na assistência obstétrica é a manobra de Kristeller, apesar de ser contraindicada por não ter evidências de benefícios e estar relacionada a lesões maternas e neonatais [21]. Todavia, mantém-se presente na prática assistencial, conforme demonstrado abaixo.

 

“Pesquisador(a): No momento que você falou na entrevista que eles apertaram a sua barriga. O que você achou disso?

Elisabete: Nem reclamei, acho que foi até uma ajuda, porque querendo ou não, eles falam que não pode, né? Mas se não tivesse me ajudado eu não sei se teria aguentado, eu tava sem força já.

Pesquisador(a): Todos os seus direitos foram respeitados?

Elisabete: Todos.”

 

A prevenção de violência obstétrica situa-se na esfera do respeito, dos direitos, mas também na lógica da prevenção quaternária, que consiste em um conjunto de ações que visam mitigar as intervenções excessivas. Uma dessas formas está relacionada à qualidade do pré-natal baseado nas orientações de saúde com base em evidências científicas, acolhimento das demandas e discussão de expectativas, corroborando o engajamento e apropriação do próprio corpo por parte dessas usuárias no processo de parir [22].

Apesar de pensarmos em Plano de Parto como prevenção da violência obstétrica, além de ser uma proposta a ser desenvolvida no pré-natal, é preciso considerar o próprio pré-natal como um elemento a ser planejado e vivido da melhor forma possível. O plano de parto e pré-natal possuem relação interligada por serem potencializadores mútuos, considerando que, quando há um pré-natal bem realizado, há maior chance do plano de parto ser formulado, assim como realizar o plano de parto estimula a usuária a ser mais engajada no pré-natal. Vale ressaltar que, geralmente, o contato da gestante com o plano de parto ocorre por meio do pré-natal, por isso, torna-se ainda mais imprescindível que este seja de qualidade.

Todavia, de acordo com os relatos a seguir, nota-se a fragilidade do pré-natal quanto às orientações básicas sobre o início do trabalho de parto, de modo a evitar peregrinações hospitalares, imposição de barreiras ao acesso ao serviço de saúde, a falta de vínculo e de comunicação dos interesses da mulher para profissionais de saúde.

Antes disso eu procurei, que eu procurei era umas 10 horas no (instituição de saúde), só que eles me mandaram embora com 3 centímetro de dilatação e sentindo dor. Falaram que era normal e que só internava se eu tivesse ganhando. (Jade)

 

Era um direito meu ter consulta, poderia até ter pegado a minha licença antes, mas eles fizeram hora, [..] nem isso eu consegui. [...] A única coisa que me disseram foi que eu já estava entrando em trabalho de parto, que quando nascesse era pra eu entrar em contato.  (Inaiê)

 

“Pesquisador(a): Mas aí no pré-natal você já falou com quem fez seu pré-natal que queria que fosse cesárea?

Yara: Não.”

 

Quanto à opinião das entrevistadas sobre as formas de evitar violência obstétrica no contexto obstétrico vivenciado, dentre as setes mulheres questionadas, apenas quatro mulheres responderam a essa pergunta e três não sabiam responder. Tais resultados podem estar relacionados com a distância do debate sobre essa temática entre famílias de classes populares, assim como evidenciar a ineficácia no fornecimento dessas informações durante o pré-natal.

Dos pontos elencados como métodos de evitar a violência obstétrica encontra-se o apoio, segurança e respeito por parte de profissionais de saúde, assim como a importância da formação, além da existência de canais de denúncias para as situações de violência obstétrica e a participação da família durante o parto. Determinados pontos estão em consonância com os achados na literatura. Segundo Gonçalves [23], para o parto humanizado, é essencial a garantia dos aspectos como autonomia, individualidade, privacidade e fortalecimento.

Vale ressaltar a importância do relato de Elisabete, que deixa explícita a demanda das próprias usuárias para terem mais protagonismo nos cuidados que receberão. Tal aspecto dialoga diretamente com o plano de parto por ser uma ferramenta que formaliza e estimula as decisões individuais dessas mulheres.

 

Plano de parto, profissionais de saúde e a assistência ofertada: novos caminhos para enfrentamento à violência obstétrica?

 

Sabe-se que o plano de parto engloba outros momentos do ciclo gravídico puerperal, inclusive o pós-parto. Isso é evidenciado no planejamento que alcança desde o contato pele a pele entre mãe e bebê imediatamente após o parto até a escolha de como o bebê será cuidado após o nascimento [24].

Mesmo no contexto de fomento do parto humanizado em contraposição ao modelo biomédico e tecnicista, como evidenciado, a violência obstétrica permanece presente no cotidiano das maternidades. As medidas de prevenção de violência obstétrica nas maternidades são de extrema importância, mas também se pergunta sobre as medidas que devem ser tomadas após o ato consumado, no intuito de mitigar os danos causados à parturiente. Conforme os relatos abaixo, profissionais de saúde têm papel chave para acolher e dar suporte a essas mulheres, ressalta-se também o papel de familiares no apoio.  A visibilização e responsabilização são tópicos que podem auxiliar na superação desse quadro [25].

 

“Pesquisador(a): E após essa experiência desagradável que você passou, teve alguém que te ajudou, que conversou com você, que te ajudou a superar isso?

Joana: Foi a médica que me atendeu durante as consultas do pré-natal.

