RELATO DE
CASO
Treinamento
do assoalho pélvico na retenção urinária decorrente de encefalomielite aguda
disseminada
Pelvic
floor muscle training in neurogenic bladder due to acute disseminated
encephalomyelitis syndrome
Arianne
Tiemi Jyoboji Moraes, Ft.*, Marilena Infiesta Zulim, Ft. M.Sc.**, Dayane Aparecida Caetano Bottini, Ft.***, Minoru German Higa Júnior, Ft. M.Sc.****, Peterson Assis Vieira,
D.Sc.*****, Ana Beatriz Gomes de Souza Pegorare,
D.Sc.******
*Residente
do Programa de Residência Multiprofissional em Cuidados Continuados Integrados
(CCI) - Hospital São Julião e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
**Programa Residência Multiprofissional em Cuidados Continuados Integrados
(CCI) - Hospital São Julião e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
***Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande MS, ****Médico
infectologista do Hospital São Julião e do Hospital Maria Aparecida Pedrossian da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
*****Médico urologista do Hospital Maria Aparecida Pedrossian
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, ******Docente
do curso de fisioterapia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Recebido em 5 de
outubro de 2018; aceito em 24 de julho de 2019.
Correspondência: Ana Beatriz Gomes de
Souza Pegorare, Av. Costa e Silva, s/nº, Universitário, 79070-900 Campo Grande MS
Ana Beatriz Gomes de
Souza Pegorare: anabegs@hotmail.com
Arianne
Tiemi Jyoboji Moraes: arianne.fisioterapeuta@gmail.com
Marilena Infiesta Zulim:
zulimarilena@hotmail.com
Dayane Aparecida Caetano
Bottini: daay-caetano@hotmail.com;
Minoru German Higa Júnior:
minorugerman@hotmail.com
Peterson Vieira de
Assis: peterson.v.assis@gmail.com
Resumo
A dengue pode
desencadear manifestações neurológicas como a Síndrome de Encefalomielite Aguda
Disseminada (ADEM), de caráter inflamatório, desmielinizante,
que pode ter dentre as consequências déficits motores e sensitivos, neurite
ótica e disfunções vesicais, como a retenção urinária, tornando o indivíduo
dependente da realização do cateterismo vesical intermitente (CVI). Desta
forma, o objetivo deste estudo é descrever o tratamento fisioterapêutico de uma
paciente com retenção urinária, decorrente de Síndrome de ADEM pós-dengue.
Paciente do sexo feminino, 52 anos, internada em hospital de média complexidade
com diagnóstico de ADEM. Na avaliação inicial apresentava grau de força
muscular 3 de membros inferiores e 4 de membros superiores, 2 de musculatura do
assoalho pélvico (MAP) e retenção urinária, necessitando realizar CVI. Foram
realizados 32 atendimentos com duração de uma hora, incluindo o treinamento do
assoalho pélvico em diferentes posturas e eletroestimulação de superfície da
MAP com equipamento da marca Ibramed. Paciente
recebeu alta hospitalar com evidente melhora da força muscular global e sem
necessidade de CVI, apresentando micção voluntária e sem resíduo pós-miccional,
favorecendo a prevenção de agravos do trato urinário inferior e superior.
Palavras-chave: músculos do assoalho
pélvico, bexiga neurogênica, encefalomielite aguda disseminada, dengue.
Abstract
Dengue
can trigger neurological manifestations such as Acute Disseminated
Encephalomyelitis (ADEM), with inflammatory, demyelinating condition, which may
have, among the consequences, motor and sensory deficits, optic neuritis and
bladder dysfunctions, such as urinary retention, making the individual
dependent on intermittent bladder catheterization (IBC). Therefore, the
objective of this study was to describe the physiotherapeutic treatment of a
patient with urinary retention, due to ADEM syndrome after dengue. A
52-year-old female patient admitted to a hospital of medium complexity with a
diagnosis of ADEM. In the initial evaluation, she presented a degree 3 of
muscular strength in the lower limbs and 4 in the upper limbs, 2 in pelvic
floor musculature (PFM) and urinary retention, requiring IBC. We performed 32 one hour sessions, including pelvic floor muscle training in
different positions and surface electrostimulation of PFM with Ibramed brand equipment. Patient was discharged with
evident improvement of global muscle strength and without IBC, presenting
voluntary voiding and without post void residual, favoring the prevention of
lower and upper urinary tract injuries.
