REVISÃO
Atuação do
fisioterapeuta na atenção primária à saúde: revisão de escopo
Physiotherapeutic performance in primary health care: scoping review
Luana Padilha da Rocha,
Ft., M.Sc.*, Fabiana de Oliveira Silva Sousa**,
Washington José dos Santos, Ft., M.Sc.*,
Lorena Albuquerque de Melo, Ft., M.Sc.*,
Thatiana Ferreira de Vasconcelos, Ft.***
*Fisioterapeuta do
Núcleo ampliado de saúde da família e atenção básica da Prefeitura da Cidade do
Recife, **Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco, Centro
Acadêmico de Vitória, Vitória de Santo Antão/PE, ***Fisioterapeuta do Hospital
Universitário Oswaldo Cruz (HUOC) e do Núcleo ampliado de saúde da família e
atenção básica da Prefeitura da Cidade do Recife
Recebido em 8 de
setembro de 2020; aceito em 3 de dezembro de 2020.
Correspondência: Washington José dos
Santos, Rua João Fernandes Vieira 544/304 Boa Vista 50050-245 Recife PE
Luana Padilha da Rocha:
luanapadilha1895@gmail.com
Fabiana de Oliveira
Silva Sousa: oliveirasilva.fabi@gmail.com
Washington José dos
Santos: washingtonfisio@gmail.com
Lorena Albuquerque de
Melo: lorenalbuquerque@gmail.com
Thatiana Ferreira de
Vasconcelos: nasfthatiana@gmail.com
Resumo
Apesar das evidências
científicas sobre a importância da inclusão do fisioterapeuta na atenção
primária à saúde, constata-se que a práxis desse profissional nesse nível
assistencial ainda é permeada de muitas indefinições. Este estudo teve como
objetivo descrever a atuação dos fisioterapeutas que atuam na Atenção Primária
à Saúde segundo evidências disponíveis na literatura científica mais atual.
Trata-se de uma revisão de escopo. A coleta de dados ocorreu em janeiro e
fevereiro de 2019 em três bases de dados. Foram identificados 965 estudos dos
quais 27 foram selecionados segundo critérios: originalidade, disponibilidade,
publicação a partir de 2009, idioma (inglês, português ou espanhol). Os
resultados foram sistematizados em três categorias temáticas: atuação, principais
demandas e dificuldades encontradas para atuação na atenção primária à saúde.
Identificou-se diversidade de atividades realizadas pelo fisioterapeuta, com
predomínio do atendimento específico individual. As principais demandas são de
cuidado centrado nas doenças/agravos à saúde e as dificuldades mais citadas são
a hegemonia da lógica curativo-reabilitadora e o desconhecimento dos
trabalhadores e gestores quanto ao seu fazer nesse nível de atenção.
Palavras-chave: atenção primária à
saúde, Estratégia Saúde da Família, Fisioterapia.
Abstract
Despite
the scientific evidence on the importance of including physical therapists in
primary health care, it appears that the praxis of this professional at this
level of care is still permeated with many vagueness. This study aimed to
describe the performance of physical therapists who work in Primary Health Care
according to evidence available in the most current scientific literature. This
is a scoping review. Data collection took place in January and February 2019 in
three databases. 965 studies were identified, of which 27 were selected
according to criteria: originality, availability, publication from 2009,
language (English, Portuguese or Spanish). The results were systematized into
three thematic categories: performance, main demands and difficulties
encountered in acting in primary health care. A diversity of activities carried
out by the physical therapist was identified, with a predominance of specific
individual care. The main demands are for care centered on diseases / health
problems and the most common difficulties are the hegemony of the
curative-rehabilitation logic and the lack of knowledge of workers and managers
regarding their work at this level of care.
Keywords: primary health care, Family Health Strategy, Physical therapy.
