REVISÃO

As diferentes manifestações da heminegligência e sua avaliação clínica

The different manifestations of hemineglect and his clinical evaluation

 

Manuel Leite Lopes*, Mauricio de Sant Anna Jr**, Hebert Pereira Ferreira***, Rossano Fiorelli****, Victor Hugo Bastos*****, Marco Orsini******, Charles André*******

 

*Mestre em Ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Clinica Sinapse, Rio de Janeiro, **Instituto Federal do Rio de Janeiro, IFRJ, Curso de Fisioterapia, ***Mestre em Ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, ****Universidade Severino Sombra, Ciências Aplicadas à Saúde, Vassouras RJ, *****Universidade Federal do Piauí, Departamento de Fisioterapia, UFPI, ******Universidade Severino Sombra, Programa de Mestrado em Ciências Aplicadas à Saúde e Centro Universitário Augusto Motta, Ciências da Reabilitação, Rio de Janeiro, *******Departamento de Neurologia, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ

 

Recebido 10 de setembro de 2017; aceito 15 de fevereiro de 2018

Endereço para correspondência: Manuel Leite Lopes: lopesmal@yahoo.com.br; Mauricio de Sant Anna Jr: fisioenf@gmail.com; Hebert Pereira Ferreira: ferreirahp@yahoo.com.br; Rossano Fiorelli: fiorellirossano@hotmail.com; Victor Hugo Bastos: victorhugobastos@ufpi.edu.br; Marco Orsini: orsinimarco@hotmail.com; Charles André :charles.andré@gmail.com

 

Resumo

A heminegligência é caracterizada por comprometimento cognitivo basicamente atencional e está relacionada com pior prognóstico evolutivo. Ela pode ser classificada como heminegligência motora, sensorial, e representacional, ou ainda como peripessoal ou extrapessoal. Sua detecção e avaliação podem ser complexas. A heminegligência é geralmente avaliada por uma variedade de testes de “lápis e papel” que nem sempre avaliam todas as manifestações da síndrome. Assim, o uso de uma bateria de testes é preconizado para uma maior sensibilidade diagnóstica. Somente através de avaliação minuciosa podem-se traçar estratégias de tratamento direcionadas e mais eficazes para cada tipo de heminegligência, e assim, melhorar o prognóstico dos pacientes. Testes quedemonstraram validade, sensibilidade e que foram publicados com valor de corte são sugeridos nessa revisão para melhorar a sensibilidade do diagnóstico e facilitar o exame dos profissionais envolvidos na reabilitação dos pacientes.

Palavras-chave: transtornos da percepção, heminegligência, acidente cerebrovascular, diagnóstico.

 

Abstract

Hemineglect is characterized by a cognitive disorder (attentional) and is related to worse prognosis. Hemineglect may be classified as motor, sensory, and representational, as well as peri-personal or extra-personal. Its detection and assessment can be complex. Hemineglect is usually assessed by a variety of "pencil and paper" tests, even if these tests do not assess all manifestations of the syndrome. Therefore,the use of a battery is recommended. This improves diagnostic sensitivity and specificity. Only through specific assessment can more efficient and targeted strategies of treatment be implemented, improving patients’ prognosis. Tests that have shown validity, sensitivity and were published with cut-off scores are suggested in this review to improve the sensitivity of diagnosis and to facilitate the examination by professionals involved in rehabilitation.

Key-words: perceptual disorders, hemispatial neglect, stroke, diagnosis.

 

Introdução

 

Pacientes que sofrem um acidente vascular cerebral (AVC), traumatismo craniano, encefalite e outras lesões encefálicas, podem apresentar déficits de inúmeros tipos e combinações, incluindo alterações sensoriais, sensitivas, motoras, de comunicação ou cognitivas (atencionais, desordens executivas e déficits de reconhecimento) [1]. A heminegligência é um déficit cognitivo caracterizado por síndrome comportamental essencialmente atencional, comum em pacientes que sofreram AVC [2]. Nesta síndrome, o comprometimento cognitivo é basicamente atencional [1,3].

A heminegligência tem sido definida como a falência em descrever, orientar-se em direção ou responder a estímulos gerados do lado oposto à lesão, neste caso, as alterações não são primariamente atribuíveis aos déficits sensoriais e motores eventualmente presentes [4]. A síndrome não se apresenta de modo uniforme, contudo, sendo constituída por uma série de sintomas e manifestações em diferentes combinações [5,6].

