Fisioter Bras 2021;22(3):306-317

doi: 10.33233/fb.v22i3.3108

ARTIGO ORIGINAL

Estudo comparativo dos valores de ângulo do retropé entre corredoras com sintomas no joelho e assintomáticas

Comparative study of rearfoot angle values between runners with and without knee symptoms

 

Luzia Carla da Silva*, Natália Cristina de Oliveira*, Gisélia Gonçalves de Castro, D.Sc.**, Kelly Christina de Faria Nunes***, Edson Rodrigues Júnior, M.Sc.****

 

*Graduada em Fisioterapia pelo Centro Universitário do Cerrado Patrocínio, Minas Gerais, **Docente Centro Universitário do Cerrado Patrocínio, Minas Gerais, ***Doutoranda em Engenharia Biomédica, Docente do Centro Universitário Centro Universitário de Patos de Minas, Minas Gerais, ****Docente Centro Universitário do Cerrado Patrocínio, Minas Gerais

 

Recebido em 28 de julho de 2020; aceito em 24 de junho de 2021.

Correspondência: Gisélia Gonçalves de Castro, Av. Líria Terezinha Lassi Capuano, 466 Chácara das Rosas 38747-792 Patrocínio MG

 

Gisélia Gonçalves de Castro: giseliagcastro@gmail.com

Luzia Carla da Silva: luzialinda2010@hotmail.com

Natália Cristina de Oliveira: naty-criss@hotmail.com

Kelly Christina de faria Nunes: kellynhafisiofaria@gmail.com

Edson Rodrigues Júnior: edsonjunior@unicerp.edu.br

 

Resumo

Introdução: As características morfológicas do pé sugerem desalinhamento dos membros inferiores, tornando praticantes de corrida mais susceptíveis a dor e lesões. Objetivo: Analisar a prevalência de dor e comparar as características morfológicas dos pés e alinhamento do retropé entre corredoras com sintomas no joelho e assintomáticas. Métodos: Estudo caso-controle, exploratório com abordagem quantitativa, com 31 mulheres corredoras. A presença de dor e lesões foi avaliada por meio de um questionário padronizado. A morfologia dos pés foi realizada através da inspeção, com registros fotográficos no plano posterior e o arco longitudinal do pé foi analisado através de podometria de pressão. Os dados foram analisados pelo SPSS versão 18.0. Na comparação das médias das variáveis dos ângulos de retropé foi utilizado o teste t Student para amostras independentes, considerando o p < 0,05. Resultados: Observou-se que 86% das mulheres relataram sintoma predominante no joelho (64,51%). Na análise das características morfológicas dos pés, encontrou-se predomínio do tipo rebaixado e assimetria dos retropés no grupo sintomático. Conclusão: Apenas a assimetria entre os membros e as caraterísticas morfológicas do pé apresentam associação com a presença de dor no joelho.

Palavras-chave: corrida; dor; joelho pé; tornozelo.

 

Abstract

Introduction: The morphological characteristics of foot suggests lower limbs misalignment, making street runners more susceptible to pain. Objective: To compare the morphological characteristics of the foot and rearfoot alignment between runners with or without knee symptoms, as well as to analyze the prevalence of pain. Methods: Case-control, exploratory and quantitative approach study, with 30 female runners. The presence of pain and lesions was evaluated by a standardized questionnaire. Foot morphology was analyzed through inspection, with photographic records in the posterior plane, and the longitudinal arch of the foot was measured by pressure podometry. The data were analyzed by SPSS 18.0. In the comparison of the means of the variables of the hindfoot angles, the Student t test was used for independent samples, considering p < 0.05. Results: We observed that 86% of the women reported a symptom, predominant in the knee (64.51%). In the analysis of the foot morphological characteristics, we found a predominance of the recessed type and asymmetry of the symptomatic group backs. Conclusion: Asymmetry between the limbs and morphological features of the foot are associated with knee pain.

Keywords: ankle; foot; knee; pain; runner.

 

Introdução

 

Nos últimos anos, a corrida tem-se tornado uma das modalidades de exercício físico com crescente número de participantes, tanto pela facilidade em sua prática, como pelos diversos benefícios à saúde e pelo baixo custo de acessibilidade [1]. Por essas e outras razões, observa-se um aumento significante entre corredores, seja no âmbito competitivo ou recreativo [2]. Contudo os praticantes de corrida estão susceptíveis a um elevado índice de lesões físicas, acometendo em maior proporção as articulações do joelho e tornozelo [3].

