Fisioter Bras 2021;22(1):61-71

doi: 10.33233/fb.v22i1.4037

ARTIGO ORIGINAL

Avaliação da função sexual e miccional de homens transexuais       

Evaluation of sexual and urinary function of transexual men

 

Welliton Werveson Pereira de Souza, Ft.*, Rafaela Ribeiro de Miranda, Ft.*, Natália de Souza Duarte, Ft.**, Cibele Nazaré Câmara Rodrigues, D.Sc.***, Gustavo Fernando Sutter Latorre, Ft., M.Sc.****, Erica Feio Carneiro Nunes, Ft., D.Sc.*****

 

*Universidade do Estado do Pará (UEPA), Belém/PA, **Residente em Estratégia Saúde da Família, Universidade do Estado do Pará (UEPA), Belém/PA, ***Professora da Universidade Federal do Pará, Belém/PA, ****Professor da Faculdade Inspirar, Florianópolis/SC, *****Departamento de Ciências do Movimento Humano, Universidade do Estado do Pará, Belém/PA

 

Recebido em 18 de abril de 2020; aceito em 15 de janeiro de 2021.

Correspondência: Erica Feio Carneiro Nunes, Tv. Perebebuí, 2623 Marc 66087-662 Belém PA, E-mail: erica@perineo.net

 

Welliton Werveson Pereira de Souza: welliton123souza8@gmail.com

Rafaela Ribeiro de Miranda: fisiorfmrd@gmail.com

Natália de Souza Duarte: nataliaduartefisio@outlook.com

Cibele Nazaré Câmara Rodrigues: cibelecamara@hotmail.com

Gustavo Fernando Sutter Latorre: gustavo@perineo.net

Erica Feio Carneiro Nunes: erica@perineo.net

 

Resumo

A transexualidade trata da mudança dos indivíduos de seu sexo masculino ou feminino identificado no nascimento para viver em sociedade sob sua alternativa de identidade de gênero. Visando essa adequação são realizados procedimentos transexualizadores, no entanto, pouco se conhece sobre a função sexual e urinária após esses processos. Neste sentido, este estudo propôs avaliar as funções sexuais e miccionais de homens transexuais submetidos à terapia hormonal. Participaram do estudo 13 homens transexuais e foram utilizados os questionários: Escala de Desconforto Sexual Feminino (FSDS-R), Índice de função sexual feminina (FSFI), Teste de Três Perguntas sobre Incontinência (3IQ), Protection, Amount, Frequency, Adjustment, Bodyimage (PRAFAB). Foi utilizado o software Excel para entrada dos dados, confecção das tabelas e análise estatística descritiva. No FSDS-R, 10 (76,92%) dos homens trans apresentam-se desconfortáveis sexualmente. A pontuação média da FSFI foi de 14,8 pontos, sugerindo disfunção sexual. No teste de 3IQ, 25% relataram perder urinária, destes, 75% apresentam urgência miccional e 25% apresentam Incontinência Urinária (IU) por esforço. No score total do PRAFAB, 50% apresentaram IU leve e 50% obtiveram IU moderada. Portanto, a avaliação foi positiva para tendência a disfunções sexuais nesta população. No que concerne a função miccional, a minoria dos homens trans manifestaram alterações.

Palavras-chave: transexuais; sexualidade; incontinência urinária.

 

Abstract

Transsexuality is about changing individuals of their male or female gender identified at birth to live in society under their alternative gender identity. Aiming at this adaptation, transsexualizing procedures are performed, however, little is known about the sexual and urinary function after these processes. In this sense, this study proposed to evaluate the sexual and urinary functions of transsexual men submitted to hormonal therapy. Thirteen transsexual men participated in the study and the questionnaires were used: Female Sexual Discomfort Scale (FSDS-R), Female Sexual Function Index (FSFI), Three Questions Incontinence Test (3IQ), Protection, Amount, Frequency, Adjustment, Body image (PRAFAB). Excel software was used for data entry, preparation of tables and descriptive statistical analysis. In FSDS-R, 10 (76.92%) of trans men are sexually uncomfortable. The average FSFI score was 14.8 points, suggesting sexual dysfunction. In the 3IQ test, 25% reported losing urine, of these, 75% had urinary urgency and 25% had urinary incontinence (UI) on exertion. In the total PRAFAB score, 50% had a mild UI and 50% had a moderate UI. Therefore, the assessment was positive for a tendency towards sexual dysfunction in this population. Regarding the voiding function, the minority of trans men showed changes.