Desde a conferência de
Alma-Ata, em 1978, a Atenção Primária em Saúde (APS) é considerada
imprescindível para a organização do sistema de saúde e melhoria da qualidade
de vida da população. Existe certo consenso internacional com relação à
importância da APS, no entanto, as suas formas de organização e
operacionalização são bastante diferenciadas entre os países [1].
A implantação de
diversos modelos de atenção primária no Brasil foi parte constituinte, e até
fortalecedora, do movimento sanitário que foi se formando ao longo das décadas
de 70 e 80 e culminou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988.
Dentre estes, as Ações Integradas de Saúde, as experiências de medicina
comunitária até a criação, em 1992, do Programa de Agentes Comunitários de
Saúde (PACS) que impulsionou a implementação do Programa de Saúde da Família
(PSF), em 1994 [2]. Mais tarde, proposta de atuação focada em equipe
multiprofissional e com base na territorialização e no cuidado centrado nas
famílias foi reconhecido como principal estratégia para reestruturação do
modelo de atenção à saúde, passando a se denominar Estratégia de Saúde da
Família (ESF) [3].
Na atualidade, o
crescimento da prevalência das doenças e condições crônicas na população
brasileira tem reiterado a necessidade de ampliar a capacidade resolutiva e a
integralidade do cuidado no âmbito da APS [4]. Dentre algumas iniciativas para
fortalecer a atenção primária, o Ministério da Saúde criou, em 2008, os Núcleos
de Apoio à Saúde da Família (Nasf) com o objetivo de
apoiar a inserção da ESF na rede de serviços e ampliar a abrangência e a
resolutividade das ações da APS no Brasil [5].
Com a implementação dos
Nasf, diversas profissões foram incluídas nas equipes
que atuam no âmbito da APS brasileira [6]. Embora as diretrizes curriculares
preconizem uma formação generalista para os profissionais de saúde [7], a
maioria das categorias que podem compor o Nasf tem em
seu histórico uma práxis consolidada na ênfase curativista,
individual e especializada, cujos lócus de intervenção predominantes são os
serviços especializados e hospitalares. Esse, também, é o caso da fisioterapia.
A implementação de
mudanças nos currículos dos cursos de graduação em Fisioterapia tem viabilizado
avanços para desenvolvimento de competências e habilidades que lhes permitam
atuar em todos os níveis de atenção à saúde. Destacando-se, ultimamente, uma
crescente preocupação com a formação de um profissional com perfil voltado para
a atenção primária à saúde [8].
Com a atualização da
Política Nacional de Atenção Básica, em 2017, o Nasf
teve mudança de nomenclatura e passou a ser denominado Núcleo Ampliado de Saúde
da Família e Atenção Básica (Nasf-AB) [9].
Atualmente, o Brasil tem 5.757 equipes do NASF-AB e, aproximadamente, 14.000
fisioterapeutas vinculados prestando serviço de apoio à saúde da família
[10,11].
Ao mesmo tempo em que se observa o crescimento
do número de fisioterapeutas atuando na APS, constata-se a ausência de
informação destes profissionais sobre algumas atividades desenvolvidas neste
nível de atenção. Apesar desta área de atuação encontrar-se em plena expansão e
ser preconizada nas diretrizes curriculares, tanto a inserção, como a práxis do
fisioterapeuta na APS ainda são indefinidas, o que geram muitas divergências
quanto ao desempenho de suas ações. Desse modo, é essencial aprofundar a
reflexão sobre os meios e modos como este profissional desenvolve o seu fazer
profissional, uma vez inserido na APS [12-14].
Observa-se, então, que
o papel do fisioterapeuta na atenção primária através do Nasf-AB,
suas funções, seus modos de fazer e seus limites de atuação ainda não estão
claros nem para a equipe interdisciplinar, nem para a população e nem para o
próprio profissional, o que gera a necessidade de aprofundamento a respeito de
suas atividades no exercício do trabalho em ato.
