Fisioter Bras 2021;22(2):205-15
ARTIGO
ORIGINAL
Efeito
da fisioterapia nos sintomas de síndrome da bexiga hiperativa decorrente do
tratamento do câncer de colo de útero
Effect of physical therapy on
symptoms of the hyperactive bladder arising from the treatment of cervical
cancer
Natália
de Souza Duarte, Ft.*, Marina Rodrigues Lopes Pereira, Ft.**, Hellem Samilles Cardoso da Costa,
Ft.***, Bianca Silva da Cruz, Ft.****, Camila Alcântara Fernandes*****, Erica
Feio Carneiro Nunes, D.Sc.******
*Residente
em Estratégia Saúde da Família, Universidade do Estado do Pará, Belém, PA,
**Residente em Saúde da Mulher e da Criança, Universidade Federal do Pará,
Belém, PA, ***Residente em Oncologia, Universidade Federal do Pará. Belém, PA,
****Mestranda em Saúde na Amazônia, Universidade Federal do Pará, Belém, PA, *****Acadêmica
de Fisioterapia, Universidade do Estado do Pará, Belém, PA, ******Professora da
Universidade do Estado do Pará. Belém, PA
Recebido
em 15 de outubro de 2020; Aceito em 20 de fevereiro de
2021.
Correspondência: Erica Feio Carneiro Nunes, Tv. Perebebuí, 2623 Marco 66087-662 Belém PA, Brasil
Natália de Souza Duarte: nataliaduartefisio@outlook.com
Marina Rodrigues Lopes Pereira: marinarlpereira@gmail.com
Hellem Samilles
Cardoso da Costa: hellensamile@gmail.com
Bianca Silva da Cruz: biancasilva_cruz@yahoo.com.br
Camila Alcântara Fernandes: camisfernanfes10@gmail.com
Erica Feio Carneiro Nunes: ericacarneiro@uepa.br
Resumo
Introdução: A síndrome da bexiga hiperativa pode
afetar as mulheres após o tratamento para câncer de colo do útero, interferindo
diretamente a qualidade de vida e funcionalidade. Objetivo: Verificar os
efeitos da Fisioterapia nos sintomas da síndrome da bexiga hiperativa em
mulheres submetidas ao tratamento de câncer de colo do útero. Métodos:
Trata-se de um ensaio clínico não controlado, com mulheres que realizaram o
tratamento para câncer de colo do útero. Foi utilizada uma ficha de avaliação
para verificar dados ginecológicos/obstétricos, assim como hábitos de vida das
pacientes. Os sintomas da síndrome da bexiga hiperativa foram avaliados por
meio do Incontinence Questionnaire
Overactive Bladder.
Para a intervenção fisioterapêutica foi utilizado o protocolo de Treinamento
dos Músculos do Assoalho, Eletroestimulação Transcutânea do Nervo Tibial e
Terapia Comportamental. Resultados: No pós-tratamento ocorreu decréscimo
estatisticamente significativo na mediana dos sintomas da síndrome da bexiga
hiperativa e no impacto da qualidade de vida em relação ao pré-tratamento,
indicando melhora do quadro. Conclusão: Esta pesquisa concluiu que o
protocolo fisioterapêutico utilizado apresentou eficácia na melhora dos
sintomas da síndrome da bexiga hiperativa após tratamento para câncer de colo
do útero.
Palavras-chave: bexiga urinária hiperativa;
incontinência urinária; fisioterapia; neoplasias do colo do útero; diafragma da
pelve.
Abstract
Introduction: A hyperactive
bladder syndrome can affect women after treatment for cervical cancer, directly
interfering with quality of life and functionality. Objective: To verify
the effects of physical therapy on the symptoms of hyperactive bladder syndrome
in women undergoing treatment for cervical cancer. Methods: This is an
uncontrolled clinical trial, with women who underwent treatment for cervical
cancer. An evaluation form was used to check gynecological/obstetric data, as
well as the patients' lifestyle. The symptoms of the hyperactive bladder
syndrome were obtained through the hyperactive bladder questionnaire. For the
physiotherapeutic intervention, the floor muscle training, transcutaneous
electrostimulation of the tibial nerve and behavioral therapy protocol was
used. Results: In the post-treatment there was a statistically
significant decrease in the median of the symptoms of the hyperactive bladder
syndrome and no impact on the quality of life in relation to the pre-treatment,
an improvement indicated in the condition. Conclusion: This research
concluded that the physical therapy protocol used showed improvement of
symptoms of overactive bladder syndrome after treatment for cervical cancer.
Keywords: urinary bladder overactive;
urinary incontinence; physical therapy specialty; uterine cervical neoplasms;
pelvic floor.