As alterações biomecânicas do membro inferior associada a grande força de reação do solo e ao aumento da quantidade de contatos, durante a fase de apoio na corrida, podem ocasionar aumento do número de lesões, em decorrência de uma grande concentração de carga no membro [2]. Além disso, forças de impacto repetitivas sobre o pé somadas a alterações na estrutura anatômica do pé e o tipo de pisada contribuem de forma significativa para incidência de lesões em corredores [4].

Entre as características de alinhamento do membro, acredita-se que a assimetria de comprimento de membros inferiores [5], a altura do arco longitudinal medial [6] e o alinhamento do retropé [7] possam ser fatores associados com o desenvolvimento de lesões musculoesqueléticas em corredores. Outras possíveis causas como o ângulo Q aumentado, desigualdade estrutural média de membros inferiores, pés varos, valgos ou planos, a distância percorrida, frequência de treino semanal, alterações biomecânicas, tipo de calçados e o solo de treinamento são fatores que favorecem o desenvolvimento de lesões em corredores [8,9].

Apesar de as evidências apontarem crescente número de lesões, entre corredores, ainda existe certa divergência sobre os fatores que podem influenciar a ocorrência dessas manifestações [10]. Neste sentido, destaca-se a necessidade de melhor investigar a ocorrência de lesões e/ou dor em corredoras, assim como avaliar se estas estão associadas ao tipo de pé, em particular o ângulo do retropé.

Acredita-se que os resultados alcançados nessa pesquisa contribuirão para ajudar profissionais da área a abordar medidas de prevenção e tratamento mais seguro e eficaz, através de resultados de pesquisas realizadas sobre as principais alterações de alinhamento do retropé e da morfologia do pé e quais as lesões e/ou sintomas mais frequentes em corredoras.

Partindo da hipótese da inter-relação biomecânica entre o complexo do pé e joelho e do elevado índice de lesões relacionadas à corrida advindas de alterações no alinhamento e morfologia do pé, o objetivo do presente estudo foi analisar a prevalência de dor decorrente da corrida e comparar os valores de ângulo do retropé entre corredoras com sintomas no joelho e assintomáticas.

 

Material e métodos

 

Trata-se um estudo caso-controle, exploratório, com abordagem quantitativa realizado em um ambulatório de uma Clínica Escola Universitária de uma cidade do interior de Minas Gerais.

A amostra foi composta por 31 mulheres corredoras que correm no mínimo 10 km/semana, tendo como critérios de inclusão mulheres acima de 18 anos adeptas a prática de corrida, sendo divididas em grupo sintomáticas (74%) e grupo assintomáticas (25%). Os critérios para exclusão foram as participantes que não aceitaram participar da coleta.

Foram adotados três instrumentos para realização da coleta de dados. O primeiro foi um questionário semiestruturado e padronizado a fim de investigar a presença de dor e lesões.

O segundo instrumento utilizado foi à fotogrametria. Tratou-se de registros fotográficos do corpo realizados para avaliar o alinhamento do retropé, por meio de uma foto digital (vista posterior) com as voluntárias posicionadas sobre uma mesa de madeira com altura de 79,8 cm, largura de 69,7 cm e comprimento de 50 cm para melhor registro das imagens, sendo demarcados com paquímetro na pele pontos anatômicos pré-definidos e em seguida colocadas esferas de isopor de 16mm de diâmetro (preparadas previamente com fita dupla face) identificadas nas seguintes regiões: centro posterior do calcâneo, um segundo ponto superior ao calcâneo e o terceiro no centro do terço inferior da perna.

O arco longitudinal do pé (normal, cavo e plano) foi diagnosticado através de podometria de pressão, sendo o terceiro instrumento. As voluntárias ficaram em apoio plantar com descarga bilateral, pés afastados, braços ao longo do corpo e olhando para um ponto fixo na parede na altura dos olhos. Em uma folha branca foram registradas as imagens plantares coletadas após imersão em tinta própria para pele.

Para análise da morfologia e função do pé, as fotografias foram transferidas para o computador utilizando uma interface USB e analisadas no Software de avaliação postural – SAPO®. Para o cálculo do alinhamento do retropé foi traçada uma linha no primeiro ponto (centro posterior do calcâneo) até o segundo (superior ao calcâneo), posteriormente, uma segunda linha com origem no terceiro ponto (centro do terço inferior da perna). A inserção dos prolongamentos de ambas as linhas resultou no ângulo do retropé (FIGURA 1).

 

 

Fonte: Dados do pesquisador

Figura 1Posicionamento dos marcadores para o cálculo do ângulo do retropé

 

Para análise das impressões plantares foi utilizado o índice de Chippaux-Smirak (ICS), que é o resultado da divisão entre a menor largura do médio pé e a maior largura do antepé. O arco longitudinal medial (ALM) é classificado como elevado (ICS = 0%), morfologicamente normal (ICS entre 0,1 e 29,9%), intermediário (entre 30,0 e 39,9%), rebaixado (entre 40,0 e 44,9%) e pé plano (a partir de 45%) [11].