Nessa perspectiva, este
estudo teve como objetivo geral descrever as práticas desenvolvidas pelos
fisioterapeutas que atuam na Atenção Primária à Saúde segundo evidências
disponíveis na literatura científica atual, e como objetivos específicos mapear
as dificuldades encontradas em seu processo de trabalho e identificar as
principais demandas para a atuação desse profissional na APS.
Este estudo trata-se de
uma revisão de escopo da literatura, método de pesquisa pelo qual se pode
identificar os principais conceitos que alicerçam determinada área de pesquisa,
analisar a extensão, alcance e natureza da investigação, bem como resumir e
divulgar seus dados, auxiliando no mapeamento de limites conceituais de um
determinado tema e as lacunas de pesquisas existentes [15]. Foi desenvolvido a
partir da seguinte questão de pesquisa: Quais as possibilidades de atuação do
fisioterapeuta na atenção primária à saúde, segundo evidências disponíveis na
literatura científica atual?
A partir disso, foram
definidos os seguintes critérios de elegibilidade para delimitação da amostra:
Critérios de inclusão: Publicação versar
sobre a atuação do fisioterapeuta na atenção primária à saúde; Estudos
publicados a partir de 2009 (por ser o ano seguinte ao de criação e implantação
do Nasf no Brasil), nos idiomas inglês, português e
espanhol.
Critérios de exclusão: Estudos de protocolo
de intervenção (visto que a intervenção não foi realizada, de modo que ainda
não reflete a atuação do profissional); Publicação completa não disponível
gratuitamente em meio eletrônico; Estudos repetidos em bases de dados
diferentes.
O levantamento
bibliográfico ocorreu entre janeiro e fevereiro de 2019, nas seguintes bases de
dados: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS),
base de dados de evidências em fisioterapia (PEDro) e
National Library of
Medicine National Institutes
of Health (PubMed).
Para a realização da busca, os descritores controlados foram delimitados de
acordo com cada base de dados, mediante consulta nos Descritores em Ciências da
Saúde (DeCS), para buscas na LILACS e no Medical Subject Headings (MeSH), para buscas na PEDro e na PubMed. Foram definidos os seguintes descritores
controlados: Primary Health Care;
Physical Therapists; Rehabilitation; Public Health e Physical Therapy Specialty (PEDro e PubMed), com seus respectivos correspondentes em português
e espanhol (LILACS). Tais descritores foram combinados de diferentes maneiras,
com intuito de assegurar uma busca ampla na literatura.
Para padronizar a
sequência de descritores e seus cruzamentos nas bases de dados, a busca foi
realizada inicialmente por pares e, a seguir, aconteceu separadamente. Os
resultados encontrados foram comparados para identificar possíveis
discordâncias e corrigir algum erro que pudesse acontecer nessa etapa. Nos
casos de manutenção de divergências, um terceiro pesquisador foi consultado
para resolução dos desentendimentos que permaneceram.
A busca nas bases de
dados resultou no levantamento inicial de 965 estudos, dos quais 89 foram
excluídos por não se enquadrarem no período delimitado e 4 por não estarem nos
idiomas selecionados. Dos 872 restantes, 380 não estavam disponíveis
eletronicamente na ocasião da busca, restando 487 publicações, as quais foram
submetidas à leitura criteriosa para delimitação do tópico de interesse
investigado, verificando que apenas 40 atendiam à questão de pesquisa e aos
critérios de elegibilidade. Findada essa etapa, 13 publicações foram excluídas
por serem repetidas, resultando um total de 27 estudos selecionados que
compuseram a amostra da pesquisa, conforme ilustrado na figura 1.
Figura 1 - Processo de
realização da busca em base de dados para a Revisão de Escopo sobre atuação do
fisioterapeuta na atenção primária a saúde.
A fim de extrair os
dados da amostra, foi realizado o preenchimento de um instrumento contendo
informações sobre identificação, objetivo, características metodológicas,
principais resultados e conclusões dos estudos. Para tanto, procedeu-se a
leitura e releitura completa dos artigos, os quais foram numerados por ordem de
achado, de acordo com cada combinação realizada nas bases de dados e anexados
aos instrumentos devidamente preenchidos para a criação de um banco de dados. O
software MAXQDA 12 foi utilizado para o processamento dos dados, fornecendo as
frequências estatísticas e auxiliando na categorização dos resultados levantados
com o instrumento.
