ARTIGO
ORIGINAL
Alterações
cognitivas em portadores de doenças crônicas e sua relação com a classificação
internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde
Changes in cognitive chronic diseases patients and its relation to
classification of functioning, disability and health
Tânia Cristina Malezan Fleig*, Murilo Rezende
Oliveira**, Cássia da Luz Goulart**, Andréa Lúcia Gonçalves da Silva***
*Docente
do Departamento de Educação Física e Saúde, Curso de Fisioterapia pela
Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul/RS, **Bolsista de
Iniciação Científica, graduando do Curso de Fisioterapia da Universidade de
Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul/RS, ***Líder do grupo Vigilância,
Prevenção e Reabilitação em Doenças Cardiorrespiratórias na Universidade de
Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul/RS, Docente do Departamento de Educação
Física e Saúde, Curso de Fisioterapia pela Universidade de Santa Cruz do Sul,
Santa Cruz do Sul/RS
Recebido em 12 de
outubro de 2016; aceito em 30 de junho de 2017.
Endereço
para correspondência:
Tânia Cristina Malezan Fleig,
Rua Augusto Spengler, 860/203, Universitário,
96815654 Santa Cruz do Sul RS, E-mail: tfleig@unisc.br, Murilo Rezende
Oliveira: murilorezendeoliveira@hotmail.com; Cássia da Luz Goulart:
luz.cassia@hotmail.com; Andréa Lúcia Gonçalves da Silva: andreag@unisc.br
Resumo
Objetivo: Analisar as
alterações cognitivas de idosos portadores de Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica
(DPOC), Acidente Vascular Encefálica (AVE) e Alzheimer, e seu impacto na
funcionalidade. Métodos: 52 idosos,
agrupados conforme a doença de base em Grupo 01 (G1, DPOC =21), Grupo 02 (G2,
AVE = 10), Grupo 03 (G3, Alzheimer = 21). O estado mental e cognitivo foi
avaliado através do Mini-Exame do Estado Mental
(MEEM), e a funcionalidade pela Classificação Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Saúde (CIF), nos componentes funções e estruturas do corpo,
atividades e participação, fatores ambientais e pessoais. Resultados: Encontramos diferenças significativas entre os grupos
G1 e G2 para o G3 nas variáveis: total do MEEM (G1: 24,8 ± 3,4 vs. G2: 26,3 ±
3,7 vs. G3: 13,1 ± 6,6 p < 0,001), orientação espacial (G1: 9,3 ± 1,0 vs.
G2: 9,2 ± 0,9 vs. G3: 3,2 ± 2,5 p < 0,001), atenção e cálculo (G1: 3,8 ± 1,7
vs. G2: 3,8 ± 1,7 vs G3: 1,3
± 2,0 p = 0,001), e registro de cálculo (G1, 6,1 ± 2,0 vs
G2, 7,9 ± 1,5 vs. G3, 5,2 ± 1,7 p = 0,018). O modelo de regressão linear
simples identificou que a idade influenciou 40% no índice total do MEEM. Conclusão: Pacientes com Alzheimer
apresentam marcada alteração cognitiva quando comparados aos portadores de DPOC
e AVE. E o MEEM apresenta uma relação direta com todos os domínios da CIF.
Palavras-chave: envelhecimento, doenças
crônicas, CIF.
Abstract
Aim: To analyze the
cognitive changes of elderly patients with Chronic Obstructive Pulmonary
Disease (COPD), Stroke (CVA) and Alzheimer, and their impact on functionality. Methods: 52 elderly, grouped according
to the underlying disease in Group 01 (G1, COPD=21), Group 02 (G2, CVA=10),
Group 03 (G3, Alzheimer =21). The mental and cognitive status was assessed
using the Mini-Mental State Examination (MMSE) and functionality by the
International Classification of Functioning, Disability and Health (ICF), for
the components body functions and structures, activities and participation,
environmental factors and personal. Results:
We found significant differences between G1/G2 to G3 for the variables: total
MMSE (G1: 24.8 ± 3.4 vs. G2: 26.3 ± 3.7 vs. G3: 13.1 ± 6.6 p < 0.001),
spatial orientation (G1: 9.3 ± 1.0 vs. G2: 9.2 ± 0.9 vs. G3: 3.2 ± 2.5 p <
0.001), attention and calculation (G1: 3.8 ± 1.7 vs G2: 3.8 ± 1.7 vs. G3: 1.3 ±
2.0 p = 0.001), and calculation record (G1: 6.1 ± 2.0 vs. G2: 7.9 ± 1.5 vs. G3:
5.2 ± 1.7 p = 0.018). The simple linear regression model identified that age
influences 40% in the general index of the MMSE. Conclusion: Patients with Alzheimer's disease presented significant
cognitive impairment compared to patients with COPD and stroke. The MMSE has a
direct relationship with all areas of the ICF.