O Câncer de Colo do Útero (CCU) é o terceiro tumor mais
frequente na população feminina, e a quarta causa de morte de mulheres por
câncer no Brasil, sendo o primeiro mais incidente na região Norte. O estado do
Pará tem o quarto maior número de casos, com taxa de incidência calculada para
o ano de 2019 de 20,55%, demonstrando que essa patologia está ainda fortemente
presente e que se configura como um problema de saúde pública [1,2].
Em relação ao seu tratamento, há algumas opções, dentre as
quais destaca-se o método cirúrgico, a radioterapia e a quimioterapia,
selecionados de acordo com a idade da paciente, estágio da doença, nível de
comprometimento e prognóstico. Todavia, atualmente salienta-se que certas
cirurgias pélvicas, principalmente as mais extensas e a própria radioterapia
podem gerar danos no que tange à inervação autonômica dos músculos do assoalho
pélvico (MAP) e à vascularização pélvica, o que por sua vez, tende a
desencadear disfunções de cunho urinário, como a incontinência urinária (IU), urgeincontinência (UI), sintomas de polaciúria, noctúria, e a Síndrome da Bexiga Hiperativa (SBH) [3,4,5].
Desde 1986, já havia relato que a radiotoxicidade
geniturinária, causada pelos tratamentos contra o câncer, induz atrofia
epitelial, redução da capacidade e complacência vesical, e até mesmo necrose da
bexiga resultado do dano vascular progressivo. Estas alterações predispõem a
urgência urinária, aumento da frequência miccional, noctúria,
disúria, espasmo da bexiga, ulceração urotelial,
hemorragia e IU [6].
A SBH é definida pela Sociedade Internacional de
Continência (ICS) como uma síndrome clínica caracterizada pela presença de
urgência, frequentemente acompanhada por aumento de frequência urinária e noctúria, com ou sem IU, na ausência de fatores metabólicos,
infecciosos ou locais. Ela configura-se como a segunda maior causa de IU na
mulher, e atinge aproximadamente 34% das pacientes no pós-tratamento de CCU,
afetando diretamente a qualidade de vida (QV) dessas pessoas [7].
Além da abordagem farmacológica e das mudanças
comportamentais, a inserção da Fisioterapia, no contexto do tratamento da SBH,
apresenta altas taxas de sucesso, no entanto, poucos estudos exploraram essa
terapia nos sintomas da SBH em pacientes pós-tratamento para CCU. Diante disso,
este estudo teve por objetivo avaliar os efeitos da Fisioterapia nos sintomas
da SBH em mulheres submetidas ao tratamento do CCU.
Trata-se de um ensaio clínico não controlado cego,
realizado no período de janeiro a junho de 2018. Este estudo foi desenvolvido
no Hospital Ophir Loyola (HOL), localizado em Belém
do Pará, aprovado no pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HOL (CAAE:
70253917.0.3001.5550, Parecer: 2.440.301).
Teve amostra de 10 mulheres que realizaram o tratamento
para câncer de colo do útero (TCCU) no HOL, com amostragem por conveniência.
Foram incluídas mulheres com faixa etária entre 18 e 59 anos, diagnosticadas
com CCU, que realizaram tratamento de radioterapia pélvica por teleterapia, associada ou não a braquiterapia,
histerectomia e quimioterapia, que houvessem terminado o tratamento de 60 dias
a 5 anos e com queixa de urgência miccional após o tratamento de CCU. Foram
excluídas as que relatassem sintomas urinários prévios ao tratamento, que
estivessem utilizando bolsa coletora após cistostomia ou colostomia, e as que
estivessem com os exames ou consultas sem periodicidade.
A coleta de dados iniciou com a prévia análise dos
prontuários das pacientes no ambulatório de ginecologia do HOL. As que se enquadravam
nos critérios foram convidadas a participar e conduzidas a uma sala reservada
para aplicação do termo de consentimento se posterior avaliação.
Na avaliação foram verificados dados ginecológicos e
obstétricos, assim como hábitos de vida das pacientes. Os sintomas da SBH foram
avaliados por meio do Incontinence Questionnaire Overactive Bladder (ICIQ-OAB) validado para a língua portuguesa, o
qual avalia os sintomas urinários, relacionados a SBH, por meio de quatro
questões básicas: a questão 3a investiga a presença de aumento da frequência
urinária, a questão 4a avalia a presença da noctúria
e as questões 5a e 6a questionam sobre a presença de urgência e incontinência
de urgência, respectivamente, cada pergunta pode apresentar respostas que variam
de 0-4, com score total que pode oscilar entre 0 a 16 pontos, e quanto maior o
valor encontrado, maior o comprometimento. As questões 3b, 4b, 5b e 6b são
referentes ao impacto na QV de cada sintoma perguntado nas questões anteriores.