O quadro 1 ilustra os
estudos que compuseram a amostra, com suas respectivas informações quanto ao
título, aos autores, aos objetivos do estudo, às possibilidades de atuação do
fisioterapeuta, as dificuldades encontradas no processo e as principais
demandas para essa categoria profissional.
Quadro 1 - Estudos incluídos
na amostra segundo número, título, autores, objetivo, atuação do fisioterapeuta,
dificuldades encontradas e principais demandas. (ver PDF em anexo)
A partir dos objetivos
elencados para a presente revisão, foram definidas três ideias centrais para a
apresentação dos resultados: atuação do fisioterapeuta na APS; dificuldades
encontradas na atuação do fisioterapeuta na APS; e principais demandas para o
fisioterapeuta na APS.
Após a leitura,
sistematização e processamento dos dados, foram elaboradas categorias e/ou
subcategorias temáticas para cada uma das ideias centrais, utilizando-se a
técnica de análise de Análise de Conteúdo Temática de Bardin [43]:
inicialmente, foi realizada a pré-análise, com uma
leitura flutuante para, a partir de impressões e orientações, apreender o
sentido que fundamentou a interpretação e estabelecer um universo e um corpus
de análise, representado nesse estudo pelas informações obtidas no instrumento
de extração de dados coletados dos artigos que compuseram a amostra.
Numa segunda etapa,
realizou-se a categorização dos dados pela leitura exaustiva do conteúdo,
classificando os elementos conforme semelhanças e diferenciações de ideias,
para depois realizar o reagrupamento por características comuns, a fim de
retirar do texto as unidades de registro, os núcleos de sentido que embasaram a
categorização. Uma vez que os conteúdos foram classificados, as categorias e
subcategorias temáticas foram estabelecidas.
Atuação do
fisioterapeuta na APS
Quanto às
possibilidades de atuação do fisioterapeuta na APS, foram definidas categorias e
subcategorias temáticas, conforme ilustrado na figura 2:
Figura 2 - Mapa ilustrativo
de categorias e subcategorias temáticas de atuação do fisioterapeuta na atenção
primária a saúde.
Para fins de
compreensão, tais categorias e subcategorias temáticas foram definidas tendo
como referência o Caderno de Atenção Básica número 39 do Ministério da Saúde
[17], conforme disposto abaixo:
a) Atendimento
específico individual: realizado apenas pelo fisioterapeuta do Nasf-AB diretamente a um único usuário, na unidade básica
de saúde (UBS) ou no domicílio;
b) Atendimento
específico em grupo: realizado apenas pelo fisioterapeuta do Nasf-AB diretamente a um grupo de usuários, na UBS ou no
domicílio;
c) Atendimento
compartilhado individual: realizado conjuntamente entre fisioterapeuta Nasf -AB e, no mínimo, um membro da própria equipe Nasf-AB ou equipe vinculada, diretamente a um único
usuário, na UBS ou no domicílio;
d) Atendimento
compartilhado em grupo: realizado conjuntamente entre fisioterapeuta Nasf-AB e, no mínimo, um membro da própria equipe Nasf ou equipe vinculada, diretamente a um grupo de
usuários, na UBS ou no domicílio;
e)
Atividade de
mobilização social: Ações de
mobilização, educação popular e controle
social
junto à comunidade para discussão de temas gerais que
busquem melhorar a
qualidade de vida da coletividade num dado território;
f)
Educação em saúde:
Ações de educação em saúde e
ações de sensibilização desenvolvidas na
UBS ou em
outros espaços comunitários junto aos usuários de
modo pontual e/ou esporádico,
a exemplo das salas de espera;
g) Grupo: Atividades
educativas que acontecem com grupos de usuários que se encontram
periodicamente. A continuidade é base da confiabilidade no grupo e isso é a
matéria-prima desse tipo de trabalho;
h) Reunião de matriciamento:
Espaço de ocorrência periódica destinado à
problematização, ao planejamento, à
programação e à execução de
ações
colaborativas entre Nasf-AB e equipes de AB. Inclui
discussões de casos e temas (fortemente relacionados à educação permanente),
pactuações entre o Nasf-AB e as equipes vinculadas,
planejamento e programação de ações (construção de propostas de grupos,
atendimentos e intervenções entre as equipes), ações de vigilância em saúde,
monitoramento e outras.