A análise dos dados foi construída por meio de uma planilha eletrônica, através do programa Excel®. E, em seguida, os dados foram transportados para o programa estatístico Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 18.0 para análise estatística. Foi realizada análise descritiva por meio de medidas de tendência central (média) e de variabilidade (desvio padrão) para as variáveis numéricas e distribuição de frequência para as nominais. Como teste de normalidade foi utilizado o teste de Shapiro-Wilk.

Para a comparação das médias das variáveis dos ângulos de retropé foi utilizado o teste t Student para amostras independentes, considerando o p < 0,05.

O presente estudo foi realizado após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa de protocolo nº 20171450FIS005, em consonância com a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde que estabelece diretrizes para a pesquisa envolvendo seres humanos.

 

Resultados

 

Participaram do estudo 31 mulheres corredoras com idade 40,10 ± 10,48 anos, divididas em 2 grupos, 23 (74%) com dor no membro inferior denominado aqui por grupo sintomático (GS) e 8 (25%) sem dor denominado grupo controle (GC). Estas apresentaram IMC normal com média de 24,78 ± 3,72 kg/m².

Ao analisar a prevalência de lesões e dor decorrentes da corrida, observou-se que 86% das mulheres relataram sentir dor, apresentando maior predominância no joelho (64,51%) e que 32,3% já sofreram de lesão prévia, das quais 19,4% apresentam lesão no membro inferior (Tabela I).

 

Tabela I - Distribuição de frequência (%) a presença de lesões decorrentes da corrida das mulheres corredoras. Patrocínio/MG, 2017

 

Fonte: Dados da pesquisa

 

Ao se avaliar às características morfológicas dos pés, independentemente da lateralidade, o predomínio foi o tipo intermediário, exceto nos pés direito do grupo sintomático que apresentou predomínio do tipo rebaixado, o que pode ser visto nas porcentagens do tipo de pés predominantes na tabela abaixo (Tabela II).

 

Tabela II - Distribuição de frequência (%) quanto às características dos pés das corredoras com sintomas de dor e as assintomáticas. Patrocínio/MG 2017

 

Fonte: Dados da pesquisa

 

Para análise das assimetrias do alinhamento dos membros inferiores dos grupos pesquisados, foi realizada a comparação das médias dos valores de ângulos do retropé separadamente do grupo sintomático e do grupo assintomático. Assim, pode-se observar que o valor da média do ângulo do grupo sintomático apresentou uma assimetria entre os retropés avaliados direito e esquerdo, (p = 0,01), o que não ocorreu no grupo assintomático (p = 0,48) (Tabela III).

 

Tabela IIIValores médios, desvio padrão e P do ângulo retropé direito e esquerdo das corredoras sintomáticas e assintomáticas. Patrocínio/MG 2017

 

Fonte: Dados da pesquisa; *p < 0,05 = diferença estatística significante

 

Ao comparar os valores de ângulo do retropé dos indivíduos com sintomas de dor no joelho e os indivíduos que não apresentavam dor nesta articulação, não foi encontrada nenhuma diferença estatística (p = 0,70), no qual obteve-se uma média de 3,65 ± 4,99 nos indivíduos com dor no joelho e 4,22 ± 4,17 nos que não apresentavam dor nesta articulação (Tabela IV).

 

Tabela IVValores médios do ângulo do retropé das corredoras com sintomas no joelho e sem sintomatologia nesta articulação. Patrocínio/MG 2017

 

Fonte: Dados da pesquisa

 

Discussão

 

Neste estudo foi realizada uma comparação dos valores de ângulo do retropé entre corredoras com sintomas de dor no joelho e as assintomáticas, bem como uma análise da prevalência de dor decorrente da corrida em mulheres. Os resultados mostram aspectos relevantes com relação às variáveis estudadas entre os grupos.

Quando analisada a prevalência de lesão e/ou dor, foi observado que a maioria das corredoras investigadas no presente estudo apresentaram dor no joelho (Tabela I). Neste esporte, o predomínio de lesões nos membros inferiores, em particular no joelho, é normalmente alto [3]. Uma recente pesquisa mostrou que a articulação do joelho é a mais sobrecarregada durante a prática da corrida [12], o que levaria a maior sintomatologia dolorosa nesta articulação, já que durante a sustentação de peso a compressão patelofemoral e a tensão no quadríceps aumenta com a flexão do joelho [13]. Os dados do presente estudo corroboram outros estudos revisados por Junior et al. [14] Rangel e Farias [15], que também verificaram uma maior prevalência de lesões na região dos joelhos.

