Fisioter Bras 2022;23(2):278-87

doi: 10.33233/fb.v23i2.4130

RELATO DE CASO

Fisioterapia associada à terapia assistida por animais em criança com paralisia cerebral: estudo de caso

Physical therapy associated with animal assisted therapy in child with cerebral palsy: case study

 

Camila Soares Izidoro Morais, M.Sc.*, Shaiane Alves Pires, M.Sc.*, Micheli Martinello, D.Sc.*, Claudia Mirian de Godoy Marques, D.Sc.*

 

*Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

 

Recebido em 15 de maio de 2021; Aceito em 15 de março de 2022.

Correspondência: Cláudia Mirian de Godoy Marques, Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC – CEFID), Departamento de Ciências da Saúde, Rua Paschoal Simone 358 Coqueiros 88080-350 Florianópolis SC

 

Camila Soares Izidoro Morais: camila.izidoro@hotmail.com  

Shaiane Alves Pires: shashapiress@gmail.com  

Micheli Martinello: michelimartinello@yahoo.com.br  

Claudia Mirian de Godoy Marques: claudia.maques@udesc.br

 

Resumo

Introdução: A terapia com cães, assim como outros animais utilizados para fins terapêuticos, torna a fisioterapia mais prazerosa e está associada a benefícios na postura e movimento, esquema corporal, coordenação motora e funcionalidade nas atividades da vida diária. Objetivo: Buscou-se investigar o efeito da Terapia Assistida por Animais (TAA) no equilíbrio, funcionalidade e simetria postural de uma criança com Paralisia Cerebral. Métodos: Uma criança de seis anos em intervenção fisioterapêutica baseada na TAA. Para o nível de motricidade fina e grossa, foi utilizado o Gross Motor Function Classification System (GMFCS), para as atividades de vida diária, o Pediatric Evaluation of Disability Inventory (PEDI), e para o equilíbrio postural, a Pediatric Balance Scale (PBS). O alinhamento postural foi avaliado por fotogrametria e a análise postural foi realizada por meio do software para avaliação postural (SAPO). Resultados: Houve melhora na funcionalidade, equilíbrio estático e dinâmico, alinhamento corporal no plano coronal, identificando alterações na simetria corporal dos segmentos corporais e plano sagital, com deslocamento dos eixos pescoço, tronco e quadril. Conclusão: A intervenção com o cão teve efeitos positivos nas habilidades funcionais de uma criança com paralisia cerebral, sendo a estratégia terapêutica eficaz no equilíbrio, seja na manutenção da postura e/ou movimento, com maior independência funcional e, portanto, menor necessidade de supervisão.

Palavras-chave: terapia assistida com animais; fisioterapia; paralisia cerebral.

 

Abstract

Introduction: Canine therapy, as well as other animals used for therapeutic purposes, makes physical therapy more pleasant and is associated with benefits in posture and movement, body scheme, motor coordination and functionality in activities of daily living. Objective: We sought to investigate the effect of Animal Assisted Therapy (AAT) on balance, functionality and postural symmetry of a child with Cerebral Palsy (CP). Methods: One six-year-old child in physical therapy intervention based on AAT. For the level of fine and gross motor skills, the Gross Motor Function Classification System (GMFCS) was used, for activities of daily living, the Pediatric Evaluation of Disability Inventory (PEDI) and for postural balance, the Pediatric Balance Scale (PBS). Postural alignment was evaluated by photogrammetry and posture analysis was performed using the software for postural assessment (SAPO). Results: There was an improvement in functionality, static and dynamic balance, body alignment in the coronal plane, identifying changes in body symmetry of the body segments and sagittal plane, with displacement of the neck, trunk and hip axes. Conclusion: The intervention with the dog had positive effects on the functional abilities of a child with CP, being the therapeutic strategy effective in balance, either in the maintenance of posture and/or movement, with greater functional independence, and therefore, less need for supervision.

Keywords: animal assisted therapy; physical therapy; cerebral palsy.

 

Introdução

 

Experiências em diferentes atividades, quando apresentadas no contexto de crianças com Paralisia Cerebral (PC), fornecem perspectivas importantes para as intervenções. Reconhecer os desafios impostos pelo ambiente e pela sociedade e remover as barreiras são consideradas estratégias eficazes no desenvolvimento da capacidade funcional dessas crianças [1,2]. Considerando que o tratamento de crianças com PC visa estabelecer ou restabelecer a função do movimento e promover experiências motoras adequadas [3,4,5], utilizar-se de intervenções terapêuticas apropriadas e individualizadas promovem aumento do potencial funcional da criança, seja no ambiente, sociedade ou tarefa [1,4] e tendo em vista o tempo prolongado de intervenção fisioterapêutica, métodos não convencionais de terapia podem favorecer a adesão dessas ao tratamento [6,7], enriquecendo a vontade de participar ativamente durante os tratamentos, favorecendo o desenvolvimento neuropsicomotor [8].

