Enferm Bras. 2023;22(6):917-37

doi: 10.33233/eb.v22i6.5507

ARTIGO ORIGINAL

Planejamento da alta hospitalar: percepção de enfermeiros da unidade de internação

 

Lourdes Helena de Paula da Silva, Karine Cristina Siqueira Cunha, Zélia Marilda Rodrigues Resck, Roberta Garcia Gomes, Bianca Silva de Morais Freire, Roberta Seron Sanches

 

Universidade Federal de Alfenas, MG, Brasil

 

Recebido em: 17 de julho de 2023; Aceito em: 20 de dezembro de 2023.

Correspondência: Lourdes Helena de Paula da Silva, lourdes.depaula@sou.unifal-mg.edu.br

 

Como citar

Silva LHP, Cunha KCS, Resck ZMR, Gomes RG, Freire BSM, Sanches RS. Planejamento da alta hospitalar: percepção de enfermeiros da unidade de internação. Enferm Bras. 2023;22(6):917-37. doi: 10.33233/eb.v22i6.5507

 

Resumo

A alta hospitalar representa o retorno da pessoa hospitalizada ao domicílio e deve ser realizada de forma responsável, reforçando a autonomia e o autocuidado, visando a continuidade do tratamento. O presente estudo buscou conhecer a percepção de enfermeiros de unidade de internação sobre o planejamento da alta hospitalar. Trata-se de pesquisa qualitativa, de abordagem fenomenológica, desenvolvida em ambiente virtual, com oito enfermeiros que atuavam em unidade de internação hospitalar, selecionados por meio da técnica de amostragem snowball, considerando-se a saturação dos dados. Obteve-se aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Os resultados mostraram predomínio de participantes do sexo feminino, com idade entre 30 e 35 anos, solteiros e com o tempo de atuação de quatro a seis anos. O conteúdo das entrevistas propiciou construir duas categorias de análise, “Processo de alta centrado no profissional médico: atuação limitada dos enfermeiros” e “Alta hospitalar: um processo planejado pela equipe multiprofissional”, a qual contemplou duas subcategorias “Planejamento da alta: segurança, qualidade e continuidade dos cuidados” e “Valorização da equipe multiprofissional na alta hospitalar”. Apreendeu-se que para os enfermeiros o planejamento da alta hospitalar ocorre de maneira centralizada no médico ou de uma forma planejada junto com à equipe multiprofissional, a depender do contexto em que os participantes estão inseridos.

Palavras-chave: alta do paciente; enfermagem; equipe de assistência ao paciente.

 

Abstract

Hospital discharge planning: perception of inpatient unit nurses

Hospital discharge represents the return of a hospitalized person to their home and should be carried out in a responsible manner, reinforcing autonomy and self-care, in order to ensure continuity of treatment. The present study aimed to understand the perception of inpatient nurses about hospital discharge planning. It is a qualitative study with a phenomenological approach, developed in a virtual environment, with eight nurses working in a hospital inpatient unit, selected by snowball sampling, considering data saturation. Approval was obtained from the Research Ethics Committee. The results showed a predominance of female participants, aged between 30 and 35 years, single, and with a work experience of four to six years. The content of the interviews made it possible to construct two categories of analysis, “Discharge process centered on the medical professional: limited role of nurses” and “Hospital discharge: a process planned by the multidisciplinary team”, which included two subcategories “Discharge planning: safety, quality and continuity of care” and “Valuing the multidisciplinary team in hospital discharge”. It was understood that for nurses, hospital discharge planning occurs in a centralized manner in the physician or in a planned manner together with the multidisciplinary team, depending on the context in which the participants are inserted.

Keywords: patient discharge; nursing; patient care team.

 

Resumen

Planificación del alta hospitalaria: percepción de los enfermeros de la unidad de internación

El alta hospitalaria representa el retorno de la persona hospitalizada al domicilio y debe realizarse de forma responsable, reforzando la autonomía y el autocuidado, con el fin de garantizar la continuidad del tratamiento. El presente estudio tuvo como objetivo conocer la percepción de los enfermeros de la unidad de internación sobre la planificación del alta hospitalaria. Se trata de una investigación cualitativa, con un enfoque fenomenológico, desarrollada en un entorno virtual, con ocho enfermeros que trabajaban en una unidad de internación hospitalaria, seleccionados mediante la técnica de muestreo bola de nieve, teniendo en cuenta la saturación de los datos. Se obtuvo la aprobación del Comité de Ética en Investigación. Los resultados mostraron un predominio de participantes mujeres, con edades entre 30 y 35 años, solteras y con un tiempo de experiencia de cuatro a seis años. El contenido de las entrevistas permitió construir dos categorías de análisis, “Proceso de alta centrado en el profesional médico: actuación limitada de los enfermeros” y “Alta hospitalaria: un proceso planificado por el equipo multiprofesional”, que contempló dos subcategoríasPlanificación del alta: seguridad, calidad y continuidad de los cuidados” y “Valorización del equipo multiprofesional en el alta hospitalaria”. Se comprendió que para los enfermeros la planificación del alta hospitalaria se produce de forma centralizada en el médico o de una forma planificada junto con el equipo multiprofesional, en función del contexto en el que se encuentran los participantes.

