A arte médica de "partejar" em região paulista: esquecida, negligenciada ou nunca tida?
DOI:
https://doi.org/10.33233/eb.v16i1.896Resumo
Cada sociedade tem sua forma particular de organizar a atenção ao nascimento e os historiadores consideram que a assistência ao parto é uma forma de revelação de como uma sociedade considera a mulher, a maternidade e a criança. De modo geral, até o século XIX, na maioria das sociedades e grupos sociais, o ato de parir era um "assunto de mulheres" e a assistência ocorria como um intercâmbio de experiências vividas e transmitidas no contexto familiar e sociocultural [1,2].
Em tão pouco tempo quantas mudanças ocorreram... desde o final do século XIX os médicos obstetras se empenharam na promoção de transformações na assistência ao parto, tornando-o um ato médico, que devia ser assistido nos hospitais. Desde então, cada vez mais foram sendo introduzidas técnicas, medicamentos e tecnologias na atenção a gestantes, parturientes e puérperas, aumentando o poder e a autonomia médica e a submissão da mulher e da família [1].
A arte de partejar, ou estar ao lado da mulher, ajudando-a a passar pelas "dores do parto" é considerada como um dom pelas parteiras tradicionais, que geralmente manifestam que é preciso coragem, esforço e crenças em ajuda divina ou espiritual, para cumprir a missão de atender a mulher e a família no processo da parturição. Levam "suas mãos e a sabedoria e coragem que Deus dá" [2].
A partir do século XIX, entretanto, médicos e hospitais tornaram-se focos centrais na assistência ao nascimento, utilizando várias práticas com a finalidade de monitorar e controlar esse processo, com excessiva intervenção sobre o corpo das mulheres, resultando em aumento de cesáreas e da morbi-mortalidade materna e perinatal. Também, ficaram privilegiados investimentos em equipamentos e procedimentos de alta complexidade e custos, em detrimento da qualidade da assistência í mulher, negando-lhes igualdade de oportunidades, de escolhas e de participar ativamente, de forma a ter uma experiência segura e prazerosa no ciclo gravídico-puerperal, especialmente no trabalho de parto e no parto [1-6].
Ao longo do tempo foram sendo desqualificadas as pessoas ou profissionais que buscavam atender o parir e o nascer com humanidade, com solidariedade, com cuidados pautados na ética e respeito ao ser humano, tomando como verdade para proteger a mãe e o concepto no parto, um modelo tecnocrático, medicalizado e hospitalocêntrico. Contra esse modelo, em diferentes partes do mundo emergiram propostas de intervenção e de modelos holísticos de atenção ao nascimento, discutindo-se e de certa forma lutando-se pela prática do parto humanizado, que preconiza o direito de todas as mulheres de vivenciarem uma maternidade saudável e prazerosa [1].
Entre outras alternativas, os defensores do Parto Humanizado querem um modelo de atenção obstétrica respeitoso para com as mulheres, realizado em ambiente onde se sinta segura e em que respeitem seu bem-estar, sua intimidade, suas preferências pessoais e culturais, desde que preservadas a sua segurança e do concepto. Enfim, o direito do empoderamento e protagonismo [1].
Muitos pesquisadores em todo o mundo, de diferentes áreas profissionais e vinculados a organizações nacionais e internacionais, públicas e privadas, ao ouvir o clamor da sociedade e entidades representativas das mulheres, têm se dedicado a debater, estudar, investigar e divulgar o fenômeno do nascimento, subsidiando a implementação de políticas públicas e diretrizes assistenciais.
O que fica em destaque nos resultados das pesquisas e nos debates em eventos científicos, no meio acadêmico e social, é que nem sempre essa mulher e sua família recebem a merecida atenção. Pior, são delatadas nas redes sociais e nos estudos científicos que muitas vezes são vítimas de desconsideração, de imprudência, de negligência, de imperícia e diferentes formas de violência, particularmente no âmbito da resolução do parto, via de regra por meio da cesárea.
