REVISÃO

Profissionais chamados “não médicos”: uma reflexão sobre a generalização sem identidade da área da saúde

 

Susy Maria Feitosa de Melo Freitas*, Raylla Araújo Bezerra*, Lucilande Cordeiro de Oliveira Andrade, M.Sc.**, Lydia Vieira Freitas dos Santos, D.Sc.***, Vívian Saraiva Veras, D.Sc.***, Emanuella Silva Joventino, D.Sc.***

 

*Enfermeira, Mestranda em Enfermagem pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, **Enfermeira, Universidade Federal do Ceará, ***Enfermeira, Professora adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira

 

Recebido em 23 de maio de 2017; aceito em 2 de janeiro de 2018.

Endereço de correspondência: Susy Maria Feitosa de Melo Freitas, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Mestrado Acadêmico em Enfermagem, Rua José Franco de Oliveira - s/n - Sala 205, 62790970 Redenção CE, E-mail: susymaria.sf@gmai.com; Raylla Araújo Bezerra: lalah_zinha3@hotmail.com; Lucilande Cordeiro de Oliveira Andrade: landycordeiro@yahoo.com.br;  Lydia Vieira Freitas dos Santos: lydia@unilab.edu.br; Vívian Saraiva Veras : vivian@unilab.edu.br; Emanuella Silva Joventino: ejoventino@unilab.edu.br

 

Resumo

Introdução: É cada vez mais comum, em documentos e textos oficiais, a presença dos termos “profissionais médicos” e “profissionais não médicos”, revelando uma ideia de separação entre os mesmos. Objetivo: Encetar uma discussão acerca da denominação “profissional não médico”, ampliando o olhar sobre as nuances que envolvem as relações interprofissionais. Métodos: Estudo teórico-reflexivo, baseado na literatura e percepção das autoras, buscando discutir a atuação da equipe multiprofissional no contexto dos países de língua portuguesa. A temática despontou a partir de leituras e discussões grupais realizadas na disciplina A Saúde e a Enfermagem no cenário dos países lusófonos, do Mestrado Acadêmico em Enfermagem da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Resultados: Cada profissional é singular e tem função específica e indispensável para a atenção integral à saúde das pessoas. Entendemos que tal denominação é errônea e desrespeitosa com as demais categorias, uma vez que todas ensejam a promoção do bem-estar humano em todos os aspectos da vida. Conclusão: Ressaltamos a importância de entender-se a equipe multiprofissional como espaço de verdadeira interação e aprendizado mútuo, a despeito da mera noção de um agrupamento de profissionais com técnicas distintas para atingir o mesmo objetivo, que é a saúde do ser cuidado.

Palavras-chave: pessoal de saúde, relações interpessoais, equipe de assistência ao paciente, ética, educação superior.

 

Abstract

Professionals called "non-medical": a reflection on the generalization without identity of the health area

Introduction: The presence of the terms "medical professionals" and "non-medical professionals" is increasingly common in official documents and texts, revealing an idea of separation between them. Objective: To initiate a discussion about the denomination "non-medical professional", broadening the view on the nuances that involve the interprofessional relations. Methods: Theoretical-reflective study, based on literature and perception of the authors, seeking to discuss the work of the multiprofessional team in the context of Portuguese-speaking countries. The thematic emerged from the readings and group discussions held in the discipline Health and Nursing in the scenario of the Portuguese speaking countries, of the Academic Master's Degree in Nursing at the University of International Integration of Afro-Brazilian Lusophony. Results: Each professional is unique and has a specific and indispensable function for the integral attention to the health of the people. We understand that such denomination is erroneous and disrespectful with the other categories, since all promote the promotion of human well-being in all aspects of life. Conclusion: The multiprofessional team is a space for true interaction and mutual learning, despite the mere notion of a grouping of professionals with different techniques to achieve the same goal, which is the health of being cared for.

Key-words: health professionals, interpersonal relations, patient care team, ethics, higher education.

 

Resumen

Profesionales llamados "no médicos": una reflexión sobre la generalización sin identidad del área de la salud

Introducción: Es cada vez más común, en documentos y textos oficiales, los términos "profesionales médicos" y "profesionales no médicos", revelando una idea de separación entre los mismos. Objetivo: Discutir sobre la denominación "profesional no médico", ampliando la mirada sobre las relaciones interprofesionales. Métodos: Estudio teórico-reflexivo, basado en la literatura y percepción de las autoras, buscando discutir la actuación del equipo multiprofesional en el contexto de los países de lengua portuguesa. La temática surgió a partir de lecturas y discusiones grupales realizadas en la disciplina La Salud y la Enfermería en el escenario de los países lusófonos, del Máster Académico en Enfermería de la Universidad de la Integración Internacional de la Lusofonía Afro-Brasileña. Resultados: Cada profesional es singular y tiene función específica e indispensable para la atención integral a la salud de las personas. Entendemos que tal denominación es errónea e irrespetuosa con las demás categorías, ya que todas conducen a la promoción del bienestar humano en todos los aspectos de la vida. Conclusión: Un equipo multiprofesional es un lugar para una verdadera interacción y aprendizaje mutuo, aunque no sea más que un grupo de profesionales con diferentes técnicas para alcanzar o mejorar el objetivo, que es la salud del ser atendido.