As respostas geram um score que varia entre 0-10 e quanto maior o valor
encontrado, maior o comprometimento da QV [8].
Para a intervenção foi utilizado o protocolo de treinamento
dos músculos do assoalho pélvico (TMAP) através do “Treinamento dos quatro Fs” [9] que é fundamentado na ordem cronológica do
aprendizado motor, consistindo em: find (encontrar), feel (sentir), force (incremento de força), functional training (treino funcional) e follow through (seguimento), respectivamente consistem em: 1)
aprender a contrair o assoalho pélvico; 2) dominar a contração e o relaxamento,
sem co-contrações de musculaturas paralelas e uso da
manobra de Knack com a participante deitada em
decúbito dorsal; 3) aumentar força, potência, endurance
e treinar a pré-contração; e por fim 4) dar seguimento ad eternum
ao tratamento [10].
Desta forma, na sessão 1 foi realizada a conscientização do
assoalho pélvico (find). Também foram dadas
orientações comportamentais: estabelecer um ritmo miccional com intervalos de
em média 3 horas; evitar ingestão excessiva de líquidos à noite; evitar
ingestão excessiva de cafeína e álcool [11].
Na sessão 2 e 3 houve o uso da Massagem Perineal (MP) com
deslizamento e inibição muscular de pontos-gatilhos por digito-pressão por 10
minutos. Também foi utilizada a Eletroestimulação Transcutânea do Nervo Tibial
(ETNT) por 30 minutos (largura da onda de 200 µs, frequência de 10 Hz,
intensidade submáxima no nível sensitivo tolerável) [12]. Ademais, foi
solicitada a contração seletiva e precisa ao comando (feel),
em que a participante contraia os MAP sob comando em situações que exijam
aumento da pressão intra-abdominal (the Knack) em decúbito dorsal.
As sessões 4, 5 e 6 foram destinadas ao ganho de força,
potência e resistência (force). Foram feitas 10 contrações máximas sustentadas
por 8 segundos e relaxamento de 10 segundos; para explosão: 15 contrações
máximas com relaxamentos totais; para resistência: contrações máximas
sustentadas por 30 segundos com relaxamento de 30 segundos. O uso da MP e ETNT
foram utilizados em todas as sessões. A partir da sessão 4, as participantes
foram instruídas a realizar os mesmos exercícios em casa por 2 vezes na semana
(follow through).
As sessões 7 e 8, além da ETNT, houve o treino funcional (functional training), em que de pé a participante foi
submetida a situações que exigiam aumento da pressão intra-abdominal simulando
situações cotidianas como subir e descer degrau e agachamento por 8 vezes cada
em 3 séries associadas à contração dos MAP sob comando da pesquisadora.
As orientações comportamentais foram reforçadas durante
todos os atendimentos. A intervenção foi realizada em 8 sessões em consultório,
1 vez por semana, e 10 sessões em casa, 2 vezes por semana.
Os dados foram armazenados em planilha eletrônica Excel®
para o processamento. Com relação à análise, foram utilizados recursos de
computação, por meio do processamento no sistema Microsoft Excel, Statistic Package for Social Sciences (SPSS) versão 22.0. Foi utilizado o teste de Wilcoxon sign rank para comparar
a pontuação total do questionário antes e após a intervenção fisioterapêutica.
Os resultados são demostrados em Box Plot, mediana, e
intervalo interquartil. Para os testes foram assumidos o nível de significância
de 5%.
Foram abordadas 108 mulheres, dessas, 25 (23,14%) aceitaram
participar do estudo e compareceram à avaliação, porém, apenas 10 (9,25%)
terminaram o tratamento e foram reavaliadas.
A idade média foi 50,4 ± 7,16 anos e haviam terminado o
TCCU em média a 2,3 ± 0,67 anos. Todas as participantes foram submetidas a
radioterapia por teleterapia associada à
quimioterapia, sendo que 80% delas realizaram radioterapia por braquiterapia e
70% realizaram histerectomia. A caracterização da amostra está descrita na
Tabela I.
Tabela
I - Caracterização
da amostra (n = 10)
A mediana em relação aos sintomas da SBH e o score total do
questionário ICIQ-OAB antes e depois do protocolo fisioterapêutico estão
descritos na Tabela II e Figura 1, indicando melhora estatisticamente
significante nessas variáveis, exceto no sintoma relacionado a frequência
urinária, visto que a mediana inicial já era 0 antes do protocolo, que
representa a frequência de 1 a 6 micções por dia.