Implicações de utilizar o animal como parte integrante e principal do tratamento, a partir da Terapia Assistida por Animais (TAA), proporciona o bem-estar e a melhora psíquica, social, cognitiva e física do ser humano [9,10]. Pressupõem que o amor e a amizade entre animal e ser humano proporciona benefícios à saúde e melhora da qualidade de vida, independente da faixa etária [4]. A partir da terapia canina, assim como outros animais utilizados para fins terapêuticos, a conexão anterior existente entre humanos e animais torna a fisioterapia mais agradável, com experiências motoras e afetivas e associa-se com benefícios na postura e movimento, esquema corporal, coordenação motora e funcionalidade nas atividades de vida diária [11,12]. Sendo assim, a modificação do ambiente de intervenção para crianças com PC, de acordo com fatores físicos, emocionais e sociais, apresenta efeito positivo a curto prazo, assim como na independência funcional a longo prazo [1,11]. Diante do exposto, o presente estudo buscou investigar o efeito da TAA sobre o equilíbrio, a funcionalidade e a simetria postural de uma criança com PC.

 

Métodos

 

Apresentação do caso

 

O presente relato de caso foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade do Estado de Santa Catarina, CAAE 32278614.0.0000.0118 e o (a) responsável pela criança assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foi realizada a intervenção fisioterapêutica com base na TAA em uma criança do sexo feminino, de seis anos de idade, com diagnóstico de PC, do tipo ataxico, selecionada de forma não probabilística intencional, residente na região da Grande Florianópolis, durante o ano de 2014. Observou-se nível de Gross Motor Function Classification System (GMFCS) III, caracterizado pela necessidade de apoio para locomoção, com limitações na marcha comunitária.

Diante de aprovação dos responsáveis, permitiu-se o contato do animal com a criança e em relação ao cão terapeuta, o mesmo recebeu treinamento e adestramento, dócil, familiarizado com pessoas e ambientes. Em todos os momentos de interação da criança com o cão terapeuta foram adquiridos cuidados com a carteira de vacinação e vermifugação adequados, visita ao veterinário regular, higienização diária. As avaliações e as sessões de intervenção fisioterapêutica foram acompanhadas por uma profissional adestradora de animais.

      Foi utilizada uma ficha de anamnese, constando de dados pessoais, dados gestacionais, neonatais e em relação a saúde atual da criança. Para o nível de habilidades motoras e nível de independência funcional utilizou-se o Gross Motor Function Classification System (GMFCS) [13], aplicou-se a Parte I do Pediatric Evaluation of Disability Inventory (PEDI), que corresponde as habilidades funcionais [14] e a Escala do Equilíbrio Pediátrica (EEP) para avaliação do equilíbrio corporal [15].

O GMFCS se classifica pela idade da criança e limitações funcionais, com necessidade de tecnologia assistiva, e qualidade de movimento [13]. O teste PEDI avalia três dimensões: autocuidado, mobilidade e função social [16], a Escala do Equilíbrio Pediátrica (EEP), a capacidade funcional do equilíbrio de crianças, com déficit motor de leve a moderado [15] e para avaliação do alinhamento postural utilizou-se a fotogrametria, através do software para avaliação postural (SAPO) [17], os ângulos analisados no plano coronal foram: simetria da cabeça, de ombros, pélvica, do trocanter, dos joelhos, maleolar e simetria corporal, sendo que valores angulares positivos correspondem à direção anti-horária; e no plano sagital: o ângulo cervical, ângulo dos ombros e ângulo corporal [18] (Figura I).

 

 

Figura 1Representação angular do ângulo de simetria cervical em a, ângulo de simetria de ombro em B e ângulo de simetria corporal em C

 

Após coletadas as informações da avaliação inicial (Av1), ficha de identificação, classificação pelo GMFCS, aplicação do questionário PEDI e EEP, foram observadas as limitações da criança quanto a manutenção e transferência de posturas estáticas e dinâmicas, com alterações do alinhamento postural (caracterizadas pelo maior afastamento dos pés, aumentando a base de suporte, anteriorização do tronco com inclinação lateral à esquerda). Cada sessão teve sua estrutura e tempo claros, embora adaptações ou mudanças pudessem ser incluídas, totalizaram-se 20 sessões de intervenção, duas vezes por semana, com média de 40 a 50 minutos de duração. Imediatamente após o tratamento, foi realizada a avaliação final (Av2). A intervenção consistiu em diferentes comandos de postura e movimento (sentado, deitado, oferecendo a pata, penteando os pelos, brincando com brinquedos cognitivos caninos, levando o cão para passear), incentivando o contato com o cão, a fim de promover sensações táteis cenestésicas, coordenação motora, simetria corporal e deslocamento (Tabela I).