Há evidências na literatura sugerindo que as características morfológicas do pé influenciam na propagação da força de reação do solo para o membro inferior, assim como interfere no eixo de movimento das suas respectivas articulações e consequentemente serve como fundamento para investigar a associação do arco longitudinal medial do pé e a incidência de lesões de esporte nos membros inferiores [16].

Os dados encontrados na pesquisa mostram que a largura do arco plantar possa ser um dos fatores relacionados à presença ou ausência de sintomas de dor na população estudada, uma vez que os pés direito do grupo sintomático apresentaram arcos de predomínio rebaixado.

Estudo observacional prospectivo realizado com indivíduos com síndrome da dor patelofemoral encontrou maior incidência de retropé varo na população em questão, sugerindo uma associação significativa entre retropé varo e a síndrome da dor patelofemoral [17]. Existem evidências de uma maior incidência desta síndrome em mulheres atletas [18].

Ao comparar os valores de ângulo do retropé entre os grupos, foi observada diferença estatisticamente significante na comparação entre os pés direito. Entretanto a pesquisa mostrou que ao se comparar os valores médios do retropé esquerdo não foi observada diferença entre o grupo das sintomáticas e controle. No entanto, quando se comparou a assimetria entre dimidios nos grupos pesquisados, apenas o grupo sintomático apresentou tal diferença estatística, isto mostra a presença de assimetria entre os retropés do grupo com sintomas no joelho.

Estudo prospectivo de Pereira e Sacco [5] com corredores de média e longa distância demonstra que a desigualdade estrutural média de membros inferiores leva a adoção de compensações dinâmicas do membro e consequente sobrecargas ao sistema musculoesquelético. Isso não foi encontrado por Livingston e Mandigo [19] ao concluírem que assimetria dos ângulos do retropé não seja um fator indicativo para sintomas de dor anterior no joelho. Embora resultados conflitantes sejam encontrados entre os estudos, pode ser observado que a diferença no alinhamento do retropé do grupo sintomático seja um dos fatores de risco para o desenvolvimento de dor no joelho em corredoras. Cabe salientar que o trabalho de Livingston e Mandigo [19] comparou os ângulos do retropé com goniômetro, já no presente estudo este ângulo foi mensurado através do software SAPO®. Este fato pode ter influenciado as diferenças de resultados entre os trabalhos.

Estudo recente sobre o alinhamento do retropé em indivíduos com e sem síndrome femoropatelar mostrou resultados semelhantes ao presente estudo. O ângulo do retropé estático foi analisado e não foram encontradas diferenças entre os grupos [7]. Outro estudo realizado pelo mesmo autor difere do presente estudo ao concluir que as alterações no alinhamento estático e dinâmico do retropé possa contribuir para a dor patelofemoral. Contudo apesar da discordância encontrada entre os estudos, a avaliação do alinhamento dinâmico do retropé justifica este fato, uma vez que a dor patelofemoral se apresenta principalmente em atividades dinâmicas [20].

O presente estudo apresenta como limitações o fato de ter optado por avaliar apenas ao alinhamento estático do retropé na população em questão, o que pode ter contribuído com os resultados conflitantes obtidos. Outra limitação que merece atenção foi o fato de não ter sido possível diferenciar os resultados de causa e efeito e, consequentemente, conclusões sobre fatores de risco não puderam ser afirmadas.

Apesar de não ter sido encontrada diferença entre o alinhamento estático do retropé em corredoras com sintomas de dor no joelho e as assintomáticas, o presente estudo pretende contribuir para que futuras pesquisas com essa mesma temática sejam realizadas, a fim de elucidar a questão da associação entre as diferenças de alinhamento do retropé com o risco de lesões, e com isso fortificar os achados.

 

Conclusão

 

Os resultados apresentados no presente estudo mostram que não houve diferença entre o ângulo do retropé em ambos os tornozelos quando comparados entre os dois grupos pesquisados, porém observou-se uma diferença estatística entre o ângulo do retropé, em ambos os dimídios, no grupo sintomático, caracterizando uma assimetria neste grupo.

Diante dos dados obtidos neste estudo, e acrescidos dos relatos da literatura, não se pode concluir que o alinhamento postural estático do retropé apresente associação com a presença de dor no joelho, apenas de que a assimetria entre os membros e as caraterísticas morfológicas do pé pode ter valor nesta associação. Novas pesquisas que investiguem o tema, e em condições dinâmicas, podem ser importantes na elucidação do problema levantado.

 

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