Palabras-clave: alta del paciente; enfermería; equipo de atención al paciente.

 

Introdução

 

A alta hospitalar representa o retorno da pessoa hospitalizada ao domicílio. Embora seja um momento associado à melhora ou estabilidade das condições de saúde, é também um contexto desafiador, uma vez que frequentemente, há a necessidade de continuidade dos cuidados, principalmente quando se considera o aumento crescente das condições crônicas e da complexidade da assistência à saúde na atualidade [1].

De acordo com a Política Nacional de Atenção Hospitalar, a alta deve ser realizada de forma responsável, mediante orientação dos pacientes e familiares quanto à continuidade do tratamento, reforçando a autonomia e o autocuidado. Deve, ainda, contemplar a articulação do hospital com os demais pontos de atenção da Rede de Atenção à Saúde (RAS) para permitir esta continuidade, assim como garantir a implantação de mecanismos de desospitalização, como é o caso dos cuidados domiciliares pactuados na RAS [2].

Assim, entende-se a alta como um processo de transição de cuidados, o qual pode predispor a pessoa a eventos adversos, principalmente no que diz respeito a falhas de medicamentos e de comunicação, sendo o planejamento e o envolvimento do paciente e da família no processo, fundamentais para a segurança do paciente após a sua saída do hospital [2,3].

Concernente ao planejamento da alta hospitalar, trata-se da elaboração de um plano personalizado para cada paciente internado, com o objetivo de reduzir a duração da internação, prevenir reinternações e contribuir para a organização dos cuidados pós-alta, seja no domicílio ou em outros níveis de atenção [4].

Este planejamento deve ser iniciado o mais precocemente possível e, idealmente, nas primeiras 24 horas após a admissão, sendo entendido como um componente da assistência durante todo o processo de hospitalização [5].

Ainda que a alta hospitalar seja de responsabilidade privativa do profissional médico, o plano de alta deve ser realizado pela equipe multidisciplinar [6]. Assim, por meio da interação entre os profissionais envolvidos no processo saúde-doença, busca-se superar a fragmentação do cuidado através da discussão das necessidades apresentadas pela pessoa adoecida, compreendendo-a dentro de sua realidade [7].

O enfermeiro é referido como um profissional articulador, capaz de manter o elo entre a equipe de saúde para o plano de alta [6,8]. Assim, aponta-se na literatura que suas atividades face a alta hospitalar contemplam a identificação de critérios de elegibilidade para a alta; a discussão de sua previsão junto à equipe médica; a participação na elaboração do plano de alta; a coleta de informações sobre cuidadores e rede de apoio, bem como sobre os fatores facilitadores e dificultadores da continuidade dos cuidados; a comunicação com o paciente e a família, buscando o envolvimento destes; e a elaboração e registro do plano de alta no prontuário do paciente [9].

Observa-se, diante do exposto, o papel protagonista do enfermeiro frente à alta hospitalar, o qual é reconhecido como um profissional com competência para a coordenação do planejamento da mesma [6].

Acrescenta-se, ainda, que o enfermeiro atua no ensino dos cuidados a serem realizados no domicílio, na documentação dos encaminhamentos necessários, na articulação com a assistência social para o atendimento de demandas específicas, no compartilhamento de informações com o município de origem e no agendamento de visita domiciliar junto à unidade de atenção primária de referência quando houver a necessidade de cuidados mais complexos [9].

Vale ressaltar que, por meio do planejamento da alta hospitalar e da elaboração do plano individualizado segundo as necessidades do paciente, é possível sistematizar as ações e fornecer subsídios para a tomada de decisão de forma consciente, embasada em evidências científicas, buscando a prevenção de reinternações por complicações decorrentes de falhas nos cuidados pós-alta [8].

Contudo, pondera-se que, ainda que os enfermeiros reconheçam a alta hospitalar como um processo planejado e imprescindível para viabilizar a continuidade e a segurança dos cuidados no domicílio, na prática sua participação neste processo ainda pode ser limitada, concentrando-se em ações pontuais de educação em saúde sobre ferida operatória, uso de medicamentos, mudanças no estilo de vida e acompanhamento ambulatorial [10].