 

A enfermeira me viu chorando, ela me perguntou por que eu estava chorando, se eu queria conversar com ela, que eu podia desabafar. (Gabriela)

 

Ah foi mais assim minha família, meus amigos, sabe? Que me ajudou mais. (Jade)”

 

Apesar de todas as entrevistadas terem sofrido alguma situação que pode ser compreendida como violência obstétrica, todas avaliaram como uma experiência positiva ou satisfatória. Há duas análises, não excludentes, que podem ser feitas. A primeira consiste na ideia de que não há orientação suficiente para que essas mulheres possam analisar de forma mais consciente a experiência que viveram, podendo assim comparar a experiência e o ideal. Já a segunda análise consiste na ideia de que profissionais de saúde estão se aperfeiçoando, oferecendo uma assistência de maior qualidade, dessa forma, estão acolhendo melhor essas mulheres que sofreram violência obstétrica, sobretudo pensando o contexto do hospital onde foi realizada a pesquisa.

 

Só nessa parte aí que não gostei, mas, tirando isso, eu gostei do restante. (…) Fiquei satisfeita! (Gabriela)

 

Foi uma experiência boa né?! (...). Aqui elas cuidam bem! (Thaís)

 

Ah porque eu tive uma ótima [experiência]. As pessoas me tratam super bem aqui no hospital. Gostei! (Ana)

 

Os relatos nos alertam também para a necessidade de uma abordagem da violência obstétrica no pós-parto. Compreende-se a potencialidade do plano de parto para criar reflexões condizentes com este período e indicar possibilidades de enfrentamento da violência obstétrica, como locais de apoio às mulheres que sofreram violência, canais de denúncia/ouvidoria e encaminhamentos diante das situações vividas na assistência, bem como possibilidades de cuidado para o período puerperal, ampliando a função de “Plano de (pós) Parto”.

Cabe pontuar, ainda, a dimensão sociocultural na falta de utilização do plano de parto pelas mulheres de classe popular. Estudos no campo da educação discutem os modos como as famílias de classe popular vivenciam uma temporalidade linear, imediatista, o que obstaculiza a previsibilidade e o planejamento [26] assim como se apropriam pouco da cultura escrita [27]. De modo contrário, as famílias de classes médias mais escolarizadas tendem a adotar práticas relacionadas à reflexividade, isto é, à racionalização de suas ações, por meio da busca por informações e de estratégias conscientes a respeito de suas experiências [28].

O fato de que mulheres negras e de classes populares são mais propensas a serem vítimas de violência obstétrica [8] e, ao mesmo tempo, apresentam menor tendência a utilizar o plano de parto, configura-se como um contrassenso. São essas mulheres as que mais demandam reconhecimento e respeito e deveriam ser encorajadas a refletir sobre suas condições e direitos, e estimuladas à autonomia e protagonismo.

 

Conclusão

 

Neste estudo, observou-se que o plano de parto foi pouco utilizado pelas usuárias, indicando que essa é uma estratégia pouco estimulada por profissionais de saúde e que se torna um desafio para o aprimoramento do atendimento em saúde, sobretudo para famílias de camadas populares. Apesar de serem evidenciadas situações de violência obstétrica, observa-se tanto o não reconhecimento da violência como uma tendência para a prática humanizada no contexto analisado, já que todas as mulheres avaliaram de forma geral positivamente a assistência recebida.

Por ser um instrumento que abarca todo o ciclo gravídico puerperal, há alguns aspectos que podem ser mais desenvolvidos. É possível promover maior envolvimento da/o acompanhante no pré-natal até o puerpério. Por outro lado, pode-se reforçar a função do plano de parto como ferramenta de continuidade do cuidado no pós-parto. O plano de parto pode ser uma forma de garantir a continuidade de atendimento no puerpério às mulheres que sofreram violência obstétrica, trazendo informações sobre o fluxo de atendimento na rede de saúde, a importância do apoio da/o acompanhante e canais de denúncia.

Considerando o cenário de abertura de profissionais para os cuidados humanizados, a utilização do plano de parto para o pós-parto como um instrumento a ser preenchido na alta hospitalar, possibilitaria a avaliação da assistência oferecida, orientações à puérpera sobre as principais temáticas que perpassam essa fase, como a amamentação e sinais de alerta, assim como aproximar a/o acompanhante no auxílio desses cuidados, além de fornecer orientação para a continuidade do atendimento na rede de saúde.

Sendo assim, tal ferramenta fomentaria ações interligadas que mutuamente se potencializam, seja por estimular que profissionais de saúde se mantenham em movimento de aperfeiçoamento em prol do atendimento humanizado de qualidade, seja por promover o engajamento das mulheres sobre o processo fisiológico e socioemocional que estão vivendo e as ações necessárias que serão escolhidas e decididas por elas.

Apresenta-se, como possível limitação do estudo, a coleta de dados referentes a apenas um perfil sociodemográfico específico. Todavia, tal limitação não impacta na relevância do estudo e abre a possibilidade de novas análises em pesquisas futuras.

 

Conflitos de interesse

O artigo não possui conflitos de interesse.

 

Fonte de financiamento

Não teve fonte de financiamento.

 

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa: Pena ED, Souza KV, Zanchetta MS; coleta dos dados, análise, interpretação e a escrita do manuscrito: Pena ED, Infante LRO, Gonçalves FR; revisão crítica do manuscrito: Patrocino LB, Zanchetta MS, Matozinhos FP, Souza KV

 

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