ARTIGO ORIGINAL
Avaliação funcional de crianças
com deficiências: fatores contextuais e familiares para o desenvolvimento infantil
Functional evaluation of children with disabilities: contextual and family
factors for child development
Gisélia Gonçalves de Castro, D.Sc.*, Eliana Vitória Silva Barbosa, Ft.**, Glória Lúcia Alves
Figueiredo, D.Sc.***
*Docente do Centro Universitário
do Cerrado Patrocínio (UNICERP), Patrocínio MG, **Centro Universitário do Cerrado
Patrocínio (UNICERP), Patrocínio MG, ***Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto
Senso em Promoção de Saúde, Universidade de Franca (UNIFRAN), SP
Recebido em 29 de junho
de 2018, aceito em 30 de março de 2020.
Correspondência: Gisélia
Gonçalves de Castro, Avenida Líria Terezinha Lassi Capuano, 466, 38747-792 Patrocínio
MG
Gisélia Gonçalves de Castro: giseliagcastro@gmail.com
Eliana Vitória Silva Barbosa:
vitoria_sbarbosa@outlook.com
Glória Lúcia Alves Figueiredo:
gloria.figueiredo@unifran.edu.br
Resumo
Introdução: Nas crianças, as disfunções
neuromotoras podem causar incapacidades para desempenharem
suas atividades. A avaliação da funcionalidade permite conhecer atividades realizadas
e condições de participação em contextos relevantes do desenvolvimento infantil.
Objetivo: Avaliar a funcionalidade de crianças com deficiências e descrever
os resultados paralelamente aos fatores contextuais. Métodos: Participaram do estudo
20 crianças de 11 a 144 meses. A avaliação ocorreu por questionário semiestruturado
e o instrumento de Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e
Saúde, versão Crianças e Jovens (CIF-CJ). A análise dos dados foi descritiva. Resultados:
Predominaram o sexo masculino (70%), nascimentos a termo (60%), do tipo cesáreo
em hospitais públicos (85% respetivamente) e 50% não apresentaram dificuldades em
relação ao Apgar 1º minuto. Quanto a topografia, 95% apresentaram
lesão piramidal, predominando a quadriplegia. Na avaliação
funcional as maiores dificuldades encontradas foram as atividades de subir e descer
degraus, andar, correr e saltar. A menor dificuldade foi na atividade de rolar,
tanto no desempenho, quanto na capacidade. Conclusão: Os fatores contextuais
quando são considerados criteriosamente poderiam amenizar os problemas decorrentes
das disfunções motoras e contribuir para melhorar a qualidade de vida das crianças
com deficiências.
Palavras-chave: crianças com deficiências,
família, ambiente.
Abstract
Introduction: In children, neuromotor dysfunctions cause disabilities and limitations
to perform their activities. The evaluation of the functionality allows to know
activities performed and conditions of participation in relevant contexts of child
development. Objective: To evaluate the functionality of children with disabilities
and describe the results in parallel with the contextual factors. Methods:
Twenty children from 11 to 144 months participated in the study. The evaluation
was performed by unstructured questionnaire and the International Classification
of Functioning, Disability and Health, Children and Youngsters (CIF-CJ) instrument
and data analysis were descriptive. Results: Predominate males (70%), term
births (60%), cesarean type in public hospitals (85% respectively) and 50% presented
mild difficulties in relation to Apgar 1 minute. As to the topography, 95% presented
pyramidal lesions, predominating quadriplegia. In the functional evaluation the
greatest difficulties were the activities of going up and down stairs, walking,
running and jumping. The least difficulty was in rolling activity, both in performance
and in capacity. Conclusion: The contextual factors when considered carefully
could alleviate the problems caused by motor dysfunctions and contribute to improving
the quality of life of children with disabilities.
Keywords: children with disabilities, family, environment.
Historicamente
existem diferentes
registros das formas de se ver a pessoa com deficiência. Passou
pelo misticismo,
abandono, extermínio, caridade, segregação,
exclusão, integração e, atualmente
inclusão.
O documento elaborado pela Convenção dos Direitos das
Pessoas com Deficiência da
Organização das Nações Unidas (ONU) de
2006, define a pessoa com deficiência, como
sendo aquela com impedimentos de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial,
que em interação com diversas barreiras, podem impedir
sua participação plena e
efetiva na sociedade [1].
Para a Organização Mundial
da Saúde (OMS) pelo menos 10% das crianças nascem ou adquirem algum tipo de deficiência
física, mental ou sensorial no seu desenvolvimento. Em outro levantamento, estima-se
que cinco por cento da população mundial é portadora de algum tipo de deficiência,
no Brasil 6,7% da população total declararam possuir uma deficiência severa no Censo
2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística do IBGE [2,3].