Entre os fatores que concorrem para a reduzida participação do enfermeiro no planejamento da alta hospitalar, incluem-se as fragilidades na comunicação entre os profissionais que compõem a equipe assistencial, a sobrecarga de atividades, o déficit de pessoal e a burocratização do trabalho [10-12].

Adicionalmente, sugere-se que possam existir lacunas na compreensão dos enfermeiros acerca do planejamento da alta hospitalar como um processo a ser organizado, teorizado e praticado no âmbito da Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE) e do Processo de Enfermagem (PE) [10].

Destarte, considera-se que a implantação do PE pode contribuir para garantir uma atuação mais ativa e humanizada do enfermeiro e, por conseguinte, contribuir para incorporação do plano de alta hospitalar ao planejamento da assistência de enfermagem [7].

Reconhece-se, portanto, que a participação e o comprometimento do enfermeiro no planejamento da alta necessitam ser ampliados para a melhoria da qualidade e segurança nas transições de cuidado, o que denota a necessidade de sistematizar o trabalho da equipe de saúde no processo de alta hospitalar e implica mudanças de atitudes dos profissionais [3,7].

Posto isso, este estudo tem como objetivo, conhecer a percepção de enfermeiros de unidades de internação sobre o planejamento da alta hospitalar.

 

Métodos

 

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de abordagem fenomenológica, a qual compreende uma forma científica de pensar na realidade, investigando sentido em diferentes visões e pensamentos acerca da interpretação do mundo como fenômeno, realidade, consciência, essência, verdade e experiência [13].

O estudo foi desenvolvido a partir de depoimentos de enfermeiros que exercem assistência em unidades de internação hospitalar. O convite para contribuição no estudo foi empreendido pela rede social Whatsapp aos profissionais de enfermagem que estivessem entre os contatos pessoais dos pesquisadores, ou, ainda, que faziam parte de seus grupos do Whatsapp. Adotou-se como critérios cumulativos de elegibilidade, ser enfermeiro, atuar em unidade de internação hospitalar, possuir experiência mínima de seis meses, e possuir idade igual ou superior a 18 anos; e como critérios de exclusão a atuação em atividades não assistenciais, como supervisão e auditoria.

A partir do convite inicial, os profissionais que atenderam aos critérios de elegibilidade e aceitaram colaborar com o estudo indicaram outros participantes. Desse modo, utilizou-se a técnica snowball (bola de neve), um procedimento de amostragem não probabilistica que preconiza indicações por cadeias de referências [14].

Assim, participaram do estudo oito enfermeiros, os quais foram nomeados pela letra E (entrevistado) e seguida de números arábicos de 1 a 8, conforme a ordem de execução da entrevista. Esclarece-se que foram contatados 46 enfermeiros; desses, 19 manifestaram interesse após o convite inicial, contudo apenas oito formalizaram o aceite por meio do envio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado e digitalizado para a pesquisadora. Para a definição do número de participantes e encerramento da coleta de dados, foi adotado o critério de saturação, que consiste em um momento do trabalho de campo em que se observa a repetição dos dados obtidos e que a coleta de novas informações se mostra desnecessária para agregar esclarecimentos ao objeto estudado [15].

A coleta de dados foi operacionalizada por meio de entrevistas virtuais pela Plataforma Skype, conduzidas por uma das pesquisadoras participantes, aluna do 9º período de graduação. Estas foram norteadas por um instrumento de coleta de dados elaborado pelas autoras, composto por itens de caracterização sociodemográfica e profissional e pelas questões: “Fale sobre o planejamento de alta hospitalar da pessoa internada no hospital que você trabalha” e “Fale sobre a sua atuação frente à alta hospitalar”.

Realizou-se um teste piloto com três enfermeiros com o intuito de avaliar a clareza e compreensibilidade do instrumento de coleta de dados. Como não foi identificada necessidade de alteração das questões norteadoras, estas entrevistas foram incluídas no corpus de análise.

Para a consecução da entrevista, após o convite inicial e mediante manifestação favorável do possível participante, a pesquisadora procedeu ao agendamento e gerou um link na referida Plataforma Skype, o qual foi encaminhado ao pessoal fornecido pelo participante. A coleta de dados se deu no local em que o participante estava na hora da entrevista, não havia outros participantes ou outro entrevistador na chamada. Antes do início da entrevista, foi solicitada autorização para a gravação por meio de recurso próprio da plataforma e esclarecido que a entrevista era parte de um Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Enfermagem. Ao término das entrevistas, foi realizada a transcrição integral, sendo o conteúdo disponibilizado ao respectivo participante do estudo para que pudesse validá-lo e/ou realizar possíveis solicitações de ajustes caso desejasse. Não foi necessária a repetição das entrevistas.