É comum encontrar vários termos para referir-se a heminegligência. Os mais frequentes são negligência unilateral, desatenção espacial unilateral ou hemidesatenção espacial. Hemi é prefixo grego que significa metade, negligência é palavra proveniente do latim que pode ser traduzida como falta de cuidado. Assim, heminegligência significaria falta de cuidado com a metade. O termo não seria o mais adequado para denominar a síndrome, visto que a palavra negligência transmite ideia de voluntariedade, e as sequelas apresentadas pelos pacientes com esta síndrome não dependem de sua vontade. Apesar disso, o termo heminegligência é o mais difundido, e por isso será aqui utilizado.

A literatura especializada sugere fortemente que os pacientes heminegligentes apresentam pior prognóstico, quando comparado àqueles sem o problema [7-9]. Assim, a gravidade do AVC, juntamente com a presença de heminegligência, está relacionada com pior prognóstico nas atividades de vida diária (AVD), maiores índices de morbidade e letalidade, e maior tempo de internação hospitalar[10]. Pacientes heminegligentes apresentam, em média, maior acometimento sensorial e motor, maior comprometimento cognitivo, e possuem menor pontuação em escalas de independência funcional quando comparados àqueles sem o quadro [11]. Além disso, ao contrário do que se imagina, a heminegligência não é uma síndrome rara [12]. Apesar disso, alguns estudos [13,14] mostraram que poucos são os profissionais envolvidos na reabilitação do AVC que utilizam critérios diagnósticos e técnicas de reabilitação baseadas nas evidências científicas. Estaríamos negligenciando a heminegligência?

 

Tipos de heminegligência

 

Existem diferentes tipos de heminegligência, que variam de acordo com a localização da lesão cerebral [15]. A síndrome pode ser classificada de acordo com os sistemas acometidos em: negligência sensorial, negligência motora (desordem de ação e intenção de movimento), e negligência representacional (desordens de representação mental) [4,16].

A negligência sensorial é definida pela diminuição nas respostas a um estímulo sensorial contralateral à lesão cortical [9], e pode ser classificada de acordo com a modalidade sensorial acometida (visual, auditiva e tátil) [10].

A negligência motora é definida como a falência em gerar movimento em resposta a um estímulo [2,4]; nesse caso, esta falência não é decorrente de um déficit primariamente sensitivo ou por diminuição da força [10].

A negligência representacional pode vir ou não acompanhada de algum outro tipo de negligencia [17]. O quadro ocorre quando o paciente ignora a metade das imagens contralaterais à lesão cortical geradas internamente. Essas imagens geradas internamente são representações mentais ou visualizações de uma tarefa, ação ou do meio ambiente [2,15]. Um famoso experimento, realizado na Itália, fundamentou essa ideia. Dois pacientes com heminegligência foram orientados a imaginar e descrever, em duas condições diferentes, um lugar bem conhecido, a Piazza del Duomo em Milão. A primeira condição foi de costas para a catedral, sobre seus degraus; a segunda foi de frente para a catedral, do outro lado da praça. Quando os pacientes se imaginavam de costas para a catedral, mencionavam apenas um dos lados da praça, não mencionando nenhum dos edifícios presente no lado oposto, negligenciando-os do espaço representado. Quando se imaginavam em frente à catedral, por outro lado, descreviam apenas a outra metade, negligenciada na condição anterior. Assim, embora sempre negligenciassem um lado do espaço, nessas condições experimentais, os pacientes foram capazes de descrever a praça completa [18]. Esse resultado deixa claro que não há um problema de memória visual em pacientes com heminegligência; sua dificuldade parece estar ligada com o direcionamento da atenção.

Além disso, a heminegligência pode ser classificada de outra maneira. Ao invés de dividir a heminegligência baseando-se nos sistemas acometidos (sensorial, motor, representacional), pode-se dividi-la de acordo com o domínio espacial acometido. Deste modo, a síndrome pode ser classificada em negligencia pessoal e extra-pessoal [19-22]. A negligencia pessoal é definida como uma diminuição na exploração e na percepção do lado do corpo oposto à lesão cerebral; a negligencia extra-pessoal, por sua vez, ocorre quando os pacientes perdem a capacidade de perceber os estímulos localizados no hemicampo contralateral à lesão cortical [18]. A negligencia extra-pessoal pode ainda ser subclassificada em peripessoal e extrapessoal [23]. A primeira é caracterizada pela negligência do espaço próximo contralateral à lesão cortical, ou seja, o espaço que o paciente alcança com as próprias mãos; um exemplo é o do paciente que come apenas metade da refeição que está no prato. Na segunda situação, o paciente negligencia o espaço não tão próximo contralateral à lesão cortical, aquele espaço que o paciente não pode alcançar com as próprias mãos; um exemplo é o do paciente que colide com obstáculos localizados no hemicampo negligente [2]. A negligencia pessoal e a extrapessoal podem aparecer dissociadas ou combinadas [17,18,20].

