Enferm Bras.
2023;22(5):624-39
ARTIGO
ORIGINAL
Pandemia
de COVID-19: os impactos na vida de idosos de uma cidade pequena
Káryta Jordany
Ferreira Rezio1, Linda Alexia Cardoso de Araújo1, Beatriz
Lessa e Silva1, Silvia Queiroz de Souza Matos2, Ana
Carolina Scarpel Monacio1, Luípa Michele Silva1
1Universidade Federal de Catalão (UFCAT),
GO, Brasil
2Secretaria Municipal de Saúde de
Catalão, GO, Brasil
Recebido
em: 12 de julho de 2023; Aceito em: 12 de outubro de 2023.
Correspondência: Luípa
Michele Silva, luipams@ufcat.edu.br
Como citar
Rezio KJF, Araújo LAC, Lessa e Silva B, Matos SQS, Monacio ACS, Silva LM. Pandemia de COVID-19: os impactos na vida de idosos de uma cidade pequena Enferm Bras. 2023;22(5):
624-39. doi: 10.33233/eb.v22i5.5504
Resumo
Objetivo: Compreender as percepções sobre os
principais impactos causados na vida dos idosos que vivem na comunidade durante
a pandemia de COVID-19. Métodos: Trata-se de uma pesquisa
descritivo-exploratória de natureza qualitativa, desenvolvida em município de
pequeno porte no interior de Goiás, com 30 idosos da comunidade. A coleta de
dados ocorreu entre os meses de outubro de 2022 a fevereiro de 2023. Para a
análise e categorização dos conteúdos das entrevistas, utilizaram-se a Análise
de Conteúdo fundamentada em Bardin para a avaliação das entrevistas e um
software de dados qualitativos gratuito. Resultados: A partir das falas
dos idosos, emergiram cinco classes que foram nomeadas de acordo com seu
conteúdo predominante em: Impacto emocional e social da pandemia de COVID-19, A
solidão e a saudade causadas pela pandemia; Impactos na rotina e no envelhecer,
Os desafios gerados pela COVID-19, e Mudança nos meios de comunicação no
contexto de pandemia. Conclusão: A síntese das entrevistas demonstrou
que na pandemia os idosos se sentiram sozinhos e que as suas rotinas foram
modificadas, alterando principalmente a sua percepção sobre si, as relações
interpessoais e a necessidade de adaptar-se a um mundo tecnológico.
Palavras-chave: idosos; COVID-19; pesquisa
qualitativa.
Abstract
COVID-19 pandemic: impacts on the life of elderly
people in a small town
Objective: Comprehend the perceptions about
the main impacts caused in the lives of elderly people living in the community
during the COVID-19 pandemic. Methods: This is a descriptive-exploratory
research of a qualitative nature, developed in a small town in the interior of Goiás, with 30 elderly people from the community. Data
collection took place between October 2022 and February 2023. For the analysis
and categorization of the contents of the interviews, Content Analysis based on
Bardin was used to evaluate the interviews and free qualitative data software. Results:
From the statements of the elderly, five classes emerged, which were named
according to their predominant content: Emotional and social impact of the
COVID-19 pandemic, Loneliness and longing caused by the pandemic, Impacts on
routine and aging, The Challenges generated by COVID-19 and Change in the media
in the context of a pandemic. Conclusion: The synthesis of the interviews
showed that in the pandemic, the elderly felt alone and that their routines
were modified, mainly changing their perception of themselves, interpersonal
relationships and the need to adapt to a technological world.
Keywords: aged; COVID-19; qualitative
research.