Concernente à análise dos dados, para os relativos à caracterização sociodemográfica e profissional utilizou-se de percentuais e tabelas. Para os dados oriundos da entrevista semiestruturada, utilizou-se a fenomenologia como método de análise, contemplando as seguintes etapas: 1) leitura das descrições (entrevistas na íntegra) buscando-se a formação de um sentido no conjunto de dados; 2) nova leitura das descrições com vistas a identificar as Unidades de Significado, que consistem em respostas às interrogações do pesquisador; 3) reflexão, que consiste na busca das categorias em consonância com as expressões concretas dos sujeitos; e 4) síntese de todas as unidades de significado em um texto que explicita a compreensão do fenômeno estudado [16].

O estudo respeitou as diretrizes éticas da pesquisa envolvendo seres humanos, em atendimento à Resolução no 466/2012 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) [18]. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, mediante parecer no 466/2012 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) [17]. O Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ) foi utilizado para nortear a execução deste estudo [18].

 

Resultados e discussão

 

Participaram do estudo, oito enfermeiros. Observou-se predomínio do sexo feminino (75%), idades entre 30 e 35 anos (50%), solteiros (62,5%), com tempo de atuação profissional (62,5%) e na unidade de internação (75%) de quatro a seis anos, atuantes no município de Alfenas/MG (37,5%), conforme apresentado na Tabela I.

 

Tabela IDistribuição dos participantes do estudo quanto ao sexo, idade, estado civil, tempo de atuação profissional, tempo de atuação na unidade de internação e município de atuação

 

Fonte: Elaborado pelo autor (2023)

 

Os dados coadunam com a Pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil, desenvolvida pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) e pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), que caracteriza a enfermagem como uma força de trabalho majoritariamente feminina e jovem [19]. O fato de a maioria dos participantes atuarem no município de Alfenas/MG pode ser explicado pela técnica de amostragem snowball, que utiliza cadeias de referências a partir de contatos das pesquisadoras, as quais se encontravam na referida localidade.

A partir da análise de dados oriundos das entrevistas semiestruturadas, apreenderam-se duas categorias. A primeira foi intitulada “Processo de alta centrado no profissional médico: atuação limitada dos enfermeiros” e a segunda foi denominada “Alta hospitalar: um processo planejado pela equipe multiprofissional”, a qual contempla as subcategorias “Planejamento da alta: segurança, qualidade e continuidade dos cuidados” e “Valorização da equipe multiprofissional na alta hospitalar”.

 

Processo de alta centrado no profissional médico: atuação limitada dos enfermeiros

 

Nesta categoria apreendeu-se que, na percepção de alguns enfermeiros, a alta hospitalar é um procedimento centrado no profissional médico, sem que haja a articulação entre as diferentes categorias profissionais a fim de contribuir para a alta segura do paciente.

Observou-se, nos relatos, que há o predomínio do modelo biomédico e que a participação do enfermeiro no processo é limitada e se caracteriza como um prosseguimento da decisão médica, sem que haja um prévio planejamento por parte da equipe de enfermagem.

 

Quando o médico informa que o paciente terá alta, começamos a trabalhar nessa parte [...] E1.

 

Ficamos com a parte burocrática, realizar a alta no sistema e depois retirar o acesso e liberar o paciente... Não temos nada planejado nem escrito, nada diretamente com o paciente[...] E3.

 

Esclarece-se que é competência exclusiva do médico a prescrição de admissões e altas de pacientes sob sua responsabilidade, não sendo permitida a admissão ou alta multiprofissional [20]. Entretanto, considerando-se a complexidade envolvida no processo de alta, a articulação entre os diferentes elementos das equipes multiprofissionais pode favorecer uma visão mais abrangente das necessidades do paciente e, assim, contribuir para a transição dos cuidados [7,21].

Especificamente sobre a participação do enfermeiro no planejamento da alta, esse profissional é reconhecido por seu potencial protagonista, haja vista a maior permanência junto ao paciente, a abrangência de seu processo de trabalho e o seu papel articulador na equipe de saúde [6].

Contudo, em consonância com o observado neste estudo, a literatura aponta que a participação do enfermeiro no planejamento da alta não se configura como uma realidade para todos os profissionais. Nesse sentido, sua atuação é frequentemente referida como sendo pontual e restrita ao momento da alta [22]. Acrescenta-se que, embora estes profissionais reconheçam a importância de sua participação frente à alta, são observadas dificuldades na articulação para o planejamento da alta hospitalar, bem como no entendimento de suas atribuições nesse processo [23].