Principais demandas
para o fisioterapeuta na APS
No que diz respeito às principais demandas
para o fisioterapeuta na APS, esta revisão revela diferentes necessidades, porém
com predomínio do cuidado centrado nas doenças/agravos à saúde, como pode ser
visto na figura 3.
Figura 3 - Nuvem de
palavras representativa do grau de frequência de códigos relacionados às
principais demandas para o fisioterapeuta na atenção primária a saúde.
Em relação às
principais demandas para atuação do fisioterapeuta na APS, foram elaboradas
categorias e subcategorias temáticas com suas respectivas frequências absolutas
e relativas, conforme disposto na tabela I.
Tabela I - Distribuição das
frequências das principais demandas, identificadas na literatura científica,
para atuação do fisioterapeuta na atenção primária a saúde.
A atuação do
fisioterapeuta na APS segue a lógica curativo reabilitadora, com demanda
prioritária de doenças e agravos, focada na assistência direta ao usuário, com
predominância do atendimento específico e individual no ambiente domiciliar.
Esses achados remetem ao histórico da fisioterapia que teve seu início marcado
pelo enfoque da reabilitação dos indivíduos que apresentavam limitações de
funcionalidade após traumas ou agravos diversos.
Dificuldades
encontradas na atuação do fisioterapeuta na APS
Em relação às
dificuldades encontradas, observa-se, na tabela II, uma variedade de motivos
pelos quais a atuação do fisioterapeuta na APS ainda se configura como um
desafio, observando-se um predomínio da lógica curativo-reabilitadora e do
desconhecimento quanto ao seu fazer nesse nível de atenção.
Tabela II - Distribuição das
frequências das principais dificuldades, identificadas na literatura
científica, para atuação do fisioterapeuta na atenção primária a saúde.
Também chamam atenção a
citação de dificuldades relacionadas ao modelo de formação fragmentada e a
demanda reprimida para atenção especializada ocasionada pela oferta
insuficiente de serviços de fisioterapia no segundo e terceiro níveis
assistenciais. Essa fragilidade na constituição das redes ocasionaria uma
tensão sobre o fazer dos fisioterapeutas que atuam na APS e que são
constantemente solicitados para atender demandas terapêuticas pertinentes à
atenção especializada.
Apesar
da crescente
necessidade de atenção integral à saúde da
população, a atuação na APS é
recente na história da fisioterapia brasileira. Iniciou com
experiências
pontuais, ora sustentadas em iniciativas de gestão local de
alguns municípios,
ora em atividades acadêmicas de integração
ensino-serviço [45-47]. Com a
criação do Nasf-AB, essa atuação se expandiu e a
fisioterapia se tornou uma das 3 profissões mais frequentes na composição
dessas equipes multiprofissionais.
Nos últimos 10 anos de
implementação do Nasf,
algumas pesquisas foram
realizadas para descrever e analisar esse novo cenário de
atuação para os
fisioterapeutas que ampliou seu repertório de
ações, principalmente no campo da
promoção e prevenção à saúde,
através de atividades coletivas de educação em
saúde, grupos e mobilização social [8,28,31,48].
Apesar dessas, também se identificou
que a fisioterapia ainda permanece com uma prática centrada em
atendimentos
clínicos específicos e individuais [14,18,29,40].