Key-words: pelvic floor
muscle, neurogenic bladder, acute disseminated encephalomyelitis, dengue.
A Síndrome de
Encefalomielite Aguda Disseminada (ADEM) é uma condição rara, inflamatória, desmielinizante que afeta predominantemente a substância
branca do cérebro e da medula espinhal [1]. O início da ADEM geralmente é
decorrente de infecções virais (como dengue, herpes simples, influenza A),
bacterianas ou imunização (sarampo, caxumba ou rubéola) entre outros [2]. É
tipicamente uma doença monofásica, mas em uma minoria dos casos os pacientes
experimentam um ou mais recorrências seguidas de remissão [3-6]. O tratamento
padrão ouro em casos de bexiga com hipocontratilidade
e retenção urinária é o cateterismo intermitente limpo (CIL) que consiste em
eliminar a urina por meio de sondagem uretral intermitente (4 a 6 vezes ao dia)
a fim de diminuir a pressão detrusora, eliminar resíduos, prevenir agravos como
infecção urinária, refluxo vésico-ureteral, hidronefrose e insuficiência renal [7]. A atuação da
fisioterapia em casos de bexiga neurogênica por hipocontratilidade
detrusora ainda não está bem estabelecida na literatura, necessitando de maior
evidência científica que possa embasar a prática clínica. Entretanto, a
fisioterapia pélvica tem se mostrado uma boa opção de tratamento com resultados
satisfatórios para sintomas urinários, através da terapia comportamental [8],
eletroestimulação [9] e cinesioterapia [10] em disfunções miccionais
idiopáticas e em pacientes com esclerose múltipla [11,12] e com hipocontratilidade por mielopatia
por HTLV-1 [13]. Todos esses recursos visam melhorar o armazenamento urinário a
baixas pressões, com esvaziamento adequado e estabelecer a continência para
preservação da função renal [14].
Além disso, a
fisioterapia pélvica é considerada uma técnica eficaz, segura e também
apresenta como benefício terapêutico a redução dos efeitos adversos, tem com
vantagem econômica o baixo custo [15]. Portanto, a relevância deste estudo está
na sua abrangência social e científica por buscar ações concretas que melhorem
a saúde e o bem-estar de pacientes com bexiga neurogênica por Síndrome de ADEM,
pois não foram encontrados estudos de tratamento fisioterapêutico para as
queixas urinárias secundárias à bexiga neurogênica para esta população.
Caso atípico de ADEM
com disfunção vesical. Em novembro de 2016, uma paciente do sexo feminino, 52
anos, casada, doméstica, hipertensa, foi admitida no Serviço de Reabilitação do
Hospital São Julião em Campo Grande/MS, com diagnóstico de Síndrome de Encefalomielite
Aguda Disseminada (ADEM) pós-dengue e retenção urinária aguda da bexiga.
A paciente estava
totalmente alerta e orientada e o exame neurológico não mostrou disfunção
motora ou sensitiva embora se queixasse de ligeiras parestesias distais e de
astenia. O reflexo do tônus muscular e do tendão profundo foi normal e o sinal
de Babinski estava bilateralmente ausente. Arreflexia de tendões radiais, clônus
em flexores plantares bilaterais, sensibilidades tátil e dolorosa preservadas
em MMSS e tronco, anestesia em dorso de 4° e 5° falanges distais de MMII.
Retenção da bexiga e intestino foram os sintomas mais relevantes. Exames
rotineiros de sangue e urina, hemoculturas foram todos normais.
