EDITORIAL
A arte
médica de “partejar” em região paulista: esquecida, negligenciada ou nunca
tida?
Paulo Fasanelli*,
Zaida Aurora Sperli Geraldes Soler, D.Sc.**
*Médico
obstetra, mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Enfermagem –
Mestrado Acadêmico, da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto/SP
(FAMERP), **Obstetriz, enfermeira, mestre, doutora e livre-docente em
enfermagem obstétrica, docente e orientadora de graduação e pós-graduação,
coordenadora geral do mestrado Acadêmico em Enfermagem da FAMERP, Orientadora
da dissertação que inclui conteúdo deste editorial
Correspondência: Paulo Fasanelli:
paulofasanelli@hotmail.com, Zaida Aurora Sperli Geraldes Soler: zaidaaurora@gmail.com
Cada sociedade tem
sua forma particular de organizar a atenção ao nascimento e os historiadores
consideram que a assistência ao parto é uma forma de revelação de como uma
sociedade considera a mulher, a maternidade e a criança. De modo geral, até o
século XIX, na maioria das sociedades e grupos sociais, o ato de parir era um
“assunto de mulheres” e a assistência ocorria como um intercâmbio de
experiências vividas e transmitidas no contexto familiar e sociocultural [1,2].
Em tão pouco tempo
quantas mudanças ocorreram... desde o final do século
XIX os médicos obstetras se empenharam na promoção de transformações na
assistência ao parto, tornando-o um ato médico, que devia ser assistido nos
hospitais. Desde então, cada vez mais foram sendo introduzidas técnicas,
medicamentos e tecnologias na atenção a gestantes, parturientes e puérperas,
aumentando o poder e a autonomia médica e a submissão da mulher e da família
[1].
A arte de partejar,
ou estar ao lado da mulher, ajudando-a a passar pelas “dores do parto” é considerada como um dom pelas parteiras tradicionais, que
geralmente manifestam que é preciso coragem, esforço e crenças em ajuda divina
ou espiritual, para cumprir a missão de atender a mulher e a família no
processo da parturição. Levam “suas mãos e a sabedoria e coragem que Deus dá”
[2].
A partir do século
XIX, entretanto, médicos e hospitais tornaram-se focos centrais na assistência
ao nascimento, utilizando várias práticas com a finalidade de monitorar e
controlar esse processo, com excessiva intervenção sobre o corpo das mulheres,
resultando em aumento de cesáreas e da morbi-mortalidade materna e perinatal.
Também, ficaram privilegiados investimentos em equipamentos e procedimentos de alta
complexidade e custos, em detrimento da qualidade da assistência à mulher,
negando-lhes igualdade de oportunidades, de escolhas e de participar
ativamente, de forma a ter uma experiência segura e prazerosa no ciclo
gravídico-puerperal, especialmente no trabalho de parto e no parto [1-6].
Ao longo do tempo
foram sendo desqualificadas as pessoas ou profissionais que buscavam atender o
parir e o nascer com humanidade, com solidariedade, com cuidados pautados na
ética e respeito ao ser humano, tomando como verdade para proteger a mãe e o
concepto no parto, um modelo tecnocrático, medicalizado e hospitalocêntrico.
Contra esse modelo, em diferentes partes do mundo emergiram propostas de
intervenção e de modelos holísticos de atenção ao nascimento, discutindo-se e
de certa forma lutando-se pela prática do parto humanizado, que preconiza o
direito de todas as mulheres de vivenciarem uma maternidade saudável e
prazerosa [1].
Entre outras alternativas, os defensores do Parto Humanizado
querem um modelo de atenção obstétrica respeitoso para com as mulheres,
realizado em ambiente onde se sinta segura e em que respeitem seu bem-estar,
sua intimidade, suas preferências pessoais e culturais, desde que preservadas a
sua segurança e do concepto. Enfim, o direito do empoderamento e protagonismo
[1].