No presente estudo, observou-se que, na ausência de um processo planejado, a conduta dos enfermeiros se baseia no atendimento aos procedimentos técnicos e administrativos para a alta e no fornecimento de orientações verbais ou escritas para o paciente e/ou para a família.

 

Quando o paciente está acamado, eu digito as orientações para a família e entrego em mãos [...]. Quando o paciente é menos grave, realizamos as orientações verbalmente... Para cada paciente passamos uma determinada orientação, depende do motivo da internação do paciente [...] E1.

 

Após sermos comunicados pelo médico assistente sobre a alta do paciente, ele entrega para nós da enfermagem, a receita, o acompanhamento e todos os outros papeis e seguimos até o paciente para explicar as próximas condutas [...] E3.

 

Reconhecendo que o paciente necessita de continuidade dos cuidados, um enfermeiro relata que, após a alta prescrita pelo médico, realiza orientações e o contato com o Enfermeiro da Estratégia de Saúde da Família (ESF).

 

O médico passa a visita e prescreve a alta, a minha atuação como enfermeira é orientação para o paciente ou familiar, oriento sobre medicações, sempre realizamos orientações verbais [...] O paciente que necessita da continuidade do tratamento e cuidados em casa, ligamos para o enfermeiro da Estratégia de Saúde da Família, para fazer o acompanhamento E2.

 

Ressalta-se que, quanto às orientações, os depoimentos desta categoria apontam que elas ocorrem após a prescrição da alta pelo médico. Resultados semelhantes foram encontrados em um estudo realizado com pacientes que estiveram internados em um hospital-escola, no qual se identificou que as orientações para a alta ocorreram a partir do momento em que a mesma foi comunicada pelo médico e que a participação do enfermeiro também foi limitada, restringindo-se aos casos de cuidados mais complexos [7].

Outro estudo, também realizado com pacientes internados em um hospital-escola, identificou que as orientações relativas ao autocuidado após a alta médica foram deficientes e enfocaram os aspectos relativos ao procedimento cirúrgico. Também foi observado que o grande volume de informações fornecidas em um único momento contribuiu para que os pacientes permanecessem com dúvidas [25].

Reconhece-se que a realização de orientações apenas no momento da alta pode contribuir para que a mesma ocorra de forma rápida e superficial, sem focar nas características individuais do paciente ou certificar-se da compreensão das informações, haja vista o elevado volume destas a serem assimiladas em um reduzido período de tempo [10,26].

Nesse sentido, enfermeiros navegadores têm sido referidos como profissionais capazes de contribuir para um processo continuado de alta. Estes profissionais se articulam com a equipe multidisciplinar responsável pelo tratamento e conduzem os pacientes, familiares e cuidadores, reduzindo obstáculos ao cuidado continuado e seguro [26,27].

 

Alta hospitalar: um processo planejado pela equipe multiprofissional

 

Nesta categoria identificou-se que alguns enfermeiros executam um planejamento de alta junto à equipe multiprofissional com vistas a contribuir para a segurança e continuidade dos cuidados. Apreendeu-se a percepção de que o planejamento da alta deve se iniciar precocemente e prever a continuidade dos cuidados no domicílio, envolvendo, quando possível, a família no processo, o qual pode ser norteado por instrumentos de sistematização.

Também, ressaltou-se a importância da atuação integrada da equipe multiprofissional para a alta segura, com vistas a contemplar as diferentes necessidades dos pacientes. Assim, apresentam-se as subcategorias “Planejamento da alta: segurança, qualidade e continuidade dos cuidados” e “Valorização da equipe multiprofissional na alta hospitalar”.

Apreendeu-se, na subcategoria “Planejamento da alta: segurança, qualidade e continuidade dos cuidados”, que o planejamento da alta, com consequente concretização do plano de alta pela equipe multiprofissional, deve iniciar o mais precocemente possível e envolver a família.

 

Uma coisa que sempre reforçamos com a equipe é que o planejamento da alta deve começar assim que o paciente é admitido no hospital [...] nós temos que pensar nesse paciente lá na frente... que cuidados eles vão demandar de nós enquanto profissionais e fazer articulação com a família... E8.

 

[...] ele vai ter alta daqui a dois dias, o antibiótico terminará, já começamos a planejamento[...] Diante da previsibilidade [...] eu planejo com as orientações que necessita e já repasso para que no dia da alta não tenha tumultos e que seja feita com segurança [...] às vezes preocupa-se muito com a admissão do paciente e esquece da alta [...] o paciente terá uma recuperação 100% melhor quando o planejamento da alta funciona, você o manda para a casa com o cuidado planejado para continuidade no domicilio E4.