 

Anatomia da heminegligência

 

A heminegligência apresenta uma complexa constelação de sinais e sintomas. Devido ao grande número de relatos associando diversas estruturas anatômicas à síndrome, sua neuroanatomia ainda não está totalmente esclarecida.A heminegligência inicialmente foi associada com lesões no lobo parietal [14,24-26]. Embora alguns estudos relatem a maior importância do lobo parietal na heminegligência, alguns autores apontam para importância semelhante dos lobos parietal e temporal [25]. Nas três ultimas décadas, com o surgimento da tomografia computadorizada e da ressonância magnética, a síndrome também tem sido correlacionada com lesões acumuladas em regiões subcorticais (tálamo, núcleos da base, substancia branca subcortical) [23]. Atualmente, sabe-se que lesões localizadas nos núcleos da base, na substancia branca adjacente e no lobo frontal inferior podem produzir heminegligência no estágio agudo da lesão; entretanto, a ausência da heminegligência é comumente observada após lesões dessas estruturas, o que indica uma fraca associação [27].

Existe alguma correlação entre o tipo de heminegligência e o local da lesão. Lesões no lobo parietal promovem negligência sensitiva, também chamada de negligencia perceptual; e lesões no lobo frontal, negligência motora, também chamada de negligencia pré-motora[28,29]. Este distúrbio de comportamento pode estar associado com lesões tanto no hemisfério direito quanto no hemisfério esquerdo, porém é mais frequente após uma lesão cortical ou subcortical do hemisfério direito do cérebro [30]. A ideia de que a heminegligência é mais comum após lesão no hemisfério direito foi confirmada em revisão sistemática de dados publicados. O resultado de meta-análise com 17 estudos avaliando AVC nos hemisférios direito e esquerdo, revelou frequências de negligência após lesão em hemisfério esquerdo variando de 0 a 76% (média de 21%) e, após lesão em hemisfério direito, de 13 a 82% (média de 43%) [12].

 

Avaliação da heminegligência

 

A natureza diversificada da heminegligência faz com que sua identificação e avaliação tornem-se tarefa complexa. Além disso, a gravidade dos problemas e suas consequências na vida cotidiana permitem compreender a que ponto os estudos sobre a heminegligência são importantes. A negligência pode ser avaliada por vários testes como o Teste de cancelamento (Cancellation test), Divisão de linhas (Line Bisection), desenho livre (Drawing test), cópia de desenhos (Copying test), imaginação visual (Imagery test), leitura de textos, descrição de objetos e cenários, e por testes funcionais, como avaliar a maneira do paciente vestir-se, alimentar-se e andar ou ‘navegar’ em cadeira de rodas. O Line Bisection, Cancellation Test, Drawing test o Copying test são os chamados testes de “lápis e papel” e por sua administração simples e rápida, são os mais utilizados.

 

Divisão de linhas

 

O paciente é orientado a estimar e indicar o ponto médio de uma linha horizontal presente em um papel à sua frente. O teste deve ser feito preferencialmente com o membro não afetado. Quando o paciente for heminegligente, não conseguirá localizar o ponto médio da linha horizontal e marcará um ponto com certo desvio, geralmente para o lado da lesão cortical. O valor do desvio pode variar conforme a gravidade da negligência [27]. A validade do Line Bisection para determinar a presença de heminegligência foi demonstrada por Marsh e Kersel [31].

 

Teste de cancelamento

 

      Esse teste requer que os pacientes procurem e identifiquem, marcando com um lápis, os símbolos alvos presentes em um papel. Pacientes heminegligentes falham em identificar os estímulos presentes no lado oposto à lesão cerebral [2]. Um fato importante, na estratégia utilizada para a exploração dos símbolos alvos, é que pacientes com lesão no hemisfério direito começam a exploração pela margem direita e pessoas normais pela margem esquerda da folha [32]. Os símbolos alvos podem variar de acordo com o tipo de teste utilizado, o que gerou várias versões. As versões do Cancellation test são: Shape Cancellation (identificar formas) [30], o Star Cancellation (identificar estrelas) [33], Circle Cancellation (identificar círculos) [18,34], o Line Cancellation (identificar linhas) [35], Bell Cancellation (identificar sinos) [36], o Letter Cancellation (identificar letras) [37], e Number Cancellation (identificar números) [38]. A dificuldade do Cancellation test varia de acordo com a presença ou não de símbolos para desviar a atenção e com o uso de estímulos alvos simples ou duplos. Por exemplo, o Bell Cancellation e o Star Cancellation possuem símbolos para desviar a atenção, enquanto que no Line Cancellation (Albert test) estes distratores não são incluídos. O Cancellation test com símbolos para desviar a atenção (distratores) são mais sensíveis para detectar a heminegligência do que aqueles sem os símbolos para desviar a atenção [39]. A validade do Cancellation test para determinar a heminegligência foi demonstrada por Marsh e Kersel [29].