Muitos pesquisadores
em todo o mundo, de diferentes áreas profissionais e vinculados a organizações
nacionais e internacionais, públicas e privadas, ao ouvir o clamor da sociedade
e entidades representativas das mulheres, têm se dedicado a debater, estudar,
investigar e divulgar o fenômeno do nascimento, subsidiando a implementação de políticas públicas e diretrizes
assistenciais.
O que fica em
destaque nos resultados das pesquisas e nos debates em eventos científicos, no
meio acadêmico e social, é que nem sempre essa mulher e sua família recebem a
merecida atenção. Pior, são delatadas nas redes sociais e nos estudos
científicos que muitas vezes são vítimas de desconsideração, de imprudência, de
negligência, de imperícia e diferentes formas de violência, particularmente no
âmbito da resolução do parto, via de regra por meio da
cesárea.
É
unanimidade nas
publicações e incontestável em dados
epidemiológicos que a resolução do parto
por cesárea, sem indicação obstétrica, tem
sido a tônica da atenção obstétrica
no Brasil a partir de 1970 pelo menos. Também, no âmbito
que o “partejar” ou
conduzir o trabalho de parto, há muito tempo não faz
parte do ensino e do
exercício do médico no Brasil, na maioria das
instituições de ensino e de
assistência obstétrica.
O aumento abusivo e
vergonhoso do número de cesáreas no Brasil levantou questões antropológicas
sobre a cultura de nascer e parir, repercutindo em sério problema de saúde
pública; em aumento de custos da assistência obstétrica; em questões
corporativistas profissionais; em desqualificação e eliminação de profissionais
não médicos, em aumento da prematuridade e morbidade materna e neonatal, em
violência obstétrica, enfim [1].
São cada vez mais frequentes
os relatos de infrações técnico-assistencias, ético-legais e humanísticas
relacionadas à assistência a gestantes, parturientes, puérperas e
recém-nascidos. É certo que é um problema mundial, mas no Brasil e em certas
regiões da nossa nação, foram se avolumando questões de caráter social, de
atenção em saúde e até legal-policial, sendo frágeis as medidas governamentais
para coibir os índices absurdos e progressivos de intervenções na atenção ao
parto.
Vários fatores
contribuíram para o nosso interesse em pesquisar, em nível de mestrado, os (des)caminhos da prática médica em Obstetrícia na Regional de
Saúde XV (DRS XV), do Estado de São Paulo, região paulista com 103 municípios e
considerada com maiores índices de cesáreas no Brasil e, consequentemente, no
mundo.
Como médico obstetra,
formado e atuando na DRS XV tenho verificado, atuando no âmbito público ou
privado, que as gestantes têm encontrado muitas dificuldades para terem seu
parto resolvido via vaginal. As mulheres narram a perambulação por consultórios
médicos e muitas vezes, mesmo sem perguntar qual o desejo da mulher, já é
aventada a cesárea.
Por gostar da arte de
partejar, busquei contatos com enfermeiras obstetras, conheci a Profa. Zaida, que me orienta no mestrado, tenho ministrado aulas em
curso de especialização em enfermagem obstétrica, alcançando momentos
gratificantes na atenção a mulheres que têm o parto normal/natural, conseguindo
entender o significado do trabalho compartilhado e integrado.
Também tem sido possível,
seja no desenvolvimento de estudos, seja na parte assistencial compartilhada
com enfermeiras obstetras, entender várias questões relacionadas ao
protagonismo e empoderamento da mulher no processo do nascimento. Isso nada
mais é que atender de forma humanizada, que nada mais é do que desenvolver
competências (conhecimentos, habilidades, atitudes, valores e emoções).
Também entendemos que
não podemos simplesmente refutar, desconsiderar, desqualificar ou desprestigiar
a prática de outras pessoas, no decorrer do ciclo gravídico-puerperal. Além de
competências profissionais específicas, trabalho compartilhado multi e
interprofissional, o referente no partejar é a mulher/concepto, ponto de
partida e de chegada do cuidado. Isso nos interessa ...MUITO.