No ano de 2001, a Organização
Mundial de Saúde (OMS) autorizou um sistema de classificação para o entendimento
da funcionalidade e da incapacidade humana: a Classificação Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Saúde (CIF), um instrumento para se identificar as condições estruturais
e ambientais e as características pessoais que interferem na funcionalidade. Essa
classificação possibilita a padronização da linguagem sobre a funcionalidade [4].
No
entanto, desde o nascimento
até a fase adulta, a criança passa por uma
sequência de evoluções nas funções
motoras,
psíquicas e sensoriais. Na medida em que ocorrem, os reflexos
primitivos devem ser
modificados por funções mais personalizadas, definindo-se
a maturidade cerebral.
Se por um lado, o desenvolvimento progressivo desses padrões
neuropsicomotores conceitua
o desenvolvimento normal, por outro lado, as disfunções neuromotoras
causam os efeitos de incapacidade e limitações na criança para desempenhar atividades
funcionais [5-7].
A versão da CIF focalizada
para crianças e jovens (CIF-CJ) foi elaborada por especialistas internacionais e
aceito por todos os países membros da OMS. Seu objetivo é comparar internacionalmente
os níveis de saúde das crianças e jovens, fornecendo uma linguagem comum para descrever
aspectos universais de funcionalidade e deficiência [8-10].
Na abordagem funcional em
crianças, enfatiza-se a avaliação em cenários naturais, como em sua casa e na escola,
tendo em vista que esses ambientes constituem contextos que elas se desenvolvem
[11]. Denota-se a existência de três situações de risco para o atraso do desenvolvimento:
origem genética; biológica (eventos pré, peri e pós-natais); e ambiental (modo de vida, condições precárias
de saúde, falta de recursos sociais, práticas inadequadas de cuidado e educação,
entre outros) [5].
O uso da CIF e da CIF-CJ
contribui também para fornecer dados mais consistentes relativos às condições de
vida das pessoas com deficiências, que venham a subsidiar ações profissionais e
decisões políticas mais eficientes [12,13].
Estudos desenvolvidos por
diversos autores indagaram a influência dos fatores contextuais, questões pessoais
e ambientais na funcionalidade/incapacidade das crianças com deficiências, sugerindo
mais estudos com essa temática em que analisassem, especialmente, as implicações
do ambiente e da equidade social para a promoção da saúde e desenvolvimento das
crianças com deficiências [14-17].
Diante do exposto, o objetivo
deste estudo é avaliar a funcionalidade de acordo com a classificação sugerida pela
CIF-CJ nas atividades, participações e sua correlação com fatores contextuais.
Trata-se de um estudo exploratório,
de corte transversal, com abordagem quantitativa. A presente pesquisa foi submetida
e aprovada pelo Comitê de Ética (CAAE 62623416.9.0000.5495).
A pesquisa foi realizada
com 20 crianças com paralisia cerebral que estavam em atendimento fisioterapêutico
em um Ambulatório de Pediatria Universitário de uma cidade do interior mineiro no
ano de 2017. Foram incluídas crianças com diagnóstico de paralisia cerebral e excluídas
as com má formação congênita, bem como patologias não relacionadas com lesão cerebral.
Após o levantamento nos
prontuários de todas as crianças diagnosticadas com PC, no ano de 2017, foi feita
uma abordagem em local reservado com o responsável pela criança com intuito de esclarecer
sobre aos objetivos da pesquisa. Posteriormente a aceitação, os responsáveis assinaram
o Termo de Compromisso Livre Esclarecido e foi agendada visita domiciliar para a
coleta dos dados.
Primeiramente, por meio
de um questionário sociodemográfico, foram identificadas as crianças participantes
e analisados os dados dos prontuários com as variáveis: sexo, idade e dados do nascimento
(idade gestacional, peso, altura, Apgar, perímetro cefálico
e parto) e classificação da paralisia cerebral
Atendendo
o objetivo da
funcionalidade, em razão da CIF priorizar a
classificação da funcionalidade a partir
da limitação e do comprometimento em diversas atividades
(OMS, 2004), optou-se por
avaliar a criança no seu meio habitual, a residência.
Avaliaram-se os componentes
“Atividade e Participação”, na Categoria
“Mobilidade”, do Domínio “Deslocar”,
avaliando
o rolar, gatinhar, andar, subir/descer, correr e saltar; tendo como
Qualificador
Desempenho e Capacidade.
Para avaliação do domínio
supracitado, foi aplicado ao Qualificador “Desempenho e Capacidade” os itens numéricos
0,1,2,3 e 4; onde 0 significa nenhuma dificuldade, 1 dificuldade ligeira, 2 moderada,
3 dificuldade grave e 4 dificuldade completa [18].