Resumen
Pandemia
de COVID-19: impactos en la
vida de las personas mayores
en una ciudad pequeña
Objetivo: Comprender las percepciones sobre los principales impactos causados en la vida de las personas mayores que viven en la comunidad
durante la pandemia de COVID-19. Métodos: Se
trata de una investigación descriptiva-exploratoria
de carácter cualitativo, desarrollada
en una pequeña ciudad del interior de Goiás, con 30 ancianos de la comunidad. La recolección de datos se llevó a cabo entre octubre de
2022 y febrero de 2023. Para el
análisis y categorización
de los contenidos de las entrevistas se utilizó el Análisis de Contenido basado en Bardin para evaluar las entrevistas y software libre de datos
cualitativos. Resultados: De los discursos de las personas mayores surgieron cinco clases que fueron nombradas de acuerdo a su contenido predominante:
Impacto emocional y social de la pandemia del COVID-19, Soledad y añoranza provocada por la
pandemia, Impactos en la
rutina y el envejecimiento,
Los Desafíos generados por
COVID-19 y Cambio en los medios en el
contexto de una pandemia. Conclusión: La síntesis de las entrevistas mostró que, en la pandemia, las personas mayores se sintieron solas y que
sus rutinas se modificaron, cambiando principalmente la percepción de sí mismos, las
relaciones interpersonales y la
necesidad de adaptarse a un mundo tecnológico.
Palabras-clave: anciano; COVID-19; investigación cualitativa.
O
envelhecimento populacional é um processo multidimensional que está relacionado
ao declínio natural das funções fisiológicas sendo caracterizado como um
fenômeno mundial iniciado nos países de alta renda e que vem crescendo nos
países de média e baixa renda, dentre eles o Brasil. Embora desejável e que
representa uma conquista da humanidade, esse crescimento traz implicações
sociais, econômicas, políticas e de saúde [1].
Segundo
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no ano de 2018, a
porcentagem da população brasileira com 65 anos ou mais foi de 9,2% (19,2
milhões). Estima-se que até 2060 o percentual dessa população chegará a 25,5%
(58,2 milhões), um aumento considerável [2].
A
transição demográfica atual é marcada pelo aumento da expectativa de vida e
pela diminuição da taxa de fecundidade, resultando em mudanças nos padrões de
comportamento e arranjos familiares [2]. A proporção de famílias compostas por
uma pessoa no Brasil aumentou, evidenciando um grande número de idosos com
pouco ou nenhum parente próximo. Embora a tendência seja viver de forma
independente e ficar sozinho, a solidão vivenciada pelos idosos não é uma
consequência natural do envelhecimento e afeta negativamente sua qualidade de
vida [3].
A
solidão é um sentimento complexo, que surge da percepção desagradável associada
à falta de apoio ou rede social, estando diretamente ligada a doenças
psiquiátricas, como depressão e ansiedade. Também existe a associação entre a
solidão e estilos de vida pouco saudáveis, como fumo, consumo de álcool, estilo
de vida sedentário e dieta não saudável, bem como hipertensão, síndrome
metabólica e doenças cardiovasculares [4].
No
contexto da pandemia de COVID-19, em que a propagação do vírus se dava pelas
gotículas presentes no ar, medidas como o isolamento se tornaram essenciais
para evitar a disseminação. Esse distanciamento causou muitos impactos
psicológicos na população em geral e a solidão passou a ser mais presente
especialmente entre os mais velhos. Com o avançar da idade é comum a diminuição
das redes de apoio social, perda de autonomia, redução do convívio social,
perda de capacidades físicas e psicológicas, a solitude
torna-se habitual [5].
Neste
contexto, ao estudarmos o sentimento de solidão na perspectiva dos idosos,
podemos entender como eles lidam com essa situação. Compreender os fatores que
podem intensificar esse processo, como a falta de apoio social, dificuldades em
lidar com tecnologias digitais, a ausência de uma rotina ocupada e a falta de
momentos de recreação. E também investigar os fatores que podem reduzir a
solidão, como relações afetivas, envolvimento em práticas culturais, acesso à
tecnologia e à internet.
O
estudo partiu de duas questões norteadoras: Qual a percepção dos idosos sobre
os impactos causados na vida dos idosos que vivem na comunidade durante a
pandemia de COVID-19? Para responder a essa questão o seguinte objetivo foi
formulado: apreender as percepções sobre os principais impactos causados na
vida dos idosos que vivem na comunidade durante a pandemia de COVID-19.
Trata-se
de uma pesquisa exploratória e descritiva, de caráter qualitativo, realizada no
município de Catalão/GO. Este município está localizado no interior de Goiás e
possui cerca de 108 mil habitantes, dos quais 10% estão na faixa etária de 60
anos ou mais [2]. O manuscrito foi conduzido de acordo com o Consolidated criteria for reporting qualitative research [6].