O exame de ressonância
magnética (RM) de crânio mostrou lesões com substratos desmielinizantes
e isquêmicos esparsos pela substância branca periventricular,
subcortical e dos centros semi-ovais
como também no tronco cerebral e pedúnculos cerebelares. A RM de coluna
cervical apresentou discreta alteração de sinal da medula espinhal no nível de
C4/C5, de aspecto inespecífico, sugestivo de possíveis alterações
inflamatórias, lesões com substratos desmielinizantes
e edema.
A paciente foi tratada
com alta dose intravenosa metilprednisolona (1 g/dia
por 5 dias), amitriptilina, captropil, clonazepam, omeprazol sódico, sinvastatina, tamarine, dipirona, bromoprida, gabapentina, propafenona, enoxaparina sódica, diosmina,
ácido acetilsalicílico, azatioprina, prednisona, neozine e pregabalina e
Cateterismo Vesical Intermitente Limpo (CVIL).
Foram realizados
atendimentos ambulatoriais por um único fisioterapeuta e por equipe
multiprofissional composta por médico, nutricionista, terapeuta ocupacional e
enfermeiro (5 vezes por semana durante 1 hora de atendimento por 20 dias). Foi
realizada avaliação inicial do assoalho pélvico por meio do esquema Perfect (1/0/0/0), perineometria
realizada com equipamento Perina da marca Quark
produtos médicos (contração máxima 05 cm H2O), sensibilidade preservada dos dermátomos S2 a S4 avaliados por meio do monofilamento de Semmes Weinstem da marca Sorri (0,5 g) e reflexo cutâneo anal e
clitoridiano presentes. A paciente foi submetida ao treinamento do assoalho
pélvico com a utilização da eletroestimulação a fim de promover contrações
eletricamente induzidas. As contrações voluntárias foram realizadas em decúbito
dorsal com evolução gradual para a postura sentada, gato e em pé. A
eletroestimulação funcional de superfície foi aplicada nos dermátomos
de S2 a S4 com equipamento Neurodyn geração 2000 da Ibramed e seguintes parâmetros: FES 50 Hz (tempo on off 6 segundos, 250 µS, 20 a 60 mA
por 15 minutos) e TENS 100 Hz, (250 µS, 20 a 60 mA
por 15 minutos). Foi realizado o tratamento comportamental para promover a
reeducação miccional da paciente. Terapia Comportamental compreende orientações
para modificar hábitos inadequados, alimentares e de estilo de vida (ingesta
hídrica, intervalo miccional e evacuatório). Foi aplicado um diário miccional e
posteriormente instituído o calendário miccional programado para reeducar os
intervalos miccionais e reduzir a frequência urinária. Associado ao treino
vesical, restrições alimentares para diminuir os sintomas irritativos da bexiga
e de constipação [12].
No sétimo dia de
treinamento, a paciente relatou ter apresentado desejo miccional e micção
voluntária, embora ainda com urina residual de 100 ml, verificada através do
CVLI. No 10º dia a paciente apresentou valor menor que 10 ml de resíduo
pós-miccional no CVLI. No 15º dia a paciente teve alta médica do cateterismo
intermitente limpo, por não apresentar resíduo pós-miccional. Neste momento o
diário miccional apresentava micção com volume médio de 300 ml, volume de 24h
de 2400 ml, frequência de 8 episódios de micção voluntária e sem resíduo
pós-miccional. Desta forma a fisioterapia se manteve até o 32o dia,
quando a paciente recebeu alta hospitalar. A paciente foi orientada a manter o
tratamento comportamental no domicílio por dois meses.
Medicações como
amitriptilina [16], clonazepam [17], neozine [18] e pregabalina
[19,20] podem apresentar como efeitos adversos aumento da retenção urinária.
Contudo, a micção voluntária ocorreu sem suspensão ou acréscimo de medicação. A
paciente recebeu alta com força muscular grau 4 de MMII e 5 MMSS, e grau de
força 4 da MAP no esquema PERFECT, endurance de 08
segundos, repetições rápidas 10`, repetições lentas 10 contrações, relaxamento
voluntário da MAP, sensibilidade dos dermátomos de S2
a S4 preservados, reflexos presentes e deambulando com dispositivo de apoio
(bengala de 4 pontos).