Keywords: transgender persons; sexuality; urinary incontinence.

 

Introdução

 

A transexualidade trata da mudança dos indivíduos de seu sexo masculino ou feminino identificado no nascimento para viver em sociedade sob sua alternativa de identidade de gênero [1]. Essa alternativa leva a pessoa a alterar seu corpo para (re)estabelecer a harmonia entre o gênero e o corpo [2].

O processo transexualizador envolve uma preparação de anos, que necessita, primeiramente, de um laudo psiquiátrico com o referido diagnóstico de disforia de gênero para então iniciar as consultas regulares com uma equipe multiprofissional, a fim de que comecem as modificações corporais, que podem incluir a hormonioterapia feminilizante ou masculinizante e as cirurgias de resignação de sexo [2].

Tratando-se de homens transexuais, o objetivo do tratamento da masculinização endócrina é estimular caminhos androgenodependentes, aumentando a testosterona e suprimindo os níveis de estrogênio [3]. Alguns meses após o início da terapia com testosterona, os homens trans começam a notar muitos efeitos desejados, incluindo aumento dos pelos faciais e corporais, aumento da massa magra e força, diminuição da massa gorda, voz mais profunda, aumento do desejo sexual, cessação da menstruação, aumento do clitóris e reduções na disforia de gênero, estresse percebido, ansiedade e depressão [4].

Estudos realizados indicam que a testosterona desempenha um papel importante na função sexual e no humor, melhorando a atividade sexual, interesse e desejo de homens hipogonádicos, no entanto, também pode causar efeitos prejudiciais quando administrado na terapia hormonal [5]. Por outro lado, poucos dados foram publicados com esse foco a respeito de transexuais e essa questão permanece incerta [6]. Da mesma forma, pouco se sabe sobre a função urinária de homens transexuais durante a transição de gênero.

Considerando este cenário, este estudo propõe avaliar as funções sexuais e miccionais de homens transexuais submetidos à terapia hormonal em uma cidade na região Norte do Brasil.

 

Material e métodos

 

Trata-se de um estudo do tipo observacional transversal, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade do Estado do Pará com o parecer 3.366.922 (CAAE: 00668818.0.0000.5174) realizado entre os meses de junho a outubro de 2019.

Foram incluídos no estudo homens transexuais maiores de 18 anos, que aceitassem participar da pesquisa através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que estivessem sendo submetidos a hormonioterapia, independente da realização de cirurgias transexualizadoras como mastectomia de masculinização ou histerectomia total. Foram excluídos aqueles que estivessem com alguma disfunção cognitiva que impossibilitasse a compreensão dos procedimentos avaliativos.

A amostragem foi realizada por conveniência. Foram disponibilizadas em redes sociais a chamada para o estudo com o contato dos pesquisadores. Vinte e seis homens transexuais estabeleceram contato sendo, então, esclarecidos quanto aos objetivos do estudo. Para os que aceitaram participar e foram elegíveis para o estudo, foi disponibilizado um link para preenchimento dos seguintes questionários inseridos na plataforma Google Forms: Escala de Desconforto Sexual Feminina (FSDS-R); Índice de Função Sexual Feminina (FSFI); Três Perguntas sobre Incontinência (3IQ) e Protection, Amount, Frequency, Adjustment, Bodyimage (PRAFAB). Os questionários utilizados para avaliar função sexual foram femininos, visto que não foram encontrados na literatura questionários específicos para homens trans, e os estudados na pesquisa não realizaram cirurgia de resignação sexual, ou seja, ainda convivem com o órgão sexual feminino.

O FSDS-R avalia o desconforto sexual. É composto por 13 questões. Os participantes avaliam com que frequência tiveram sentimentos sexuais incômodos ou angustiantes nos últimos 30 dias em uma escala de cinco pontos, que somados resultam em um escore final, no qual pontuações mais altas indicam maior desconforto sexual (ponto de corte=15,36) [7].