No
estudo foi utilizada a técnica bola de neve, que consiste em uma amostra não
probabilística utilizada em pesquisas sociais, os primeiros participantes de um
estudo indicam novos participantes que, por sua vez, indicam novos
participantes, e assim sucessivamente. Com a técnica se chegou a 30 idosos, não
sendo entrevistados mais idosos devido ao “ponto de saturação”, que foi
alcançado quando os novos respondentes começam a repetir o conteúdo já obtido
em entrevistas anteriores sem acrescentar novas informações relevantes para a
pesquisa [7].
Os
critérios de inclusão utilizados para recrutar os primeiros idosos foram: ser
de ambos os sexos, que moravam só ou na companhia do cônjuge ou de apenas um
familiar, residirem em Catalão e que possuíam condições de responder ao
questionário. E de exclusão: idosos que moravam com muitas pessoas, que não
residiam em Catalão e que dependiam de outrem para se comunicar.
Para
a coleta de dados foi utilizado um instrumento contendo o perfil
sociodemográfico com informações tais como sexo (masculino e feminino), idade
(anos completos), estado conjugal (solteiro, casado, viúvo e divorciado),
escolaridade (anos de estudo), número de filhos, número de pessoas que moram
com o idoso e renda mensal do idoso e família, e como cuida da saúde (plano de
saúde, privado, Sistema Único de Saúde, benzedeira, balconista de farmácia,
outro).
E
o roteiro de entrevista contendo as questões norteadoras: O/A senhor (a) pode
me dizer como tem sido sua rotina durante a pandemia? Quais as atividades que o
senhor sentiu dificuldade de realizar durante a pandemia? Sente falta de ter
alguém para contribuir na realização dessas atividades? Houve alguma tarefa
(como por exemplo, as domésticas) que o/a senhor(a) fazia antes que foi
prejudicada pela pandemia de COVID-19? Seus familiares e amigos têm visitado
o(a) senhor(a) com a mesma frequência de antes da pandemia? Como tem sido esse
vínculo/relação? O/A senhor (a) se sente sozinho? Quais outros sentimentos tem
conseguido perceber durante a pandemia? Fale-me um pouco como você se sente.
Quais os impactos desses sentimentos na qualidade de vida do(a) senhor(a)?
Quando o/a senhor(a) se sente sozinho(a), o que costuma fazer para tentar
amenizar isso? Tem facilidade com a internet? Faz uso de redes sociais como uma
ferramenta? Quais os meios de comunicação o/a senhor(a) utiliza durante a
pandemia de COVID-19? Quais deles têm utilizado com mais frequência para se
comunicar com amigos e familiares?
A
coleta teve início a partir do mês de agosto de 2022 e foi até fevereiro de
2023. Para início do projeto foram procurados dentro da população geral idosos
com condições de responder ao questionário. Os candidatos iniciais ajudaram as
pesquisadoras a identificar o grupo de idosos a serem pesquisado. Foi
solicitado que os primeiros candidatos indicassem novos contatos com as
características pretendidas, da sua própria rede social e assim sucessivamente.
Dessa forma, o quadro de amostragem cresceu em cada entrevista, até que ficou
saturado, e os nomes encontrados não traziam novas informações para o quadro
analítico.
Para
a análise das informações, foi utilizado o programa Microsoft Excel® para a
tabulação das informações e uma dupla digitação e a seguir foi realizada uma
análise de consistência para a comparação das digitações, observado se havia
algum erro, verificando as informações no instrumento para fazer a respectiva
correção. Posteriormente os dados foram transportados no programa estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) v.
22.0 e se utilizou a estatística descritiva.
As entrevistas foram realizadas pelas
estudantes da graduação previamente treinadas, foram gravadas e transcritas com
o intuito de analisar as respostas dadas pelos participantes. Para a análise
das informações demográficas utilizou-se uma planilha do programa Microsoft
Excel e uso da estatística descritiva.
Para
a análise das entrevistas, optou-se pela técnica de análise de conteúdo
temática proposta por Bardin [8] que integrou as etapas de organização de
análise, codificação, categorização, tratamento e interpretação dos resultados,
e seleção das unidades de análise. Para a seleção das unidades de análise e
criação das classes, utilizou-se o software Interface de R pour
les Analyses multidimensionnelles de textes et
de questionnaires (IRAMUTEQ), que faz análise sobre
os dados textuais, para esta etapa o método escolhido foi o método Reinert que gera a Classificação Hierárquica Descendente
(CHD) que consiste em analisar a distribuição de vocábulos no corpus textual
das entrevistas formando as classes e os seus respectivos elementos
constitutivos [9].