Os resultados foram compilados
no Epi Info, organizados em gráficos, tabelas e quadros. A análise dos dados foi
descritiva, utilizando-se média e frequência.
Participaram do estudo 20
crianças, predominando o sexo masculino (70%), (60%) a termo, (85%) nascidos de
parto cesáreo e em hospital público. No Apgar 1º minuto,
uma (5%) criança foi classificada com pontuação de 0 a 3 e três (15%) de 4 a 6.
No Apgar 5º minuto, a pontuação melhorou, ficando apenas
duas (10%) com pontuação abaixo de oito. Em relação ao peso ao nascimento, os nascidos
com peso inferior ou igual a 2.500 gramas, quanto os nascidos com peso menor ou
igual a 2.501 gramas tiveram a mesma proporção (Tabela I).
Tabela I – Caracterização das
crianças com deficiências de acordo com as variáveis ao nascimento (sexo, hospital,
idade gestacional, tipo de parto, Apgar 1º, Apgar 5º, peso ao nascer).
FA = Frequência Absoluta;
FR = Frequência Relativa; Fonte: Dados da pesquisa (2017).
Dias et al. [18]
apontaram em seus estudos uma amostra com 27 crianças, predominando o sexo masculino,
com a faixa etária de 3 anos a 13 anos, e o estudo de Medeiros et al. apresentou
uma amostra de 20 crianças com a predominância do sexo masculino, e faixa etária
de 2 a 12 anos. Em pesquisa realizada por Zanini, Cemin e Peralles [19] com crianças
com disfunções neurológicas predominaram os partos normais e fórceps; e quanto à
idade gestacional (IG), destacaram-se nascidos no período pré-termo
e pós-termo, e os valores de peso ao nascimento variaram
de 800 g a 4400 g. Os resultados dos autores indicaram que a incidência de disfunções
neurológicas aumentou drasticamente com o declínio da idade gestacional e com o
baixo peso ao nascimento, ratificando o presente estudo.
Em relação a idade dos participantes,
houve predomínio de 19 (95%) crianças na faixa etária de 17 meses ou mais e 1 (5%)
na faixa etária de 0 a 17 meses. De acordo com a topografia, 19 foram classificadas
com lesão piramidal, predominando a quadriplegia, sendo
apenas 1 extrapiramidal, classificada como Atetose (Tabela
II).
Tabela II – Classificação da topografia
das crianças com deficiências e descrição da idade em meses.
Fonte: Dados da pesquisa
(2017)
No que se refere a topografia,
os resultados do estudo de Rothstein e Beltrame [20] indicaram
que das 15 crianças participantes, duas apresentaram hemiplegia direita, uma ataxia,
e 13 apresentaram quadriplegia, o que corrobora os resultados
deste estudo.
Para a avaliação as CIF-CJ
na escolha do componente de Atividade e Participação da categoria mobilidade, observou-se
que diante do qualificador Desempenho, no domínio Deslocar, as atividades mais relevantes
realizadas pelos participantes deste estudo, foram: o domínio rolar, 10 (50%) crianças
não apresentaram dificuldade, mas 6 (30%) apresentaram Dificuldade Completa, o gatinhar
no qual 13 (65%) crianças apresentaram Dificuldade Completa, ao Subir/Descer 14
(70%) apresentaram Dificuldade Completa, andando 14 (70%) crianças possuem Dificuldade
Completa, correndo 16 (80%) possuem Dificuldade Completa, e no domínio Saltar 17
(85%) possuem Dificuldade Completa (Gráfico 1).
Gráfico 1 - Avaliação da Classificação
de Incapacidade e Funcionalidade de Saúde – Crianças Jovens (CIF-CJ). Domínio: Deslocar
(Desempenho).
No estudo de Brasileiro
et al. [21], ao avaliar o desempenho dos domínios da categoria deslocar, observou-se
que quanto mais desenvolvidas as atividades, mais destacavam-se as incapacidades
das crianças. Em 25% das crianças, observou-se que elas eram capazes de andar, com
dispositivos de assistências; já quando foram avaliados os domínios rolar, gatinhar,
subir/descer um degrau, a corrida e o salto, 90,7% das crianças apresentaram dificuldades
para realizá-los, mesmo com ajuda do meio ambiente ou do terapeuta.
De acordo com a pesquisa
de Rosenbaum e Stewart, os diferentes níveis de funcionalidade
devem ser avaliados em relação aos fatores contextuais, que podem ter uma influência
positiva ou negativa sobre o impacto da deficiência em questão [6]. Um fator positivo
observado no estudo de Ostrochi, Zanolli
e Chun [7] foi que a avaliação no contexto habitual das
crianças participantes alcançou uma melhora no seu deslocamento, o que corrobora
os resultados deste estudo.