Key-words: aging,
chronic diseases, ICF.
Atualmente uma
transição epidemiológica ocorre relacionada à mudança no perfil de
morbimortalidades, as doenças infectocontagiosas são substituídas pelas doenças
crônicas. Essa realidade aponta para uma crescente atenção às necessidades dos
idosos, devido ao seu impacto na saúde e nos níveis de independência e
autonomia desta população [1]. As Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNT)
são consideradas morbidades irreversíveis e estão associadas à fragilidade
orgânica natural dos idosos, as quais se destacam doenças circulatórias,
endócrinas e respiratórias. Assim, somadas aos fatores sociais que contribuem para
o seu desenvolvimento, estas doenças constituem, para o Brasil, o problema de
saúde de maior magnitude e correspondem a cerca de 70% das causas das mortes
[2,3].
Cabe ressaltar, que o
processo de envelhecimento ainda acarreta mudanças fisiológicas importantes,
tais como as alterações sensoriais, os déficits cognitivos, a diminuição dos
reflexos, dos níveis de concentração [4] e dos níveis de aptidão física e
capacidade funcional [5]. Devido a esses fatores o idoso reage mais lentamente
aos estímulos do cotidiano, refletindo em alterações na memória, criatividade,
atenção e iniciativa [4]. Sendo assim, torna-se extremamente importante
monitorar e rastrear a progressão dos sintomas de déficit cognitivo, pois este
interfere diretamente na funcionalidade do idoso.
O Mini-Exame
do Estado Mental (MEEM) foi desenvolvido para monitorar, rastrear o déficit do cognitivo e avaliar o estado
mental, e os sintomas de demência em idosos. Sua criação derivou da necessidade
de uma avaliação padronizada, simplificada, reduzida e rápida no contexto
clínico [6]. Apesar dos avanços nos estudos com MEEM, ainda existe uma lacuna
referente à sua aplicabilidade em idosos portadores de Doença Pulmonar
Obstrutiva Crônica (DPOC), Acidente Vascular Encefálico (AVE) e Alzheimer, e
sua relação com Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e
Saúde (CIF). A Organização Mundial de Saúde (OMS) [7] recomenda o uso da CIF
para caracterizar a funcionalidade em pacientes com Doenças Crônicas, o que
pouco se registra na literatura revisada. Hipotetizou-se
que idosos com DCNT apresentam déficit
cognitivo, principalmente o Alzheimer por comprometer a sua memória e atenção,
gerando assim uma perda em sua funcionalidade. Então, nosso objetivo foi
analisar as alterações cognitivas de idosos portadores de DPOC, AVE e
Alzheimer, e seu impacto na funcionalidade através da CIF.
Delineamento
do estudo
Estudo transversal,
do tipo estudo de casos, com amostra convencional e não probabilística. A pesquisa
foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Santa Cruz do
Sul (UNISC) (1.378.449) tendo o participante consentido e assinado o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Amostra
Amostra composta de
52 idosos de ambos os sexos, moradores dos bairros de Santa Cruz do Sul/RS, o
recrutamento ocorreu a partir dos idosos que já possuíam diagnóstico clínico da
doença e a partir disso eram convidados a participar do estudo através da
aceitação e assinatura do TLCE. Estes moradores foram agrupados conforme a
doença de base em Grupo 01 (G1=21) DPOC, Grupo 02 (G2=10) AVE, Grupo 03 (G3=21)
Alzheimer. Todos atenderam aos critérios de inclusão do estudo, que determinava
a presença de diagnóstico clínico da doença e idade superior a 60 anos.
Foram excluídos os
idosos que não responderam as questões do MEEM pelo fato de que apresentavam
déficit visual ou auditivo severamente limitante e não compensado por uso de
óculos ou aparelho de amplificação sonora, dificultando ou impedindo a
realização do teste e os que não consentiram ou não assinaram o TCLE.
Mensurações
Avaliado através do
MEEM, com o objetivo de determinar o nível cognitivo dos idosos. É composto por
questões agrupadas em 7 categorias: orientação de
tempo, lembrança de palavras, atenção e cálculo, registro de 3 palavras e
capacidade construtiva visual. A pontuação é dada de acordo com a escolaridade
do participante, sendo considerado uma possível demência aqueles, com
escolaridade superior a 11 anos, que pontue um valor menor que 24, aquele que
tiver escolaridade entre 1 e 11 anos, é considerado
possível demência quando pontuarem menos que 18, o analfabeto deverá pontuar
menos que 14 [8].