Para
manter a confidencialidade sobre a identidade dos idosos, utilizou-se o termo
abreviado sujeito "suj.", seguido por número ordinal sequencial na
ordem de realização das entrevistas (Suj. 01, Suj. 02, até o Suj. 30).
O
projeto foi submetido ao Comitê de Ética Universidade Federal de Catalão, sendo
aprovado sob o número do parecer 5.477.498 e o CAAE: 56825222.3.0000.0164. A
pesquisa respeitou todos os preceitos éticos. Antes de iniciar cada entrevista,
foi disponibilizado o termo de consentimento livre e esclarecido.
A
partir dos dados, os resultados são apresentados a partir de uma caracterização
descritiva simples dos idosos entrevistados e da análise das entrevistas que
foram submetidas ao software e auxiliaram na análise em profundidade das
classes temáticas.
Participaram
do estudo 30 idosos, 70% eram do sexo feminino e 30% do sexo masculino, a idade
variou entre 60 e 90 anos, com uma média de 72,3 anos (dp
- 7,5). Com relação à situação conjugal, 43,3% referiram ser casados, seguidos
dos divorciados/separados 33,3%. Quando questionados com quem moravam, 50%
referiram morar apenas com o cônjuge. A respeito da renda o valor informado
variou entre R $1.200,00 e R $3.600,00, sendo a média R $1.646,73 (dp - 776, 22). Quanto à religião, 66,7% proferiram ser da
religião católica. No que tange ao número de filhos, os valores variaram de
zero a cinco, com uma média de 2,5 filhos (dp -
1,22). Com relação a anos estudados, o mínimo foi de zero e o máximo de 17
anos, com uma média de 6,17 anos (dp - 4,00). E a 70%
referiram usar o Sistema Único de Saúde como serviço para os cuidados com a sua
saúde.
A
seguir, estão o dendrograma (figura 1) que foi gerado
pelo software de análise de dados textuais, e a partir da criação das cinco
classes e dos conteúdos predominantes que são exemplificados em cada classe,
nomeou-se da seguinte forma: Impacto emocional e social da pandemia de
COVID-19, A solidão e a saudade causadas pela pandemia, Impactos na rotina e no
envelhecer, Os desafios gerados pela COVID-19 e Mudança nos meios de
comunicação no contexto de pandemia. Os trechos que exemplificam cada classe
foram extraídos do corpus criado pelo software e analisados com auxílio da
literatura pertinente.
Fonte:
Autoria própria, 2023.
Figura
1 – Dendrograma
gerado pelo IRAMUTEQ a partir das falas dos idosos
A
primeira classe, denominada: “Impacto emocional e social da pandemia de
COVID-19”. Várias idosos mencionam sentir medo, ansiedade, tristeza, depressão
e solidão, além de terem que lidar com mudanças na rotina e na forma como se
relacionam com outras pessoas.
Apesar
de cada frase ter um contexto e um estilo de linguagem diferentes, todas
refletem a complexidade e os desafios que a pandemia trouxe para a vida das
pessoas, incluindo os idosos. Alguns citam dificuldade de conseguir produtos ou
alimentos específicos, enquanto outros mencionam a falta de contato com amigos
e familiares, e o medo de sair de casa.
“Acho
que senti medo, ansiedade né! Por ter que ficar o tempo todo em casa, vendo
essas notícias das mortes, aí foi muito ruim, principalmente o medo.” (Suj. 01)
“As
pessoas traziam as coisas pra gente e nunca trazia do jeito que a gente queria,
traz no exagero, traz coisa que a gente não gosta. Não dá! Foi muito triste.”
(Suj. 02)
“Eu
tenho depressão né! Aí a pandemia piorou um pouco, mas eu consigo controlar com
remédio, eu tomo dois tipos de remédios controlado para dormir. Foi muito ruim,
a gente ficou com medo, aí vem a ansiedade.” (Suj. 07)
Na
segunda classe, as frases apresentadas compartilham um tema central, “A solidão
e a saudade causadas pela pandemia”. Todas referem-se a situações de
isolamento, seja por causa da pandemia, seja por perda de entes queridos.