 

Nesse contexto, admite-se que o planejamento da alta deva começar com a admissão e diagnóstico do paciente, a fim de que falhas no gerenciamento da alta não afetem os cuidados posteriores, visto que a desorganização nas altas prejudica a qualidade do trabalho e coloca em risco a segurança do paciente [3,28]. As altas comunicadas no dia em que são prescritas podem resultar em insegurança e ansiedade ao paciente e à família, uma vez que enfrentarão um processo de readaptação após a saída do hospital e necessitarão de agendamentos de consultas e acompanhamentos de saúde [3].

Assim, o planejamento precoce da alta, até 24 horas após a admissão do paciente, com atualização diária de acordo com a evolução clínica necessita ser valorizado e incorporado ao processo de trabalho da equipe multiprofissional [5,29]. Este não só auxilia os profissionais de saúde a coordenarem os seus serviços de forma complementar e eficiente, como também direciona o percurso de cuidados esperado para cada pessoa hospitalizada, fornecendo segurança e embasamento para a tomada de decisões [30].

No processo planejado de alta, os enfermeiros participantes deste estudo mencionaram a importância das orientações continuadas de enfermagem, com vistas aos cuidados após a alta.

 

São importantes as orientações de enfermagem, ela tem outros olhos e orienta coisas específicas de acordo com o paciente [...] Acerca da patologia, quanto aos cuidados de prevenção de lesão por pressão, tudo é passado de acordo com o caso que o paciente apresente E5.

 

[...] Temos que deixar tudo planejado como será esse cuidado em casa [...] O enfermeiro faz o planejamento de cuidado para o domicílio e dará todas as orientações necessárias E7.

 

No momento do banho pedimos para o acompanhante participar, porque às vezes o paciente é acamado, tem lesão e para nós é comum cuidar, mas para o familiar não é [...]. Não adianta o paciente ter uma alta segura se não tiver cuidados em casa, é preciso ter uma rede de apoio [...] E8.

 

Percebe-se que a alta hospitalar necessita de oportunidades educativas capazes de promover o conhecimento e a autonomia em relação à situação atual de vida, devendo a construção deste plano de educação, ocorrer ao longo da internação e não apenas na saída da instituição, a fim de reduzir as falhas de entendimento e a sobrecarga de informações transmitidas ao paciente [10].

A disponibilização destas orientações por escrito e o registro das mesmas no prontuário do paciente também foram mencionados.

 

[...] Eu levo a orientação escrita para o paciente ou acompanhante, é passado a orientação verbal e escrita com a assinatura que foi orientado, e depois arquivado no prontuário e uma cópia é dado para levar para casa E4.

 

Destarte, as orientações escritas e o uso de outros materiais didáticos pela enfermagem podem contribuir para a assimilação das informações e para a maior segurança do paciente na continuidade dos cuidados pós-alta [8]. Nesse sentindo, tecnologias educativas, como vídeos, podem ser um recurso estratégico, facilitador e complementar às orientações verbais, como se observou em estudo envolvendo pessoas com colostomia [31].

Ademais, o registro das orientações fornecidas no prontuário do paciente se configura como um respaldo para a enfermagem e, ainda, uma forma de clarificar a qualidade da assistência no processo da alta, haja vista ser este um documento legal [32].

No que concerne à sistematização da alta hospitalar, os depoimentos de E5 e E6 demonstram o uso de instrumentos, como é o caso de protocolo e de procedimento operacional padrão (POP).

 

Nós temos um POP de sumário de alta e nós seguimos [...]E5.

 

Temos um protocolo de alta e seguimos, a instituição é acreditada então tudo que é realizado tem que estar seguindo esses protocolos E6.

 

Observou-se, na percepção dos enfermeiros, que o registro das informações fornecidas ao paciente e familiares, bem como os instrumentos de sistematização, remetem às exigências da acreditação hospitalar, um processo de avaliação externa da qualidade das instituições de saúde com base em padrões previamente estabelecidos [33].

Pondera-se, entretanto, em que medida as falas dos enfermeiros sobre a sistematização do processo de alta possam refletir o mero cumprimento dos instrumentos implantados em decorrência do processo de acreditação hospitalar, em detrimento de um planejamento que, de fato, contemple as necessidades do paciente e da família com vistas à integralidade e à transição segura dos cuidados.

Nesse sentido, vale destacar que os protocolos são instrumentos de trabalho baseados em evidências científicas, que visam organizar o ambiente e orientar os profissionais na realização de suas atividades, contribuindo para a qualidade dos serviços de saúde [34]. No contexto da alta hospitalar, os protocolos podem auxiliar na padronização dos cuidados e na instrumentalização da transição segura do hospital para o domicílio [25].