Palabras-clave: personal de salud, relaciones interpersonales, equipo de asistencia al paciente, ética, educación universitaria.

 

Introdução

 

Historicamente, o médico destacou-se por nortear sua construção intelectual e prática clínica com o objetivo de dar conta da ameaça que aflige os homens desde o início dos tempos: a doença e o sofrimento a ela relacionado. Em decorrência do saber a ele imputado, o médico despertou sentimentos de zelo por parte da sociedade, sendo figura dotada de grande prestígio [1].

O cuidado à saúde das pessoas tornou-se mais complexo e carente de atuações diversas, abrindo espaço para o surgimento de novas atividades, como é o caso da enfermagem, por exemplo, que despontou como profissão quando Florence Nightingale reuniu damas da sociedade para cuidar dos soldados feridos na Guerra da Criméia [2]. Em um ambiente caótico estas mulheres aprimoraram o cuidado humano. Diante da estupenda complexidade do ser humano e das ações que regem o processo saúde-doença, foi preciso que alguns profissionais se dedicassem a áreas específicas do cuidado, surgindo, assim, a fisioterapia, a fonoaudiologia, a odontologia, e tantas outras profissões.

Reconhecemos a inegável responsabilidade do profissional médico dentro do nexo que o leva ao encontro de seu objeto de intervenção, que, no caso, é a pessoa ou parte de seu corpo. Denota-se que, mesmo com o desenvolvimento de outras profissões, o médico manteve o seu elevado prestígio cultural e histórico junto à população, refletindo também em discrepância salarial entre as classes.

Entretanto, considerando o extenso rol de profissões da saúde, faz-se premente refletirmos acerca da generalização de identidade que a expressão profissional “não médico” proporciona, uma vez que a mesma vem se tornando comum em publicações na mídia escrita e falada, em editais de seleções públicas e em documentos oficiais, incutindo uma separação entre as categorias profissionais da saúde, ao utilizar o termo profissional médico para designar os graduados em Medicina, e profissional “não médico” para apontar os profissionais de Enfermagem, Odontologia, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Farmácia, Nutrição, Psicologia, Educação Física, Serviço Social, Fonoaudiologia, Medicina Veterinária e tantos outros.

Acreditamos que os valores fundantes da Enfermagem Moderna (solidariedade, verdade, moralidade e utilidade), ratificados por Guimarães et al. [3] são comuns às demais profissões. Assim, o uso do termo “não médico” esmaece o entendimento de que todas as profissões que cuidam da vida, saúde e bem-estar das pessoas merecem ser qualificadas pelo próprio título, em respeito às atividades que desempenham e ao grau de esforço a que se dedicam durante o processo contínuo de formação para a prática clínica.

A imagem profissional se consubstancia na própria representação da identidade profissional, que é, em si, um fenômeno histórico, social e político. No que se refere aos profissionais da saúde, sua imagem precisa perpassar por reflexões múltiplas com o intuito de reestruturar as relações sociais internas e externas às profissões e, assim, transformá-la.

O objetivo deste artigo foi refletir sobre a denominação “profissional não médico”, buscando contextualizá-la com o exercício da autonomia profissional e ampliando o olhar sobre as nuances que envolvem as relações interprofissionais no âmbito da saúde.

 

Métodologia

 

Trata-se de um artigo teórico-reflexivo, quando os autores são estimulados a refletir acerca de um tema atual e expõem seu posicionamento, direcionando-o a quem mais tenha interesse. Baseado na literatura e na percepção das autoras, o estudo buscou discutir a atuação da equipe multiprofissional no contexto dos países de língua portuguesa. A temática despontou a partir de leituras e discussões realizadas na disciplina A Saúde e a Enfermagem no cenário dos países lusófonos, do Mestrado Acadêmico em Enfermagem da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. A construção deste trabalho nos impeliu ao diálogo com nossos pares e demais colegas profissionais de saúde acerca da inquietude e do sentimento que aflora no ser classificado como “não médico”. O referencial teórico que embasou essa reflexão trata-se de publicações relacionadas às equipes de assistência aos pacientes, oriundas do Ministério da Saúde, bem como de artigos de periódicos da base de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (lilacs). Para tanto, realizamos buscas utilizando os descritores identidade profissional, equipe multiprofissional e saúde, tendo sido utilizadas publicações do período de 2000 aos dias atuais. Reiteramos que não encontramos na literatura textos que tratam do premente desconforto causado pela categorização dos profissionais como “não médicos” e destacamos a importância dessa discussão para o alinhamento do discurso acerca das relações interprofissionais dentro das equipes de saúde e do respeito à autonomia.