Alguns dos entrevistados mencionaram que perderam irmãos, pais, companheiro(a),
o que os faz sentir uma grande falta dessas pessoas, outros mencionam que vivem
sozinhos e sentem a casa vazia. Para lidar com a solidão, muitos buscam a companhia
de amigos, familiares e vizinhos, ainda que seja de maneira virtual. Além
disso, vários entrevistados relatam a importância da espiritualidade em suas
vidas, seja por meio da reza do terço, da assistência a missas ou do cultivo de
uma espiritualidade pessoal.
"Tem
tristeza também, porque perdi um irmão e um amigo da gente aqui. Sair de casa
mesmo com menos preocupação só depois de muito tempo da vacinação. Dou uma
volta aqui pelo quarteirão, ligo a tv ou o rádio pra assistir minhas missas.”
(Suj. 01)
“Além
da gente ficar isolado né! A família não pode ir na casa da gente, a gente não
pode ir na casa da família, não podia pegar na mão, não podia chegar perto,
coisa mais ruim.” (Suj. 02)
“Uma
tristeza também, porque a gente já não tem mãe, não tem pai, meu irmão vai
fazer 6 meses que faleceu, sinto falta dele demais! Vinha cá toda hora.” (Suj.
05)
Na
terceira classe, “Impactos na rotina e no envelhecer”, as falas estão
relacionadas à experiência de envelhecer e aos diferentes desafios e alegrias
que vêm com essa fase. Discorrem sobre a rotina da pessoa idosa durante a
pandemia, sobre problemas de saúde que dificultam o dia-a-dia e sobre a rede de
apoio de familiares e amigos. Em geral, as frases tratam da vida cotidiana e
das dificuldades que a pessoa idosa enfrenta diariamente.
Os
idosos entrevistados compartilharam suas atividades diárias, como rezar em
grupo, cuidar das aves, costurar e cozinhar, afazeres realizados para ocupar
seu tempo e lidar com seus sentimentos de solidão.
“A
rotina foi ficar aqui em casa mesmo, não saía. Eles falavam: "fulano vai
viajar" aí pega o trem né, eu sempre falava “não vamos ficar quieto pra
ver se acaba isso”. (Suj. 02)
“Faço
quase nada, porque eu tenho dez parafusos na coluna, então é difícil demais
quase tudo que eu vou fazer, até descer essas escadas, aí dependendo da pancada
ainda doí”. (Suj. 03)
“Ficar
quieta em casa, arrumando as coisas, rezo também, faço umas costuras pra fora,
faço uns tapetes para ocupar o tempo. Ficar parado é ruim demais!” (Suj. 06)
“Só
tenho a minha filha pra me ajudar, é ela que leva meu marido ao médico, leva e
traz do hospital. Ele ficou 6 dias na uti e ela fica pra lá e pra cá!” (Suj.
13)
Na
quarta classe, denominada “Os desafios gerados pela COVID-19”, as frases
discutem diferentes aspectos de como a pandemia da COVID-19 afetou a vida
diária das pessoas entrevistadas. Muitos dos entrevistados discutem como
adaptar suas rotinas para se acomodar a pandemia, com alguns continuando suas
atividades diárias sem muita dificuldade e outros lutando para encontrar novas
formas de passar o tempo. Alguns idosos sentiram falta de ir a serviços
religiosos, de passar tempo com amigos e familiares, do contato físico, como
abraços e apertos de mão, enquanto outros acharam fácil manter suas conexões
sociais por meio de ligações telefônicas ou outros meios.
Enquanto
algumas pessoas se sentiam solitárias durante a pandemia, outras não
experimentaram muita mudança em suas vidas sociais. Algumas pessoas estavam
preocupadas com o risco de infecção e tomaram precauções extras para manter a
si mesmas e seus entes queridos seguros. No geral, as falas fornecem uma visão
das muitas maneiras diferentes pelas quais os idosos foram afetados pela
pandemia.