 

Tabela IExemplos de condutas propostas de terapia assistida com animais

 

 

 

Figura 2Representação do colete do cão

 

De acordo com a EEP o escore total na Av1 foi de 31 e na Av2 de 39, com diferença nos seguintes itens: transferência de uma cadeira com apoio para uma cadeira sem apoio; pés separados e olhos fechados por 10 segundos; pés juntos sem apoio; alternando o pé no degrau/apoio; alcançar a frente com braço estendido sem mover os pés. Em relação ao PEDI, comparando-se a Av1 e a Av2, observou-se melhora: na parte I referente as habilidades funcionais, com aumento de 73,9% para 82,1% na área de autocuidado; escore inicial de 40% e final de 66% de mobilidade e na área de função social melhora de 50,7% para 60,1%. Na avaliação da postura identificou-se no plano coronal alterações de simetria corporal dos segmentos corporais e plano sagital, deslocamento dos eixos pescoço, tronco e quadril, a Av1 foi caracterizada pela inclinação cervical à direita, elevação do ombro direito, espinha ilíaca do lado esquerdo mais elevado, valgismo de joelho, flexão do joelho esquerdo e anteversão pélvica, a Av2 demonstrou haver ganho de simetria pélvica, maleolar e corporal, com diminuição da base de sustentação (Tabela II).

 

Tabela II - Resultados das avaliações posturais entre a avaliação inicial (Av1) e avaliação final (Av2)

 

Av1 = Avaliação inicial; Av2 = Avaliação final; D = Direita; E = Esquerda

 

Discussão

 

A motivação é aumentada com a interação animal, sendo descritos benefícios fisiológicos e psicológicos relacionados ao vínculo entre o animal e o ser humano [4,19]. Sugere-se a influência da TAA na cognição, amplitude de movimento, força e equilíbrio [20], além de aspectos emocionais [11]. Para crianças, a presença do animal, integrado ao cenário da terapia, tende a expandir seu potencial de desempenho e repercute no aumento do interesse em relação à continuidade da terapia, com melhora da interação social [6,9]. Descreve-se, ainda, melhor desempenho nas atividades motoras após a TAA em diferentes posturas e durante o movimento ativo, a realização de atividades sem auxílio e com maior alinhamento postural, e, portanto, maior independência funcional [11,12]. Notou-se melhora do equilíbrio, da funcionalidade e da simetria corporal e em relação aos resultados obtidos pelo questionário PEDI, os escores de autocuidado, mobilidade e função social demonstraram melhora, caracterizando maior independência nas atividades de vida diária pós-intervenção.

A associação do efeito da TAA com aspectos motores é reconhecida [6,19], assim como alterações musculoesqueléticas, comumente, estão presentes em crianças com PC [3]. Destacam-se a melhora do controle da cabeça e tronco, equilíbrio corporal, reações de proteção, ortostatismo, coordenação motora e da marcha [4,20]. De acordo com os resultados observados na avaliação postural, alterações quanto a simetria corporal associada a diminuição da base de sustentação, pode estar associado aos ganhos no alinhamento postural, bem como na avaliação do equilíbrio. Quanto ao equilíbrio, observou-se variação entre o início e o final da intervenção de oito pontos, o que equivale a uma melhoria de 20,6% e corresponde a transferir-se segundo orientações verbais e/ou supervisão; permanecer em pé com os olhos fechados; em pé sem apoio, manter os pés juntos; alternar o pé no apoio, realizando quatro toques; em pé, alcançar a frente com o braço estendido. Para a manutenção do equilíbrio corporal a criança com PC enfrenta diversas dificuldades, principalmente associadas ao alinhamento corporal [4,5], além disso, a ativação muscular, é considerada fator coadjuvante para a correta estabilidade corporal, pela dificuldade de manter determinada postura, posicionamento e mobilidade articular [19]. Dessa forma, considera-se que a estabilização e o alinhamento da cabeça e do tronco podem interferir na melhora do alinhamento corporal, e, portanto, evolução na habilidade funcional.

 

Conclusão

 

Diante do exposto sobre a TAA e com os resultados obtidos, a intervenção com o cão apresentou efeitos positivos para uma criança com PC, sendo a estratégia terapêutica eficaz no equilíbrio e melhora do alinhamento postural, seja na manutenção da postura e/ou movimento, com maior independência funcional, e, portanto, menor necessidade de supervisão.

 

Agradecimentos

Agradecemos à responsável e à criança que voluntariamente fizeram parte deste estudo.

 

Financiamento

A pesquisa não recebeu recursos financeiros institucionais e/ou privados para sua realização.

 

Conflito de interesse

Não existe conflito de interesse.

 

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa: Morais CSI, Martinello M; Coleta de dados: Morais CSI, Martinello M; Análise e interpretação dos dados: Morais CSI, Marques CMG, Martinello M; Análise estatística (descritiva): Morais CSI, Marques CMG, Martinello M; Redação do manuscrito: Morais CSI, Marques CMG, Pires AS; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Morais CSI, Marques CMG, Martinello M, Pires SA.

 

Referências

 

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