Segundo Kochhann et al. [9], é
importante atentar-se ao fato de que o MEEM é fidedigno para rastreio e não
para diagnóstico. Utiliza-se também como acompanhamento e evolução de diversos
quadros neurológicos ou ainda como um norteador no processo de reabilitação
[10].
Classificação
Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde
A CIF é considerada
um instrumento universalmente reconhecido a partir do modelo biopsicossocial da
Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, torna possível ultrapassar as limitações
e descrever de forma mais abrangente o perfil funcional dos idosos que vivem em
Instituições de Longa Permanência (ILP) [7]. Estruturando assim a informação de
forma integrada e simples em duas partes, a primeira parte diz respeito à
Funcionalidade e Incapacidade e a segunda aos Fatores Contextuais. Cada uma das
partes subdivide-se ainda em duas componentes.
As componentes da
parte Funcionalidade e Incapacidade são: Funções e Estruturas do corpo e
Atividades e Participação. Os Fatores Contextuais são compostos pelas
componentes Fatores Ambientais e Pessoais [11]. As unidades de classificação da
CIF são as categorias dentro dos domínios da saúde e daqueles relacionados com
a saúde. Cada categoria da CIF tem atribuído um código, composto por uma letra
que se refere aos componentes da classificação (b: funções do corpo, s:
estruturas do corpo, d: atividades e
participação e: factores ambientais), seguido de um
código numérico, iniciado pelo número do capítulo (um dígito), seguido do
segundo nível (dois dígitos) e do terceiro e quarto níveis (um dígito cada)
[11].
Considerando a
avaliação descrita, procurou-se analisar se os resultados do MEEM poderiam ser
expressos pela CIF, diante dos domínios de função e estrutura do corpo,
atividade e participação e nas respectivas categorias quanto à deficiência e ao
desempenho e capacidade.
Análise
estatística
Dados analisados
através do programa SPSS® (versão 20,0). Os resultados foram avaliados quanto à
normalidade pelo teste de Shapiro Wilk e apresentados
de forma descritiva através de média e desvio padrão, frequência (%) ou mediana
(mínima e máxima). Realizada comparação das variáveis não paramétricas pelo
teste de Mann Whitney e a análise de variância para comparações múltiplas
(ANOVA) com post hoc de Tukey, e o teste de Qui-Quadrado para as variáveis categóricas, foi considerado
significativo um p < 0,05.
A amostra foi
composta por 52 idosos cujas características clínicas e sociodemográficas
foram descritas na Tabela I.
Tabela I - Características clínicas e sociodemográficas dos idosos.
Dados expressos em
frequência, média e desvio padrão, *a = diferença significativa p ≤ 0,05
através do teste qui-quadrado; *b = p ≤ 0,05,
G3 vs. G1 através do teste ANOVA; G1 - DPOC; G2 = AVE; G3 = Alzheimer.
Podemos observar uma
redução significativa nos índices do MEEM dos idosos com Alzheimer quando
comparados aos portadores de DPOC e AVE (Tabela II).
Tabela
II -
Domínios do MEEM conforme doença de base.
Dados expressos em
média e desvio padrão; Realizada análise de ANOVA com post hoc de Tukey; foi considerado p < 0,05 para, p* = G1 vs. G2; p#
= G1 vs. G3; pα = G2 vs. G3; G1 = DPOC; G2 = AVE; G3 =
Alzheimer; MEEM = Mini-Exame do Estado Mental;
*Valores de referência para idosos saudáveis na faixa etária de 60 a 68,5 anos
conforme [12].
Ao analisarmos a
frequência de déficit cognitivo,
podemos observar um predomínio nos idosos com Alzheimer (Figura I).
DPOC = Doença Pulmonar
Obstrutiva Crônica; AVE = Acidente Vascular Encefálico. BOX preto = pacientes
com déficit cognitivo; BOX branco = pacientes em déficit cognitivo.
Figura
1 - Frequência de déficit cognitivo nos idosos
avaliados.
Nós aplicamos um
modelo de regressão linear simples e identificamos que a idade influencia 40%
no índice geral do MEEM (Tabela III).
Tabela
III
- Análise de regressão linear simples
para predizer o MEEM, a partir da idade.
MEEM = Mini-Exame do Estado Mental; R2ajustado= 0,408; F= 3,17
(p=0,049).
Os componentes e
categorias da CIF na relação com os domínios MEEM estão descritos na Tabela IV.
Tabela
IV -
Componentes e Categorias da CIF
selecionadas para cada componente do MEEM conforme os grupos (G1, G2 e G3).