Para avaliação da função sexual, foi utilizado o FSFI que é constituído por 19 questões distribuídas em seis domínios da resposta sexual: desejo, excitação, lubrificação, orgasmo, satisfação e dor/desconforto. A pontuação de cada questão varia de 0 a 5. Para se obter a pontuação do domínio é necessária a soma de questões correspondentes a cada um, multiplicadas pelo fator de correção (Quadro1). Por meio da soma dos escores dos domínios, obtém-se o escore total, que apresenta valores mínimos de 2 e máximo de 36, sendo os maiores valores associados a uma melhor função sexual. É definido como ponto de corte um escore total de 26, sendo que escores mais baixos ou iguais a esse ponto indicam sugestiva disfunção sexual [8].

 

Quadro 1Escores de acordo com o domínio na FSFI

 

 

O 3IQ é um teste simples, rápido e não invasivo, com aceitável precisão na classificação da incontinência de urgência e esforço e foi utilizado para distinguir o tipo de Incontinência Urinária (IU) presente no paciente. Inclui três perguntas e pode ser respondido em até 30 segundos [9].

O PRAFAB foi utilizado para identificação de severidade da perda urinária, a quantidade de urina perdida (volume), a frequência de perda bem como quanto ao impacto na vida do paciente [10], composto por cinco domínios, cada domínio tem 4 opções de respostas que pontuam de 1 a 4 que somados geram um escore final para classificação da severidade, quanto maior a pontuação pior a severidade da IU [11].

Foi utilizado o software Excel para entrada dos dados, confecção das tabelas e análise estatística descritiva.

 

Resultados

 

Ao total, 26 pessoas se interessaram pelo estudo. Destes, 13 se encaixaram nos critérios de elegibilidade, sendo deles os resultados apresentados a seguir.

As idades dos homens trans pesquisados variou entre 19 e 33 anos (média = 26,23 ± 4,02) e todos se denominaram solteiros.

A média e desvio padrão do escore total obtido pelo FSDS-R foi de 13 ± 9,7, revelando que os participantes do estudo se sentem desconfortáveis sexualmente. Desta forma, 10 (76,92%) dos homens trans pesquisados apresentaram risco para disfunções sexuais. Destes, 50% se sentem incomodados com sua vida sexual e 18,8% sentem-se frustrados e preocupados com o sexo.

O escore mínimo, máximo, a média/desvio padrão por domínio e total do FSFI estão descritos na tabela I. Nota-se que a pontuação média da FSFI foi de 14,81 ± 9,01 (mínimo=. 2,0 e máximo= 35,7). Dos participantes do estudo, 6,3% obtiveram escore maior que 26, sugerindo a presença de disfunção sexual em 93,7% da amostra. O pior domínio encontrado foi o de satisfação.

 

Tabela I - Escore por domínio e total do FSFI dos participantes (n=13)

 

 

Quanto à função urinária, no teste de 3IQ, 31% relataram perda urinária, destes, 75% alegaram a perda durante episódios de urgência miccional e 25% disseram perder urina por esforço (Tabela II). Ressalta-se que somente responderam a segunda e terceira questões do teste aqueles que alegaram perder urina na primeira pergunta, desta forma, 4 participantes concluíram o teste.

 

Tabela II - Teste de 3 perguntas sobre incontinência urinária – 3IQ (n = 13)

 

 

O PRAFAB foi aplicado aos 4 participantes que concluíram o 3IQ. Foi observado que toda a amostra afirmou não utilizar protetores, 75% alegaram perder urina em pouca quantidade (gotas ou menos) e todos relatam perder numa frequência de uma vez por semana ou menos. Em relação ao domínio “Adaptações” do questionário, todos os participantes alegam não se sentirem incomodados com a IU. Os resultados dos scores “Perda”, “Impacto” e score total estão descritos na tabela III.

 

Tabela III - Resultados por domínio e total de acordo com o questionário PRAFAB (n = 4)

 

 

Discussão

 

Sabe-se que o processo transexualizador é acompanhado de mudanças endócrinas e anatômicas. Há diversos efeitos e mudanças que podem ser percebidas por pessoas que fazem uso da terapia hormonal [12]. Neste sentido, este estudo objetivou avaliar as funções sexuais e miccionais de homens transexuais submetidos à terapia hormonal.