Os artigos revelam o
predomínio do atendimento específico individual, em detrimento das demais
atividades. O atendimento em grupo de forma específica é citado apenas em 5
artigos. Esta importante representação dos atendimentos individuais pode estar
relacionada à grande demanda reprimida para esse tipo de assistência como
também resquícios de formação ainda voltada para a lógica da atenção
ambulatorial individualizada.
Para atuar no contexto da APS, a competência
do fisioterapeuta precisa ir além de uma boa técnica; é preciso sensibilidade
para perceber as necessidades e circunstâncias das famílias [40]. Loures e
Silva [28] já referiam que o trabalho realizado pelo fisioterapeuta no âmbito
da atenção primária deveria incorporar novas práticas. Quando inserido no Nasf-AB, o fisioterapeuta deve ser capaz de desenvolver
práticas que possam reduzir riscos e agravos, ampliando sua atenção a toda a
comunidade através do acolhimento integral, englobando educação em saúde,
atendimentos individuais, grupos operativos e visitas domiciliares [13,20,49].
O trabalho do Nasf-AB é orientado pelo referencial teórico-metodológico
do apoio matricial, o qual propõe três diretrizes de intervenção: utilizar a
lógica do apoio e da cogestão nas relações interprofissionais; lidar a partir
do referencial da interdisciplinaridade com processos sociais, sanitários e
pedagógicos; e construir equipes multiprofissionais com corresponsabilização no
cuidado em saúde. Tais diretrizes surgem a partir das dimensões
técnico-pedagógica e clínico-assistencial do apoio matricial [44,50,51].
Tal
proposta de
organização do processo de trabalho no território
dar-se-á em conjunto com a
equipe de Saúde da Família (ESF), priorizando
ações interprofissionais, como
atendimento compartilhado, estudo e discussão de casos e
situações (incluindo
realização de projeto terapêutico singular e
orientações) e ações comuns nos
territórios
(como o projeto de saúde no território) e desenvolvendo
intervenções
específicas do profissional aos usuários e/ou
famílias, quando necessário
[40,44,52,53].
As atividades voltadas
para prevenção e promoção da saúde revelam-se pouco representadas nos estudos
analisados. A atenção aos grupos populacionais específicos é a que se destaca
com maior representatividade, seguida da atenção voltada aos ciclos de vida. As
ações de promoção da saúde per si tem a menor representatividade dentre as
atividades realizadas.
Para alcançar a
produção do cuidado, deve-se enfatizar que o processo de trabalho do
fisioterapeuta deve se organizar “centrado nas tecnologias leves, relacionais,
o que possibilita o exercício do acolhimento, a percepção dos afetos presentes
na relação trabalhador/usuário, bem como a negociação de projetos terapêuticos,
principalmente quando em ambiente familiar, espaço de controle do usuário e da
família”. O trabalho realizado por Langoni et al.
[26] refere a eficácia do trabalho realizado pelo fisioterapeuta na atenção
básica relacionando este trabalho à autonomia dos usuários em seguir as
orientações prescritas também em domicílio.
Dessa forma, há também a necessidade de se
incorporar ferramentas ou estratégias de gestão do cuidado no cotidiano dos
serviços de saúde e, nessa perspectiva, as tecnologias leves-duras constituem
instrumentos que auxiliam na produção do cuidado, bem como as tecnologias
duras, que não se configuram apenas como a utilização de equipamentos, mas
também a própria ação direta do profissional que, nesse caso, pode ser
representada pelas mãos do fisioterapeuta [40,54].
O atendimento
domiciliar é uma prática comum na fisioterapia, no entanto, a metodologia de
eleição dos usuários que necessitam de atendimentos, assim como o tempo
dedicado à atividade domiciliar constituem um grande desafio a ser esclarecido
no processo de trabalho do fisioterapeuta e dos demais profissionais da APS. A
atuação daquele profissional nesse nível de atenção precisa criar uma base mais
sólida, pois a demanda para esse tipo de intervenção é muito grande e tende a
crescer. Além disso, a prática de atendimento domiciliar realizada na atenção
primária à saúde tem características distintas daquelas usualmente realizadas
no contexto da média complexidade, uma vez que esta não está centrada no
profissional e sim no usuário e/ou no cuidador, na dinâmica familiar, nas
relações de vínculo estabelecidas e no ambiente [14,40].