(ver anexo em PDF)
Podemos observar que
em todos os domínios do MEEM, há o predomínio na CIF no componente estrutura do
corpo, categoria estrutura do cérebro (código s110), e de atividade e
participação, categoria concentrar a atenção (código d160).
Os achados do
presente estudo mostraram que pacientes com Alzheimer apresentam marcada
alteração cognitiva quando comparados aos portadores de DPOC e AVE. Referente
ao impacto na funcionalidade, podemos observar uma maior frequência do
Alzheimer nas categorias da CIF, principalmente nas funções de orientação, de
atenção, pensar, funções intelectuais e da memória. Estes achados podem ter
particular relevância sobre as implicações desta patologia nas funções
cognitivas, gerando assim uma perda funcional nestes idosos. Segundo Crane et al. [13] o desempenho cognitivo está
diretamente relacionado com a condição patológica e a idade do sujeito, fato
este que corrobora nossos achados, nos quais encontramos que a idade pode
influenciar significativamente, em torno de 40%, para o desenvolvimento de
demências.
Há fortes evidências
de quadros demenciais em portadores de DPOC, devido ao mecanismo de hipoxemia
que afeta as enzimas dependentes de oxigênio que são importantes na síntese de
neurotransmissores [14-16] e também já foi comprovado que pacientes com função
pulmonar reduzida apresentam piores funções cognitivas [16]. Nós encontramos
uma pequena frequência de portadores de DPOC com déficit cognitivo, quando
comparado ao estudo de Roncero et al. [17] que encontrou um grau de comprometimento cognitivo em 40%
e uma prevalência variando de 12%.
Referente ao
comprometimento cognitivo em pacientes após AVE foi encontrado associação com a
incapacidade, morte e institucionalização. Os déficits cognitivos podem ser substanciais, diminuindo as chances
de voltar a trabalhar e diminuindo a qualidade de vida [18]. O
AVE é um importante causador de incapacidade funcional na linguagem,
cognição e desempenho físico. O estudo de Kang et al. [19] foi o primeiro a comprovar
associação entre cognição e função da linguagem em pacientes pós AVE utilizando
o MEEM. Esse questionário pode ser utilizado como uma ferramenta de previsão da
gravidade e recuperação da função da linguagem em pacientes pós
AVE.
Tanto na DPOC, quanto
no AVE, os resultados de déficit cognitivo deste
estudo foram reduzidos quando comparados aos portadores de Alzheimer, já que
esta se caracteriza por ser a principal causa de demência em idosos. O
Alzheimer está relacionado à perda cognitiva progressiva, que leva ao declínio
funcional e perda gradual de autonomia, que, em consequência, ocasionam
dependência total de outras pessoas [20]. Serrao et al. [21] encontraram que pacientes com
idade entre 60 e 88 anos obtiveram uma média do MEEM de 27,88 e 24,34. Akai et al. [22] justificam que o comprometimento
da consciência da doença estaria relacionado ao agravamento dos estados
cognitivo e funcional e que esses achados consubstanciam a hipótese de que o
comprometimento da consciência da doença na doença de Alzheimer estaria
relacionado à gravidade clínica da doença.
A CIF é utilizada
como um modelo biopsicossocial que pode tornar mais clara a informação em saúde
do idoso com a percepção de que o mesmo diagnóstico pode apresentar limitações
funcionais diferentes e esta perspectiva integra todos os fatores que têm
impacto na saúde e funcionalidade do idoso [23]. Sendo assim, o idoso com
doença crônica não transmissível deve ser observado com olhar ampliado de
saúde, por meio de avaliações da capacidade funcional e qualidade de vida, na
busca da promoção e prevenção na condição de saúde, o que torna o uso da CIF de
grande relevância clínica. Nesta perspectiva, podemos observar em nosso estudo,
que houve relação direta entre os domínios do MEEM e as categorias da CIF,
principalmente no que se refere aos componentes da Função e Atividade e
Participação. Achado este que vai ao encontro do estudo de Campos et al. [23], que relacionou da mesma
forma, abrangendo em sua maioria os componentes Funções do Corpo e Atividades e
Participação.
A principal limitação
do nosso estudo foi a dificuldade de encontrar
indivíduos com diagnóstico de AVE.
Concluímos que
pacientes com Alzheimer apresentam marcada alteração cognitiva quando
comparados aos portadores de DPOC e AVE. O MEEM apresenta uma relação direta
com todos os domínios da CIF, bem com o impacto do déficit cognitivo na
funcionalidade dos idosos avaliados, mostrando assim a confiabilidade deste
instrumento em pacientes com DCNT.