Em relação à função sexual, a maioria da amostra relata incômodo com a vida sexual. Analisando o FSDS-R, o escore obtido com a escala demonstra que a maioria dos participantes apresenta desconforto sexual, levando a risco para disfunções. Ressaltando que todos que obtiveram escores baixos no FSDS-R também apresentaram sugestiva disfunção sexual de acordo com o FSFI.

Ainda de acordo com o FSFI, a maioria apresentou score compatível com disfunções sexuais. Corroborando esses resultados, um estudo realizado com 518 pessoas transexuais, dos quais 211 eram homens trans, mostrou que 54% da população masculina apresentavam disfunções sexuais como: dificuldade de alcançar o orgasmo, dor durante ato sexual e diminuição do interesse por sexo [13]. Esses achados também foram identificados na amostra, e reforça-se a hipótese de que a diminuição da libido, a dor durante ato sexual, assim como a diminuição da lubrificação observada neste estudo, pode ter uma ligação importante com o desconforto sexual, o que leva a insatisfação e estresse com relação à sexualidade.

Sabe-se que a sexualidade é dependente de multifatores. Sentimento de tristeza, ansiedade, comprometimento na autoimagem e satisfação corporal, que são questões negativas comuns em transexuais, podem interferir em vários âmbitos da resposta sexual. Fatores culturais interferem na concepção se um determinado comportamento sexual é adequado. E até mesmo o relacionamento com o parceiro traz modificações na própria sexualidade [6].

Um estudo demonstrou que alguns homens transexuais, ao manter contato sexual com o parceiro, optam até mesmo por ocultar as partes femininas do corpo [14]. Além disso, experiências anteriores traumáticas podem alterar a resposta sexual desta população. Estudos demonstram essas experiências ruins com parceiros, amigos ou pessoas desconhecidas na infância ou na idade adulta são mais prevalentes em pessoas trans do que na população cisgênero [15].

Outro fator que tem direta relação são os hormônios sexuais é que a maior parte do conhecimento humano sobre a hormonioterapia é derivada de pessoas cisgêneros, porém até que ponto essas informações são transferíveis para pessoas transsexuais não é totalmente compreendida. Em geral, sabe-se que as mudanças fenotípicas do processo transexualizador causam efeitos consideráveis no desejo e na função sexual. Em geral, uma imagem corporal positiva está associada a uma melhor função e satisfação sexual [6], o que não foi observado na amostra estudada.

Ademais, entre os homens transexuais participantes da pesquisa, alguns apresentavam perdas urinárias em situações de urgência e aos esforços. Sabe-se que a hormonioterapia possui como efeito adverso a atrofia do canal vaginal [3], dessa forma, pode afetar o assoalho pélvico como um todo, entretanto há uma carência total de estudos que analisem a correlação entre a hormonioterapia e a função miccional nesses indivíduos para comparação de dados, necessitando de mais estudos com essa temática.

Deste modo, os fatores envolvidos na experiência integrada do tratamento de afirmação de gênero e a maneira como a sexualidade é percebida são complexos. Apoiar a sexualidade e melhorar a função sexual em homens trans é, portanto, multifacetado [16]. Em especial, a função urinária e sexual nesta população precisa ser mais pesquisada cientificamente, para melhor compreensão de suas necessidades específicas, e assim, receberem atendimento adequado.

Como limitação deste estudo cita-se a ausência de um grupo controle, o número reduzido de participantes, devido um quantitativo menor na região pesquisada, as dificuldades de acesso a essa população e o uso de questionários traduzidos/validados apenas para mulheres cisgênero. Pode-se questionar se esses são ferramentas ideais para avaliar as mesmas funções de homens transgênero. Assim, o desenvolvimento e a validação de questionários para determinar as medidas de desfecho relatadas pelo paciente para a comunidade trans são um próximo passo importante para poder avaliar o processo transexualizador de forma ampla e satisfatória.

São necessários, ainda, estudos que avaliem a qualidade de vida, a função dos músculos do assoalho pélvico e verifiquem a relação do processo transexualizador com disfunções geniturinárias.

 

Conclusão

 

A função sexual da maioria dos homens transexuais deste estudo mostrou-se alterada, sugerindo a risco para disfunções sexuais, além de relatos acerca do desconforto sexual. No que concerne à função urinária, apresentou-se alteração na minoria dos participantes, entretanto não há a possibilidade de relacionar este mau funcionamento com a terapia hormonal.

 

Referências

 

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