“Só
fiquei quieto em casa com minha mulher. O que mais senti dificuldade durante a
pandemia foi usar a máscara, fica me sufocando, agora de atividade eu continuei
fazendo as mesmas coisas de sempre” (Suj. 21)
“Eu
senti falta de várias coisas durante a pandemia! Por exemplo, da religião, na
maioria das vezes eu não conseguia ir na igreja, ir na casa dos vizinhos, ir
visitar um amigo doente, então tudo isso foi muito difícil!” (Suj. 22)
Na
quinta classe, “Mudança nos meios de comunicação no contexto de pandemia”, as
falas têm em comum o fato de que todas mencionam os meios de comunicação que os
idosos usam em seu cotidiano, especialmente em relação aos celulares e à
internet. Embora as habilidades e preferências variem, muitas pessoas usam
esses dispositivos principalmente para comunicação, seja por meio de ligações,
mensagens ou redes sociais como o WhatsApp e o Facebook. Além disso, muitas
delas mencionam o uso do YouTube, principalmente para assistir a vídeos
religiosos ou de entretenimento.
Uma
importante diferença é a forma como as pessoas se referem à internet. Algumas
afirmam não gostar ou não ter facilidade com a internet, enquanto outras não
têm problemas em usá-la. Algumas pessoas mencionam o uso da internet como uma
forma de se distrair ou se sentir menos sozinhas, enquanto outras preferem se
ocupar com outras atividades.
“Eu
mexo com internet, youtube, mando áudio pelo whatsapp”. (Suj. 22)
“Mexo
mais no celular mesmo. Tenho facilidade sim, mexo no face, youtube,
whatsapp”. (Suj.08)
“Eu uso
o whatsapp, tenho instagram,
mas não sei mexer muito com esse trem não, uso mais whatsapp
no telefone celular mesmo”. (Suj.09)
A
partir das classes temáticas e dos conteúdos das enunciações dos idosos
participantes, evidencia-se a dificuldade imposta pela pandemia, principalmente
quando se trata de estar distante de quem se ama e ter que se adaptar ao mundo
tecnológico que para eles ainda não era tão acessível. Dessa forma, as rotinas
diárias, a mudança de hábitos impostas pela pandemia e a perda de entes
queridos refletem o quanto para os idosos foi difícil se o período pandêmico e
o quanto ele impacta a percepção que esses idosos tinham de si e do próprio
envelhecimento.
Com
a pandemia de COVID-19 e por consequência do isolamento social como forma de
controlar o contágio da doença percebeu-se um grande impacto emocional e social
na vida dos idosos entrevistados. Santos, Brandão e Araújo [10] trazem que o
isolamento social causa diversas emoções negativas e na velhice essas
experiências podem ser mais exacerbadas devido a serem um grupo de maior
vulnerabilidade, por terem medo de ficar sem os entes queridos e de envelhecer.
O
isolamento social contribuiu negativamente para a saúde mental e, no estilo de
vida dos brasileiros, os sentimentos mais vivenciados foram: a solidão, a
ansiedade e a tristeza [11]. Sentimentos esses que foram vivenciados por vários
sujeitos entrevistados, por exemplo no Suj.01 que relatou sentir medo e
ansiedade devido a ter que ficar o tempo todo em casa assistindo noticiários de
mortes decorrentes da COVID-19.
Além
do aumento dos sentimentos negativos durante o período, as pessoas também
tiveram que lidar com mudanças na rotina e a forma de como se relacionar com as
outras pessoas. Houve uma redução na prática de atividade física, as restrições
sociais impostas pela pandemia resultaram em mais tempo frente às telas, menos
consumo de alimentos saudáveis e aumento no consumo de tabaco e álcool, fatores
esses que colocam a saúde em risco [12].
A
primeira reflexão que os achados deste estudo denotam é que o envelhecimento
gera uma modificação no papel social e rotinas dos idosos, e há fatores que
podem interferir na promoção de saúde e nos comportamentos protetivos. Um
estudo realizado em Goiás [13],
mas com idosos da capital, destaca que os
idosos com mais anos de estudo adotam hábitos de vida mais
saudáveis e
protetores em relação à saúde, e são
os mais participativos em ações de
educação e promoção da saúde.