Por fim, E4 menciona a importância dos grupos gestores valorizarem a cultura de segurança na instituição, o que influencia o planejamento da alta hospitalar.

 

A administração ela trabalha muito com segurança do paciente e qualidade da assistência, esse é um fator importante dentro do planejamento da alta para segurança do paciente... (E4).

 

Nesse sentido, a segurança do paciente abarca atividades estruturadas que criam culturas, processos, procedimentos, comportamentos, tecnologias e ambientes, visando a redução dos riscos relacionados à assistência à saúde de maneira consistente e sustentável [35]. A cultura de segurança consiste naquela em que todos os trabalhadores, desde os envolvidos no cuidado direto ao paciente até os grupos gestores, assumem responsabilidade pela segurança, priorizando-a sobre metas financeiras e operacionais e encorajando a resolução dos problemas relacionados à segurança, com consequente aprendizado organizacional [36].

Especificamente, a alta hospitalar consiste em tópico de interesse para a segurança do paciente, pois quando não planejada pode predispor o paciente ao agravamento de sua condição de saúde em decorrência de lacunas na continuidade dos cuidados, bem como à ocorrência de reinternações [36].

Coaduna o exposto, com um estudo realizado com pessoas que haviam sido hospitalizadas por insuficiência cardíaca, que identificou associação entre os menores índices de autocuidado e a ocorrência de reinternações. Os autores destacaram a importância de que durante a internação, os enfermeiros atuem não apenas para restabelecimento das condições clínicas, como também, para o incentivo ao autocuidado, vislumbrando a atuação ativa do paciente frente à sua saúde [38].

A segunda subcategoria, “Valorização da equipe multiprofissional na alta hospitalar” contempla depoimentos que reforçaram a importância da equipe multiprofissional para a alta hospitalar, haja vista as diferentes necessidades dos pacientes, tendo por base uma visão integral, holística e humanizada. Assim, cada profissional, dentro de sua competência técnica, contribui para o processo de alta, conforme mencionado por E4, E6, E7 e E8.

 

 [...] Todos os profissionais fazem suas orientações[...] Vemos com a farmácia se tem orientação referente a medicamentos e planejamos todas as orientações[...] E4.

 

 [...] Cada equipe tem a sua orientação para o paciente, farmácia, fisioterapia, o que julgar necessário da parte de cada profissional[...]E6.

 

 [...] Antes da alta, a psicóloga faz avaliação para prestar suporte emocional para o paciente e o familiar que irá dar continuidade nos cuidados em domicílio, a nutricionista também avalia E7”.

 

 [...] A área médica, enfermagem, psicologia e nutrição, trabalhamos todos juntos para oferecer ao paciente o suporte de que ele necessita E7.

 

 [...] Tem que sempre ter um alinhamento com a equipe multidisciplinar[...]Cada um dentro da sua ciência e área de conhecimento, mas todos se completam [...]. Nós enfermeiros atuamos como gestores do cuidado E8.

 

A atuação em equipe multiprofissional visa a descentralização de decisões singulares e a responsabilização compartilhada pela assistência ao paciente, reconhecendo as especificidades técnicas de cada elemento [29]. Nesse sentido, a elaboração do plano de alta com a participação da equipe multiprofissional faz-se relevante, assim como a realização de orientações de forma compartilhada, de modo que a equipe contemple as demandas específicas de cada área e rememore as necessidades e os cuidados realizados ao longo da internação, com vistas à promoção do bem-estar biopsicossocial [39].

O depoimento de E8 ressaltou o enfermeiro como gestor do cuidado. Considerando-se a inclusão da equipe multiprofissional na alta hospitalar, o enfermeiro atua como o principal elo entre os diferentes profissionais e níveis de atenção. Por apresentar competências como o trabalho em equipe, a expertise no gerenciamento de situações complexas envolvendo pacientes e familiares e o conhecimento da rede de atenção à saúde, a atuação desse profissional no planejamento de alta favorece a continuidade do cuidado [3].

Nesse contexto, a importância de discussões de caso entre a equipe multiprofissional, com a participação do enfermeiro, com vistas a abarcar as necessidades dos pacientes, em consonância com as diferentes competências técnicas dos profissionais, foi mencionada nos depoimentos de E4 e E6.

 

[...] São realizadas reuniões multidisciplinares sobre os pacientes internados e essas reuniões incluem todos os profissionais que atendem o paciente, médico, fonoaudióloga, fisioterapeuta, nutricionista, enfermeiro, técnico de enfermagem [...] Todos discutem o caso [...] trabalhando juntos para que possam definir e decidir a alta E4.