 

Teste de Cancelamento vs. Divisão de Linhas

 

Os autores divergem em relação à sensibilidade destes testes; alguns entendem que o Cancellation test apresenta maior sensibilidade que o Line Bisection [29,40], e outros afirmam exatamente o oposto [41]. Existem ainda autores que não observaram diferença quanto à sensibilidade dos dois testes [42].É importante realçar que os dois testes não podem ser usados para diferenciar negligência motora e sensitiva, pois ambos requerem exploração visual e manual [43].

 

Copia de figura

 

O paciente é orientado a copiar uma figura apresentada. Figuras padronizadas são usadas no teste, como flor, estrela, cubo e outras formas geométricas. Cópias incompletas, com omissões ou distorções no lado contralateral à lesão cortical, indicam heminegligência [35].

 

Teste de desenho livre

 

O paciente é orientado a desenhar livremente, ou seja, não é apresentada qualquer figura para cópia. Assim, é necessária uma representação interna prévia para que o paciente consiga desenhar corretamente a figura desejada. As figuras consideradas mais sensíveis para detectar a heminegligência são: um relógio, formas humanas ou uma borboleta [35]. Assim como no Copying Test, desenhos incompletos, com omissões ou distorções no lado contralateral a lesão cortical, indicam heminegligência.

 

Copia de figura vs. teste de desenho livre

 

Embora ambos os testes utilizem tarefas similares, eles avaliam componentes distintos da heminegligência. O Copying test avalia a negligência sensorial e motora, mas não é capaz de distinguir tipos de negligencia, pois requer simultaneamente exploração visual e manual. O Drawing Test avalia a negligência representacional e motora, mas não é capaz de distinguir qual o tipo de negligencia, pois requer simultaneamente exploração manual e representação interna intacta. Existem problemas relatados por alguns autores com relação a esses tipos de testagens. O primeiro problema consiste na subjetividade de interpretação dos resultados [44]; além disso, impedimentos cognitivos também alterariam os resultados destes testes [45]; os dois testes exibem ainda baixa sensibilidade (57,5%) quando comparados com o Star Cancellation e o Line Bisection (76,4%) [40].

 

Imaginação visual

 

É usado para avaliar como se da à representação interna do espaço para o paciente, que é orientado a descrever lugares familiares. Indivíduos heminegligentes podem apresentar dificuldades representacionais, omitindo objetos localizados no hemicampo negligente [16].

 

Teste para negligencia pessoal

 

A negligência pessoal é avaliada orientando o paciente a colocar o membro superior contra lateral à lesão cortical ao lado do tronco. O examinador aponta para a mão ipsilateral à lesão, e pede para o paciente tocar sua outra mão. Pacientes com esta forma de negligencia não conseguem localizar o membro localizado no hemicampo negligente [18]. Esse teste apresenta problemas, pois o paciente pode não conseguir localizar o membro afetado por outros motivos como: disfunção executiva, apraxia, alteração de sensibilidade profunda, entre outros.

 

Avaliação da negligência em crianças

 

A avaliação da heminegligência em crianças é tarefa complicada, já que a maioria das testagens é elaborada para aplicação em adultos. Esse fato pode ser explicado pelo pequeno número de trabalhos publicados com a população pediátrica e pela necessidade da voluntariedade dos pacientes na realização das testagens. É difícil avaliar crianças que ainda não desenvolveram uma plena capacidade de comunicação e, além disso, motivar aquelas que possuem tal capacidade a realizar as testagens. Mesmo com essas dificuldades, através da distribuição espacial de desenhos feitos por esses pacientes em uma folha de papel, é possível suspeitar da presença dessa síndrome. A observação clínica é outra maneira de avaliar crianças heminegligentes, que tendem a explorar e perceber menos o lado oposto à lesão cortical, porém a subjetividade e a difícil quantificação são alguns dos problemas encontrados nessas avaliações. Em função destas dificuldades, alguns autores criaram o Teddy Bear Cancellation test, em que é apresentada para a criança uma folha de papel (21 x 29,7cm), com15 ursos distribuídos e meio a 60 distratores. Os pacientes são orientados a encontrar e riscar os ursos. A omissão dos alvos, localizados em algum dos lados da folha, indica a heminegligência [46].