 

Resultados e discussão

 

Necessidades de saúde, sejam individuais ou coletivas, são mais bem avaliadas na ação conjunta de profissionais de categorias diferentes, visto que os mesmos tendem a considerar intervenções diversificadas, embasadas em uma reflexão mais apurada sobre os problemas evidenciados. Nesta ação é que se fundamenta a implementação de um cuidado de saúde integral, individualizado e centrado no paciente, como regem os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) [4,5]. Um bom exemplo dessa prática exitosa é a inserção do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf), no âmbito da Atenção Primária, quando o compartilhamento de responsabilidades por todos os profissionais da equipe amplia a capacidade de resolução e possibilita a continuidade do cuidado [6].

O trabalho em equipe multiprofissional trata de uma modalidade de trabalho grupal que se revela na ligação recíproca entre as diversas intervenções técnicas e a interação dos entes de diferentes áreas profissionais [7,8]. Resta enfatizarmos que dentro desse nicho não deve existir, a despeito de algumas realidades, uma relação de hierarquia entre as profissões, visto que esta não cabe no desenho de horizontalidade e comunicação que deve ser traçado.

Em 2013 o processo de apreciação política da chamada lei do ato médico [9] trouxe uma intensa discussão acerca da “superioridade” desta classe e da consequente “subordinação” dos demais profissionais. Entretanto, com vistas à continuidade de inúmeros programas consagrados no SUS, que tem na perspectiva multiprofissional a sua atribuição de resolutividade, a referida lei foi aprovada com cerca de dez vetos presidenciais a artigos e alíneas que comprometiam a autonomia profissional. Ainda em 2016, voltou a tramitar no Senado Federal o Projeto de Lei do Senado nº 350, de 2014 [10], que teve como objetivo a apreciação e consequente revisão dos referidos vetos, mas felizmente o projeto foi arquivado pela própria autora, diante da repercussão negativa nas redes sociais e na mídia em geral.

Já em 2017, novas resoluções do Conselho Federal de Medicina buscam a revogação de normas e portarias que regulamentam a ação de diversos profissionais, como enfermeiros, fisioterapeutas e farmacêuticos. Novamente, os conselhos e representações sindicais destas e de outras categorias articulam-se para difundir, junto aos pares e à sociedade, a importância da autonomia profissional para a garantia dos preceitos que regem o SUS e para o bom funcionamento dos serviços de saúde, que já passam por período dotado de tantas dificuldades estruturais e conjunturais.

 

Identidade profissional: um chamado urgente

 

A classificação das diversas categorias profissionais como “não médicos" pode estar relacionada a fragilidades no processo de construção da identidade profissional, além de revelar a ausência ou deficiência de informações por parte da população assistida por estes, assim como de gestores dos serviços de saúde e outros. Tal fato reflete diretamente na desvalorização de suas profissões e dos seus méritos como atuantes protagonistas no processo saúde-doença [11].

Desde a antiguidade, profissionais relacionados à saúde atuam junto ao profissional médico, seja auxiliando-o, complementando seu trabalho e até mesmo substituindo-o onde a oferta desse profissional era (ou ainda é) escassa [12]. Esse contexto nos leva a questionar o valor de cada categoria enquanto profissionais de saúde: o ensino de graduação na área da saúde tem sido eficaz em estabelecer uma identidade profissional? Os papéis profissionais estão bem estabelecidos e estão sendo respeitados nas instituições de saúde? Os profissionais de saúde estão conhecidos como “não médicos” por não conseguirem evidenciar o seu papel profissional na atuação no cuidado em saúde?

Acreditamos que essa visão de substituição do profissional médico por outros profissionais, mesmo advinda de tempos remotos, precisa ser desconstruída e combatida com rigor legal, visto que todos tem deveres e responsabilidades no exercício da profissão. A enfermagem, como exemplo, é detentora de um vasto corpo de conhecimentos próprios, em constante evolução e construção através da pesquisa e da prática, culminando com a formação de um profissional capacitado e indispensável ao cuidado de saúde das pessoas em todo e qualquer ambiente [13].