Já idosos com baixa escolaridade são sedentários
e fazem uma baixa ingestão de alimentos saudáveis e pouca
prática de atividade
física. E nas falas ficaram visíveis que as
características sociodemográficas
influenciam na percepção que os idosos têm de si e
dos impactos que a pandemia
causou na sua rotina.
Na
classe dois, ficou visível que os idosos relataram sentir-se só devido ao
distanciamento. Estudos apontaram que houve um aumento significativo de solidão
em idosos durante a pandemia de COVID-19. Em uma pesquisa realizada em São
Francisco [14], da qual participaram 151 idosos, os resultados indicaram que
54% apresentaram piora na solidão durante a pandemia de COVID-19. Diferente do
que foi encontrado por esta pesquisa, um estudo aponta que os idosos que
possuem rede de apoio apresentam proteção contra sintomas depressivos, de
ansiedade e de solidão. Indicando que a presença de pessoas próximas diminui o
risco de se sentir só [15].
Outro
estudo realizado por Romero et al. [16] revelou que metade dos idosos
relatou frequentemente sentir solidão e esse sentimento foi mais comum entre as
mulheres idosas em comparação aos homens. Achados parecidos foram encontrados
neste estudo, porém o número de idosas entrevistadas foi notoriamente maior que
o de idosos, não chegando a uma conclusão sólida.
O
aumento da solidão também foi piorado pela
experiência coletiva de luto devido
à alta taxa de mortalidade entre pessoas da mesma faixa
etária, além de
sentir-se abandonado pelos governantes, expresso através de
comentários que
destacam a vulnerabilidade dos idosos afetados pela pandemia.
Além disso, a
ausência de políticas públicas de
proteção também contribui para essa
situação
[17]. Fato evidenciado na fala do sujeito cinco: “Uma tristeza também, porque a
gente já não tem mãe, não tem pai, meu irmão vai fazer seis meses que faleceu,
sinto falta dele demais! Vinha cá toda hora.”
Estes
idosos dentro de sua rotina diária, buscaram diversas formas de combater esses
sentimentos negativos ligados à solidão. Para Ribeiro et al. [18], a
escolha de uma atividade de lazer é individual e proporciona prazer pessoal,
melhoria da saúde e da qualidade de vida.
Na
pandemia de COVID-19, os idosos relataram a realização de atividades para
ocupar o tempo sendo citada culinária como a principal (40%), seguida por
cuidados com jardins (16%), cultivo de hortas e artesanatos em casa (9%), além
de outros hobbies [18]. De maneira semelhante, a grande maioria dos
entrevistados nesta pesquisa, citam o ato de cozinhar e de cuidar das plantas e
hortaliças como hobbies e atividades constantes de seu dia a dia, sendo
referida por eles como uma ferramenta para manter-se ocupados.
Apesar
da proatividade destes idosos para manter uma rotina atarefada e sem espaços
para pensamentos autodepreciativos, com o avançar da idade várias limitações
começam a aparecer e os afazeres se tornam cada vez mais difíceis. Além de
lidar com o adoecimento, os idosos também precisavam lidar com a interrupção de
suas vidas profissionais, a organização dos cuidados domiciliares, a sobrecarga
de responsabilidades assumidas por membros da família, os custos dos cuidados e
de sobrevivência [19]. Assim, é evidente que esta fase da vida pode ser
considerada a mais desafiadora, são inúmeras as responsabilidades e há uma
progressiva perda do vigor físico e mental.
A
partir das classes, fica evidente que a pandemia trouxe mudanças bruscas nos
hábitos de vida, incluindo aspectos sobre higiene como lavagem de mãos e
materiais constantes, uso de álcool em gel, uso de máscara, de distanciamento
social e outros, como a cultura que por exemplo no interior de Goiás os idosos
têm o hábito de receber visitas à tarde com o tradicional “café da tarde e
quitutes”, a perda dessa prática contribuiu para o surgimento do sentimento de
solidão.
Além
disso, os idosos entrevistados também relataram a falta de ir a
lugares que
frequentavam antes da pandemia, como serviços religiosos, baile
da terceira
idade, clube de jogos e academia. Locais estes que teve que fechar
rapidamente
após o início da pandemia devido às
orientações dos órgãos de saúde como
forma
de evitar o contágio da doença. O lockdown trouxe
consequências sociais, especialmente negativas, pois a circulação era restrita,
reduzindo o bem-estar de muitos e a sensação de encarceramento tornava-se
frequente [20].