O aceite para a
participação voluntária da paciente foi solicitado e concedido, após a leitura
e assinatura de um termo de consentimento livre e esclarecido atendendo-se a
Resolução CNS 466/2012. O relato de caso foi aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da UFMS sob protocolo número 1.671.484 no dia 10 de agosto de 2016.
A Síndrome de ADEM
decorrente da infecção de dengue é rara e pode desencadear bexiga neurogênica
com hipocontratilidade destrusora
e retenção urinária, aumento do volume da bexiga, podendo ocorrer refluxo da
urina para os ureteres e consequente lesão ao trato urinário inferior como hidronefrose e insuficiência renal [21]. A realização da
avaliação urodinâmica e eletromiografia do assoalho
pélvico não é obrigatória, muito embora seja recomendável em casos como doenças
neurológicas [22]. O cateterismo vesical intermitente limpo é o tratamento
padrão ouro em casos de bexiga com hipocontratilidade
e retenção urinária, pois elimina resíduos miccionais, diminui a pressão
detrusora e previne tais agravos [23-25]. Entretanto o nosso grupo associa o
CVIL ao treinamento do assoalho pélvico e tratamento comportamental para
ampliar os benefícios deste.
O treinamento do
assoalho pélvico de pacientes com bexiga neurogênica é um recurso da
fisioterapia recente, que tem se mostrado cada vez mais eficaz em pacientes
neurológicos, principalmente em crianças [26], pois promove melhor percepção da
MAP, sob o estado de contração e relaxamento dos músculos esfincterianos,
propiciando maior controle vesical [27]. Entretanto não é feito de rotina em
muitos serviços de saúde pelo fato de que o profissional precisa ter expertise
na área [28].
O tratamento precoce e
adequado pode promover a micção voluntária precocemente. Além de reduzir os
índices de infecções urinárias e preservar estruturas do trato urinário
superior [28]. No entanto, existem poucos estudos a respeito do treinamento do
assoalho pélvico na bexiga neurogênica com hipocontratilidade
e retenção urinária, sendo imprescindível o relato de casos de sucesso da
reabilitação. Neste sentido, cabe destacar a experiencia prévia deste grupo de
pesquisa com bexiga neurogênica em pacientes com esclerose múltipla [11,12] e
também um estudo recente que demonstrou eficácia do treinamento do assoalho
pélvico associado a terapia comportamental em pacientes com hipocontratilidade
detrusora por mielopatia por vírus HTLV-1 [13].
É importante observar
também que a integridade da função urogenital da paciente demonstra
características motoras e sensitivas sem alterações. Evidenciando que, nas
características motoras, os sintomas urinários não estavam relacionados com
debilidades físicas da pelve e sim com a hipocontratilidade
detrusora como foi observado na avaliação urodinâmica,
e que, nas características sensitivas, os dermátomos
estavam normais demonstrando vias desbloqueadas para receberem os estímulos do
protocolo de tratamento.
Acredita-se que com o
decorrer do treinamento do assoalho pélvico, o paciente se torne apto em
discernir conscientemente o estado de contração ou relaxamento esfincteriano.
Desta forma, ele poderá utilizar esse conhecimento durante o ato de micção,
relaxando voluntariamente a musculatura do assoalho pélvico e facilitando a
passagem da urina, ainda que sob baixas pressões detrusoras, na fase de
esvaziamento.
O treinamento do
assoalho pélvico associado à terapia comportamental, quando iniciados de forma
precoce, em casos de bexiga hipocontrátil e retenção
urinária são recursos inovadores e eficazes quando complementam o cateterismo
vesical intermitente limpo, pois apresentam baixo custo, ausência de efeitos
colaterais e podem aperfeiçoar o esvaziamento vesical. Entretanto, há
necessidade de realização de estudos randomizados e controlados a fim de
aumentar o nível de evidência científica destas modalidades de tratamento.