Somos todas profissões registradas nos respectivos conselhos e no Código Brasileiro de Ocupação (CBO), regidas por leis e demais códigos de conduta profissional ética. Atuamos em todos os âmbitos e níveis de atenção à saúde e em todas as fases do desenvolvimento do indivíduo, desde o nascimento ao preparo do corpo já sem vida, tendo nossas ações voltadas para a garantia de um nível ótimo de bem-estar para as pessoas.

 

Educação e atuação interprofissional

 

A Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece a fragmentação dos sistemas de saúde no mundo frente à complexidade crescente dos problemas sanitários e destaca a necessidade de uma força de trabalho colaborativa, integrada e preparada para a prática, com vistas ao fortalecimento do desempenho desses sistemas e à promoção de melhores resultados na saúde [14].

Sinalizamos, então, a Educação Interprofissional (EIP) como a principal estratégia para formar profissionais aptos para o trabalho em equipe, destacando essa prática como indispensável para a integralidade do cuidado em saúde. Essa estratégia consiste em promover oportunidades para o desenvolvimento de saberes, nas quais duas ou mais profissões aprendem conjuntamente com e sobre as outras [15,16].

No contexto do Brasil, há predomínio da formação uniprofissional, e apenas iniciativas restritas e recentes da abordagem interprofissional. Ao possibilitar o diálogo entre as profissões desde a graduação, a EIP pode ser a chave para relações amistosas e produtivas, para a melhoria dos processos de trabalho e para a prática da comunicação intra e inter equipe, além de favorecer o reconhecimento dos múltiplos campos de atuação de cada profissão [17]. Contudo, é preciso estar atento ao grande desafio que é a formação comum na área da saúde, quando esta implica na reinvenção de atuações historicamente individualistas e corporativas, ao mesmo tempo em que cada vez mais, as áreas profissionais buscam afirmar sua identidade e a especificidade de cada uma [18].

Desse modo, reforçamos a necessidade de mudanças de atitude por parte das instituições de ensino frente ao estabelecimento de políticas que busquem o trabalho conjunto das equipes de saúde, com ênfase na reestruturação de grades curriculares e na efetivação de uma rede discursiva e moral que trate de verdadeiras ações para o desenvolvimento de sujeitos críticos e reconhecedores da complementaridade e interdependência que perpassa a relação interprofissional.

Uma das limitações deste estudo reside na ainda reduzida bibliografia disponível sobre o objeto aqui discutido, visto na dificuldade de encontrar literatura condizente com o sentimento de profissionais de saúde categorizados como “não médicos”.  Além disso, ressalta-se a preocupação das autoras em exprimir tais ideias de forma a não testilhar os colegas que por ventura considerem o termo adequado ou que dele façam uso.

Outra limitação a ser pontuada é o fato de o estudo ter sido conduzido apenas por profissionais da Enfermagem. Assim, sugere-se que novos estudos sobre a temática sejam desenvolvidos, buscando englobar e registrar as opiniões dos representantes das demais categorias da área da saúde, de modo a estimular a continuidade desta discussão.

 

Conclusão

 

A reflexão acerca da denominação profissional “não médico” demonstra a necessidade de valorização do trabalho em equipe, a fim de reforçar a prática de uma assistência multiprofissional mais harmoniosa e coerente, em que o respeito e a empatia entre os atores realmente venha a colaborar para um cuidado de qualidade.

Ressalta-se, ainda, o mérito de levar-se tal discussão para os centros formadores de recursos humanos para a saúde, mesas de debates em encontros de classes e também aos locais de trabalho, objetivando despertar nos futuros profissionais e naqueles já atuantes, a firmeza, a autonomia e o sentimento de valorização do seu campo de conhecimento e prática.

Defendendo a ideia de que nenhum profissional é dispensável durante o processo de cuidado, mas que todos são essenciais, almeja-se campanhas publicitárias por parte de órgãos como sindicatos, associações, universidades e conselhos de classe, que enfatizem não só a multidisciplinaridade do trabalho, como, também, o esclarecimento para a população em geral, do papel dos profissionais dentro da equipe de saúde, da sua autonomia e do benefício que esta relação interprofissional gera dentro dos serviços de saúde.

Conscientes de que somos profissões diferentes e reconhecendo que os saberes do outro são diversos, mas complementares, reiteramos que a denominação “não médicos” para todas as demais profissões da área da saúde nos diminui enquanto promotores de um cuidado em saúde de qualidade, devendo ser evitada no convívio profissional e em documentos de ordem legal que venham a ser emitidos.

 

Referências

 

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