Tabela
II - Sintomas da SBH
de acordo com o questionário ICIQ-OAB antes e depois do protocolo
fisioterapêutico (n=10)
IC = Intervalo Interquartilico;
*Teste de Wilcoxon, p ≤ 0,05
Figura
1 - Gráfico em boxplot mostrando mediana do score ICQ-OAB antes e após o
tratamento
Sobre o impacto dos sintomas da SBH na QV, a tabela III
mostra a mediana em relação ao grau de incômodo em relação a esses sintomas e o
score total do questionário ICIQ-OAB quanto a QV, antes e depois do protocolo
fisioterapêutico. Os resultados mostram melhora estatisticamente significante
em todas as variáveis.
Tabela
III - Grau de
incômodo em relação aos sintomas da SBH abordados no ICIQ-OAB antes e depois do
protocolo fisioterapêutico (n = 10)
IC = Intervalo Interquartilico;
*Teste de Wilcoxon pareado, p ≤ 0,05
O objetivo deste estudo foi avaliar os efeitos da
Fisioterapia nos sintomas da SBH em mulheres submetidas ao tratamento do CCU.
Os achados demonstram que após a intervenção fisioterapêutica ocorreu redução
dos sintomas da SBH, assim como do impacto destes na QV.
A SBH é entendida como um grave problema de saúde pública,
podendo ser encontrada em qualquer período da vida e muitas vezes associada
como consequência do tratamento de CCU, sendo responsável por gerar
desdobramentos físicos, econômicos, psicológicos e sociais para as mulheres
acometidas [13].
Sabe-se que as alterações vasculares e neurais causadas
pela radioterapia pélvica, que levam a hipóxia tecidual, fibrose e diminuição
da capacidade da bexiga geram inúmeros sintomas referentes ao trato urinário
[14,15].
Concomitantemente, Emirar et
al. [16] concluíram que pacientes com CCU que receberam radioterapia ou
radioterapia mais histerectomia apresentaram disfunções do sistema urinário
inferior após o tratamento. Dados semelhantes foram registrados por Chun et al.
[17], os quais relataram a presença de disfunções urinárias em pacientes com
CCU tratadas por meio da histerectomia.
Como forma de tratamento para a SBH, a Sociedade
Internacional de Continência recomenda o método conservador, incluindo
Fisioterapia e Terapia Comportamental [18].
O TMAP permite a contração e
relaxamento voluntário da musculatura pélvica, estudos
afirmam que esse aumenta
o tônus e o recrutamento muscular local com consequente
incremento da
vascularização pélvica, além da
conscientização e propriocepção da
musculatura
da região perineal e, associados com a realização
da MP promovem melhora da
contratilidade [19,20,21].
A ETNT, por sua vez, permite a modulação de estímulos que
chegam à região vesical, o que gera inibição dos neurônios parassimpáticos e
consequentemente confere diminuição das contrações do detrusor, enquanto o
tratamento comportamental busca mudanças nos hábitos das pacientes, de modo que
todas estas modalidades reduzem os danos aos MAP e mostram resultados positivos
no tratamento de sintomas urinários nessa patologia em questão [22,23].
Prova disso foi o estudo de Fitz et
al. [24] no qual foi empregado um programa de treinamento dos MAP que
consistiu em 24 sessões ambulatoriais (2x/semana + TMAP domiciliar), e ao final
observou-se significativa melhora dos sintomas urinários, e da QV. Da mesma
forma, em outra pesquisa que utilizou a ETNT em um grupo de pacientes com SBH
houve redução significativa dos sintomas urinários e do impacto na QV, os quais
foram avaliados por meio do ICIQ-OAB [25].
Além disso, as orientações da TC com mudanças efetivas no
estilo de vida das pacientes, que foi observado durante esta pesquisa, são
apontadas na literatura como capazes de evitar intervenções cirúrgicas para
sintomas urinários, além de apresentar mínimos efeitos colaterais [11].
As limitações deste estudo concernem em não contar com um
grupo controle, o que pode gerar vieses quanto à recuperação natural da doença,
e a melhora ter ocorrido por efeito Hawthorne.
Este estudo sugere que o tratamento fisioterapêutico
através do protocolo utilizando TMAP associado a MP, ETNT e TC após o
tratamento do CCU culmina em melhora dos sintomas relacionados a SBH, assim
como na redução do impacto destes na QV das pacientes estudadas. Com esses
resultados percebe-se que as mulheres vítimas de CCU devem ser analisadas de
maneira abrangente, visto que muitas vezes os profissionais concentraram seus
esforços apenas na maximização da taxa de sobrevivência. Ratifica-se a
importância da avaliação e tratamento fisioterapêutico após o TCCU como parte
do atendimento rotineiro dessas mulheres, garantindo, assim, a integralidade do
cuidado.