É unanimidade nas publicações e incontestável em dados epidemiológicos que a resolução do parto por cesárea, sem indicação obstétrica, tem sido a tônica da atenção obstétrica no Brasil a partir de 1970 pelo menos. Também, no âmbito que o "partejar" ou conduzir o trabalho de parto, há muito tempo não faz parte do ensino e do exercício do médico no Brasil, na maioria das instituições de ensino e de assistência obstétrica.
O aumento abusivo e vergonhoso do número de cesáreas no Brasil levantou questões antropológicas sobre a cultura de nascer e parir, repercutindo em sério problema de saúde pública; em aumento de custos da assistência obstétrica; em questões corporativistas profissionais; em desqualificação e eliminação de profissionais não médicos, em aumento da prematuridade e morbidade materna e neonatal, em violência obstétrica, enfim [1].
São cada vez mais frequentes os relatos de infrações técnico-assistencias, ético-legais e humanísticas relacionadas í assistência a gestantes, parturientes, puérperas e recém-nascidos. É certo que é um problema mundial, mas no Brasil e em certas regiões da nossa nação, foram se avolumando questões de caráter social, de atenção em saúde e até legal-policial, sendo frágeis as medidas governamentais para coibir os índices absurdos e progressivos de intervenções na atenção ao parto.
Vários fatores contribuíram para o nosso interesse em pesquisar, em nível de mestrado, os (des)caminhos da prática médica em Obstetrícia na Regional de Saúde XV (DRS XV), do Estado de São Paulo, região paulista com 103 municípios e considerada com maiores índices de cesáreas no Brasil e, consequentemente, no mundo.
Como médico obstetra, formado e atuando na DRS XV tenho verificado, atuando no âmbito público ou privado, que as gestantes têm encontrado muitas dificuldades para terem seu parto resolvido via vaginal. As mulheres narram a perambulação por consultórios médicos e muitas vezes, mesmo sem perguntar qual o desejo da mulher, já é aventada a cesárea.
Por gostar da arte de partejar, busquei contatos com enfermeiras obstetras, conheci a Profa. Zaida, que me orienta no mestrado, tenho ministrado aulas em curso de especialização em enfermagem obstétrica, alcançando momentos gratificantes na atenção a mulheres que têm o parto normal/natural, conseguindo entender o significado do trabalho compartilhado e integrado.
Também tem sido possível, seja no desenvolvimento de estudos, seja na parte assistencial compartilhada com enfermeiras obstetras, entender várias questões relacionadas ao protagonismo e empoderamento da mulher no processo do nascimento. Isso nada mais é que atender de forma humanizada, que nada mais é do que desenvolver competências (conhecimentos, habilidades, atitudes, valores e emoções).
Também entendemos que não podemos simplesmente refutar, desconsiderar, desqualificar ou desprestigiar a prática de outras pessoas, no decorrer do ciclo gravídico-puerperal. Além de competências profissionais específicas, trabalho compartilhado multi e interprofissional, o referente no partejar é a mulher/concepto, ponto de partida e de chegada do cuidado. Isso nos interessa ...MUITO.
Referências
Soler ZASG. CEPAHN - Centro de Preparo e Assistência Humanizados ao Nascimento: uma proposta para a região de São José do Rio Preto, São Paulo [livre-docência]. São José do Rio Preto: Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto; 2005.
Aires MJ. O direito à arte de partejar. Revista da Faculdade de Direito UFPR 2005;43(0): DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rfdufpr.v43i0.7031
Silveira IP, Leitão GCM. O cuidado de enfermagem no partejar: marcos conceituais. Rev Gaúcha Enferm 2003;24(3):279-85.
Mott ML. O curso de partos: deve ou não haver parteiras? Cadernos de Pesquisa 1999;(108):133-60.
Riesco MLG, Tsunechiro MA. Formação profissional de obstetrizes e enfermeiras obstetras: velhos problemas ou novas possibilidades? Revista Estudos Feministas 2002;(2):449-59.
Riesco MLG, Tsunechiro MA, Mott ML, Leister N. Do orgulho à resignação: educação e atuação profissional de obstetrizes formadas pela Universidade de São Paulo. Cad Hist Ciênc 2011;7(2).