O perfil da demanda
delineado nestes estudos corrobora o que é apresentado enquanto atuação do
fisioterapeuta, uma vez que a maior parte da demanda corresponde a doenças e
agravos à saúde. E, quando observados principais agravos, estes têm um forte
caráter ambulatorial, sendo os mais citados as doenças neurológicas, as osteomioarticulares e as alterações respiratórias.
As dificuldades para a
atuação do fisioterapeuta na APS de modo geral representaram o que foi exposto
enquanto atuação desse profissional. A principal dificuldade apontada foi o
predomínio da prática curativo-reabilitadora, bem representada no estudo das
ações realizadas; o desconhecimento da atuação do fisioterapeuta na APS, sugere
uma limitação na formação do profissional para atuar neste campo de prática e é
corroborado pela formação fragmentada, apontada também enquanto dificuldade nos
estudos.
Soma-se a isso a
histórica insuficiência da rede que gera uma enorme demanda reprimida e a
ausência de infraestrutura. Souza e Ribeiro [39] destacam em seu estudo
realizado na cidade João Pessoa/PB que a ampliação da oferta assistencial na
atenção primária à saúde não foi acompanhada pelo investimento adequado na
atenção especializada, o que contribui para o excesso de demanda reprimida para
a assistência em fisioterapia.
Inserir uma profissão
em um locus de atuação diferenciado daquele que a
constituiu requer construir uma prática reflexiva sobre os limites e
possibilidades de atuação de modo a instituir um fazer diferenciado, que seja
capaz de atender à necessidade da população e da Estratégia de Saúde da
Família, compreendendo e cumprindo o seu papel em uma rede de atenção à saúde.
No que diz respeito aos
achados, percebe-se que há, entre os aspectos estudados, convergências e
dissonâncias no que se refere a atuação do fisioterapeuta no âmbito da atenção
primária à saúde.
Dentre os pontos
convergentes, destacam-se o que foi apontado como dificuldades tais como a
grande demanda pela atenção fisioterapêutica; a escassa rede assistencial de
suporte ambulatorial; o despreparo dos profissionais para atuar nesse nível de
atenção, a despeito das Diretrizes Curriculares e a falta de recursos.
A forma de lidar com
esta enorme demanda, por sua vez, está entre as principais divergências. Uma
vez que este profissional é formado para atuar em âmbito individual com enfoque
reabilitador, instituir uma práxis que envolva a integralidade e as ferramentas
de cuidado no contexto territorial e coletivo torna-se um enorme desafio.
É possível que o
investimento na formação, estruturação e/ou sistematização das técnicas e
práticas voltadas para o cuidado da fisioterapia na atenção primária à saúde
possam contribuir para estabelecer uma forma de fazer que seja capaz de
responder às demandas dos usuários neste nível de atenção, sem, no entanto,
descaracterizá-la.
Como limitações deste
estudo, pode-se elencar: as estratégias de busca através do cruzamento dos
descritores podem não ter incluído publicações que englobassem o tópico de
interesse pesquisado; a leitura dos títulos e resumos realizados na primeira
etapa pode ter excluído alguns estudos, visto que somente resumos que atenderam
aos critérios de inclusão foram selecionados para a amostra; artigos escritos
em idiomas diferentes do inglês, português e espanhol não foram incluídos; e
artigos não disponíveis na íntegra gratuitamente em formato eletrônico não
foram incluídos, o que pode ter representado perda para esta revisão. Sugere-se
que novas pesquisas como esta possam ser realizadas, a fim de superar tais
limitações.