É
neste contexto de isolamento extremo que os meios de comunicação se fortalecem
ainda mais, diminuindo assim a distância e contribuindo para o bem-estar físico
e psicológico, auxiliando na redução da solidão [21]. Todos os idosos
entrevistados relataram utilizar algum meio de comunicação para manter o
contato com seus amigos e parentes, sendo o celular o mais relevante.
O
Smartphone, durante a pandemia, tornou-se a principal forma de se fazer
ligações, mandar mensagens, navegar na internet, mexer nas redes sociais e
realizar reuniões, um único aparelho é capaz de realizar diversas funções [22].
O Youtube, Whatsapp, Facebook e Instagram foram
diversas vezes citados pelos idosos, demonstrando que mesmo com receio, houve
uma adesão progressiva dessa parcela da população às tecnologias digitais.
Entretanto,
uma parte significativa dos idosos entrevistados relataram ter muitas
dificuldades ao usar o telefone celular, utilizando o aparelho apenas para
receber as ligações de seus amigos e familiares. De acordo com Seifert, Cotten e Xie [23], ao levar em
conta as restrições impostas pela pandemia, os idosos podem experimentar uma
sensação de exclusão em dobro. Isso ocorre tanto pelo distanciamento físico que
se faz necessário, quanto pela dificuldade em utilizar, entender ou se adaptar
aos dispositivos tecnológicos.
Como
limitações do estudo, destaca-se o fato de a coleta de dados ter sido
desenvolvida no período da pandemia da COVID-19 e boa parte dos idosos não se
sentiam confortáveis em receber visitas em suas residências.
A
pandemia não apenas modificou o dia a dia dos idosos, mas também trouxe à tona
a necessidade que os idosos relataram em se adaptar ao novo e a sua nova forma
de viver. Além disso, os idosos tiveram a percepção de que envelhecer é
difícil, sendo ela permeada pela ressignificação do estar só e estar em casa
trancafiado com o medo do desconhecido.
A
pesquisa possibilitou conhecer os impactos gerados pela pandemia na vida de
idosos de uma cidade do interior, que viviam com uma renda baixa e tiveram que
criar novas formas, como o uso de tecnologias, para enfrentar os sentimentos
negativos aflorados pela pandemia. Fica evidente que o poder público precisa
olhar para esta população que enfrenta não apenas dificuldades financeiras, mas
as limitações impostas pelo envelhecimento.
É
sabido que no início da pandemia, os idosos eram o grupo de maior
vulnerabilidade, sendo necessário manter-se isolado e atento a sua saúde. Após
a criação das vacinas, o que não foi tão fácil de ser garantido no Brasil e
ainda houve a desinformação, os idosos precisam ser atendidos com linguajar
adequado e acolhidos nessa nova forma de perceber-se e perceber o mundo. Devem
ser garantidos os seus direitos através de leis e políticas públicas já
integrando as tecnologias e as novas formas de serem inseridos, pois os idosos
agora devem ter acesso ao mundo digital e não terem medo de serem enganados e
ludibriados por terceiros.
Conflitos
de interesse
Não
Fontes
de financiamento
MCTIC/CNPq/FNDCT/MS/SCTIE/Decit Nº 07/2020 - Pesquisas para enfrentamento da
COVID-19, suas consequências e outras síndromes respiratórias agudas graves.
Projeto intitulado: “Avaliação da operacionalização da Prevenção e Controle da
Doença do Coronavírus pelos aspectos comportamentais
no uso dos Equipamentos de Proteção Individual - enfoque nos profissionais de
saúde”. Processo número 402325/2020-6.
Contribuição
dos autores
Concepção
e desenho da pesquisa:
Rezio KJF, Cardoso LA, Silva LM; Coleta de dados: Rezio KJF, Cardoso LA; Análise e interpretação dos dados:
Rezio KJF, Cardoso LA, Silva LM; Análise
estatística: Silva LM; Redação do manuscrito: Rezio KJF, Cardoso LA, Silva LM; Revisão crítica do
manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Moncaio ACS, Matos SQS, Silva BL, Silva LM.