[...] A equipe determina em comum acordo a quantidade de dias que o paciente deverá ficar internado E6.

 

Corroborando o exposto, um estudo realizado com o objetivo de conhecer as facilidades e os desafios do processo de transição do cuidado na alta hospitalar por profissionais de uma equipe multiprofissional apontou os rounds multidisciplinares como um momento relevante em que a equipe pode discutir as condutas e as prioridades assistenciais e planejar o cuidado, inclusive a alta [21].

Outro estudo apontou que a realização de reuniões multidisciplinares, com a participação de representantes dos pacientes, contribuiu para a superação de barreiras para a alta, que incluíam a relutância do paciente e da família, os atrasos médicos na realização de exames ou procedimentos diagnósticos, os atrasos na aceitação de instituições de cuidados de longa permanência e questões relativas ao seguro-saúde [40].

Nesse sentido, relata-se que a atuação harmônica da equipe multiprofissional no processo de alta, sobretudo para os pacientes em internação prolongada, pode contribuir para a redução do tempo de internação e da consequente exposição desnecessária ao ambiente hospitalar, assim como para a reinserção da pessoa na família e na comunidade e para a prevenção de reinternações [41].

Outrossim, o trabalho em equipe possibilita que os cuidados assumam um caráter multidimensional, considerando a pessoa enquanto ser individual, cultural, histórico e social, contribuindo para a satisfação dos pacientes, dos familiares e também dos próprios profissionais de saúde [42].

Nesse contexto, destaca-se a relevância da construção de um Projeto Terapêutico Singular (PTS), que visa o agrupamento das condutas e orientações planejadas de forma individualizada para a pessoa adoecida, principalmente nas situações em saúde de maior complexidade, de modo a proporcionar a maior participação desta e de sua família no processo de saúde-doença-cuidado, contribuindo para a autonomia, a integração social e a promoção da saúde [43,44]. Para mais, o PTS favorece a articulação da equipe multiprofissional e a realização de altas compartilhadas, considerando-se os recursos disponíveis na RAS e as possibilidades de acesso e continuidade dos cuidados no domicílio, tornando o processo de alta mais seguro e responsável [44].

 

Conclusão

 

Aprendeu-se que, para os enfermeiros, o planejamento da alta hospitalar ocorre de maneira centrada no médico ou de forma planejada junto à equipe multiprofissional, visando a continuidade dos cuidados, a depender do contexto em que os participantes se inserem.

Destarte, na percepção de alguns enfermeiros, a interação com a classe médica no contexto da alta hospitalar pautou-se na hierarquização do modelo biomédico, demonstrando fragilidade em sua atuação, que pareceu se restringir a condutas como o lançamento da alta no sistema, o preparo do paciente e a realização de orientações pontuais.

Por outro lado, observou-se que, para outros, a percepção sobre o planejamento da alta hospitalar contemplou a atuação e orientações continuadas do enfermeiro, desde o momento da admissão do paciente ou de forma mais precoce possível, e também a valorização da equipe multiprofissional no processo, com contribuições de acordo com as competências técnicas de cada elemento, visando o atendimento das diferentes necessidades do paciente, referindo-se ao enfermeiro como o gestor do cuidado.

Aponta-se como limitações deste estudo o fato de apresentar a percepção de enfermeiros da unidade de internação sobre o planejamento da alta hospitalar sob um recorte limitado, uma vez que contemplou os profissionais alcançados pela técnica snowball. Indica-se também que, embora se trate de um estudo qualitativo e que se tenha atingido a saturação dos dados, o elevado número de profissionais que não responderam ao convite da pesquisadora pode ter impedido a exploração do fenômeno em cenários mais diversificados. Sugere-se a realização de outros estudos contemplando a temática, que abarquem a percepção da equipe multiprofissional sobre o planejamento da alta e que considerem especificidades, tais como o porte das instituições, a utilização de instrumentos de sistematização da alta e a experiência em processos de acreditação hospitalar.

 

Conflito de interesse

Não há conflito de interesse

 

Fonte de financiamento

Não houve financiamento

 

Contribuição dos autores

Concepção e desenho do estudo: Silva LHP, Cunha KCS, Sanches RS; Coleta de dados: Silva LHP, Cunha KCS, Sanches RS; Análise e interpretação de dados: Silva LHP, Cunha KCS, Sanches RS; Redação do manuscrito: Silva LHP, Cunha KCS, Sanches RS; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Cunha KCS, Sanches RS, Resck ZMR, Gomes RG, Freire BSM

 

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