Perante o qualificador Capacidade
no domínio Deslocar, as atividades que se destacaram foram o domínio rolar, no qual
9 (45%) crianças não apresentaram dificuldade, mas 7 (35%) apresentaram Dificuldade
Completa, no engatinhar 13 (65%) apresentaram Dificuldade Completa, ao subir e descer,
14 (70%) apresentaram Dificuldade Completa, andando 14 (70%) possuem Dificuldade
Completa, correndo 16 (80%) possuem Dificuldade Completa, e ao saltar 19 (95%) possuem
Dificuldade Completa (Gráfico 2).
Gráfico 2 - Avaliação da Classificação
de Incapacidade e Funcionalidade de Saúde – Crianças Jovens (CIF-CJ). Domínio: Deslocar
(Capacidade).
No presente estudo, quando
avaliada a capacidade da categoria Deslocar, verificou-se a piora da atuação das
crianças, corroborando a pesquisa de Brasileiro et al. [21], na qual foi
verificada uma escala negativa da capacidade em quase todas as crianças nestes domínios;
e no estudo de caso de Souza e Alpino [11], o qual observa que a piora no resultado,
provavelmente, se deu, porque ao avaliar a capacidade, a CIF-CJ não permite que
a criança tenha ajuda do meio ambiente ou ajuda externa.
De acordo com estudo de
Medeiros et al. [12] as crianças avaliadas não tiveram dificuldade para realizar
os domínios de pular, chutar e correr. O autor esclareceu este achado, porque, em
seu estudo, a maioria das crianças avaliadas eram hemiplégicas, o que diferiu do
presente estudo. Os autores constataram ainda que as crianças portadoras de disfunções
neurológicas poderiam desempenhar atividades funcionais de sua rotina diária igual
a crianças com desenvolvimento normal.
Para Dias et al.
[18], um parecer sobre a função motora grossa de crianças com disfunções neurológicas
já foi comprovado através da importância da avaliação do nível da funcionalidade
para quantificar as habilidades motoras grossas, para uma padronização da classificação
baseada nas habilidades e limitações da função motora grossa destas crianças.
No presente estudo, mensurando
o grau de funcionalidade, sete (35%) crianças apresentaram o grau de funcionalidade
completo, seis (30%) possuíam grau de funcionalidade grave, três (15%) têm grau
de funcionalidade moderado e quatro (20%) detêm grau de funcionalidade leve.
Dias et al. [18]
classificaram os níveis de comprometimento motor de crianças
com disfunções neurológicas e a maioria das crianças foram classificadas nos níveis
IV e V, exibindo um importante comprometimento motor, sancionando com os achados
deste estudo.
Machado, Machado e Soares
[22] relatam que mesmo com a gravidade da disfunção motora sendo a mais influente
para piora das dificuldades nas atividades e participação de crianças com deficiências,
elas também estiveram relacionadas com as causas funcionais e com os obstáculos
arquitetônicos, cujos fatores ambientais apresentaram participação direta no desempenho
funcional e nas atividades cotidianas das crianças. Morettin
et al. [23] ao analisar os fatores ambientais, os autores observaram que
a maior parte dos pacientes não apresentavam dificuldades em se relacionar com seus
familiares.
As crianças com deficiências
enfrentam grandes barreiras para realizar atividades, mas os fatores contextuais
constituem facilitadores importantes para que possam manter uma boa qualidade de
vida e alcançarem independência [24-28], corroborando os achados do presente estudo.
Como limitação do presente
estudo, destaca-se a classificação heterogênea da amostra estudada, sendo as características
clínicas um fator limitante frequente nos estudos com crianças com paralisia cerebral.
Verificou-se que a maioria
das crianças com disfunções neurológicas apresentaram maior dificuldade para realizar
as atividades de subir e descer degrau, andar, correr e saltar, tanto no desempenho,
que ocorre com ajuda do meio ambiente, quanto na capacidade, em que não há ajuda
do meio ambiente ou de algum indivíduo.
Diante das dificuldades
evidenciadas, essas poderão ser amenizadas quando os fatores contextuais forem favorecidos,
ou seja, pessoais e ambientais. A avaliação minuciosa de um contexto participativo
é capaz de promover uma melhor qualidade de vida para as crianças com deficiências
e promover sua independência funcional. O ambiente que a criança vive e a estimulação
recebida, principalmente da família, são fundamentais para evolução do desenvolvimento
infantil.
A CIF-CJ possibilitou classificar
a avaliação da funcionalidade de crianças com disfunções neurológicas nas atividades,
participações, dando novos parâmetros para a prática clínica ao correlacionar com
os fatores contextuais de convivência, subsidiando elementos para o desenvolvimento
da criança com deficiência e a elaboração de políticas públicas mais efetivas.