 

Testes funcionais para avaliar a heminegligência

 

A heminegligência, como já foi dito, é um fator limitante para a funcionalidade do paciente. Até mesmo testes funcionais inespecíficos são capazes de detectar a interferência da heminegligência na reabilitação funcional. Para melhor avaliar o impacto da síndrome nas atividades funcionais, foram elaborados testes específicos [20,37], que não necessitam de grande aparato, apenas exploração visual e manual preservada. Servir chá, distribuir cartas, descrever um cenário, pentear o cabelo, maquiar o rosto e fazer a barba são algumas das tarefas exigidas para avaliar a interferência da heminegligência nas atividades funcionais. Além disso, esse tipo de testagem é capaz de diferenciar negligência pessoal e extrapessoal: servir chá, distribuir cartas, descrever um cenário são tarefas que podem estar comprometidas em decorrência da negligência extrapessoal; pentear o cabelo e fazer a barba, por outro lado, são tarefas que podem estar comprometidas em decorrência da negligência pessoal.

 

Behavioural Inattention test (BIT)

 

Como visto, os pacientes podem apresentar apenas um tipo de negligência ou a combinação de vários comportamentos negligentes. A heminegligência não pode ser avaliada por um único teste. Em virtude dessa variabilidade clínica, é recomendável a utilização de uma bateria de testes, que seja capaz de avaliar todos os tipos de heminegligência [5,38,40]. Avaliando prospectivamente 102 pacientes após AVC em hemisfério cerebral direito, sendo 22 pacientes heminegligentes, nós concluímos que o uso de testes isolados de triagem pode falhar em diagnosticar heminegligência após o AVC; sendo a utilização de uma bateria formal de avaliação necessária para identificar indivíduos com diferentes tipos de heminegligência [47]. A bateria de testes mais utilizada para avaliar a heminegligência é denominada Behavioural Inattention test (BIT), composta por quinze itens, dos quais seis são representados por subtestes convencionais, ou seja, por testes comumente usados para avaliar este tipo de paciente. Entre os subtestes convencionais estão: Line crossing, Letter cancellation, Star cancellation, Line bisection, Figure and shape copying e Representational drawing. A pontuação máxima possível nos subtestes convencionais é de 146; pacientes que apresentam pontuação abaixo de 129 são considerados heminegligentes. Os nove itens restantes são os subtestes comportamentais, nos quais os pacientes são orientados a fazer nove tarefas típicas do dia a dia: descrever uma figura, discar um numero de telefone, ler um cardápio, ler um texto, dizer qual a hora marcada em um relógio, separar moedas, copiar sentenças, navegar em um mapa e separar cartas [35]. Existe forte correlação entre esses nove testes comportamentais e alguns testes de “lápis e papel” habitualmente utilizados para avaliar a heminegligência [35].

Deve ser ressaltado que a execução da bateria completa exige mais de 60 minutos de avaliação; por esse motivo, muitos avaliadores subdividem a bateria, para não submeter o paciente a desgaste excessivo. Outro fato relevante é que essa bateria ainda não foi validada em português: como alguns testes da parte comportamental estão em inglês, deve-se considerar esta limitação ao aplicar esses testes em um país de língua portuguesa. A parte comportamental da BIT é de vital importância, por verificar a influência dos sintomas heminegligentes em atividades funcionais que exigem muito da exploração e percepção espacial, características comumente afetadas nesse tipo de paciente. Assim, seria interessante a validação dessa bateria em língua portuguesa.

 

Conclusão

 

A heminegligência pode se manifestar de diversas maneiras. Não constitui síndrome unitária, mas sim uma complexa constelação de sinais e sintomas. Está relacionada com pior prognóstico evolutivo, e geralmente decorre de lesões no hemisfério cerebral direito.Sua detecção e avaliação podem ser complexas e, por isso, acreditamos que um único teste não é suficiente para diagnosticá-la. O uso de uma bateria especifica para avaliação da heminegligência é necessário, permitindo avaliar e identificar os vários tipos de heminegligência. Somente através de avaliação minuciosa pode-se traçar estratégias de tratamento direcionado e mais eficaz para cada tipo de heminegligência, e assim, melhorar o prognóstico dos pacientes acometidos.

 

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