Fisioter
Bras 2021;2293);346-364
ARTIGO
ORIGINAL
Saúde
da população LGBT+: a formação em fisioterapia no cenário dos direitos humanos
Health of LGBT+ population:
education in physiotherapy in the human rights scenario
Gabriel
Paz de Lima*, Ana Cristina Vidigal Soeiro, D.Sc.**, Soanne Chyara Soares Lira, D.Sc.***
*Fisioterapeuta
formado pela Universidade do Estado do Pará (UEPA), **Docente da Universidade
do Estado do Pará (UEPA), ***Docente da Universidade do Estado do Pará (UEPA)
Recebido
em 3 de abril de 2021; aceito em 24 de junho de 2021.
Correspondência: Gabriel Paz de Lima, Passagem Dalva
601, Marambaia, 66615-080 Belém PA
Gabriel Paz de Lima: gabriel-lima-@hotmail.com
Ana Cristina Vidigal Soeiro: acsoeiro1@gmail.com
Soanne Chyara
Soares Lira: soanne.chyara@gmail.com
Resumo
Introdução: A universalidade, a equidade e a
integralidade são os pilares do Sistema Único de Saúde que normatizam o acesso
à saúde no país. Dentro do escopo da integralidade, está a assistência à
população de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros (LGBT+), que ainda é
vitimada pelo preconceito e discriminação no atendimento de suas demandas em
saúde. No campo da Fisioterapia, é necessário dar evidência a essa temática
como uma estratégia de visibilidade e problematização sobre a necessidade do
respeito à diversidade sexual e de gênero. Objetivo: Discutir o papel da
formação acadêmica em Fisioterapia no atendimento às demandas em saúde da
população LGBT+. Métodos: Trata-se de um estudo do tipo exploratório,
transversal e descritivo, realizado com estudantes de graduação em Fisioterapia
por meio de um questionário. Resultados:
Os resultados apontaram lacunas
em relação à temática na
formação acadêmica, indicando a necessidade de
inclusão de conteúdos acadêmicos relacionadas
à saúde da população LGBT+ na
graduação
em Fisioterapia. Conclusão: Os conteúdos acadêmicos relacionados à saúde
da população LGBT+ são escassos durante a graduação em Fisioterapia. Esta é uma
realidade que necessita ser reformulada, pois pode tornar-se um ambiente
favorável à desconstrução de dúvidas e preconceitos, além do preparo para a
assistência.
Palavras-chave: Fisioterapia; direitos humanos;
minorias sexuais e de gênero; educação superior.
Abstract
Introduction: Universality,
equity and comprehensiveness are the pillars of the Unified Health System that
regulate access to health in Brazil. Within the scope of comprehensiveness,
there is assistance to the Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender (LGBT+)
population, who are still victimized by prejudice and discrimination in meeting
their health demands. In the field of Physical therapy, it is necessary to give
evidence to this theme as a strategy of visibility and questioning about the
need to respect sexual and gender diversity. Objective: To discuss the
role of academic education in Physical therapy in meeting the health demands of
the LGBT+ population. Methods: It is exploratory, cross-sectional
and descriptive study, conducted with Physical therapy students through a
questionnaire. Results: The results showed gaps in relation to the theme
in academic education, indicating the need to include academic content related
to health of the LGBT+ population in undergraduate Physical therapy. Conclusion:
Academic content related to health of the LGBT+ population is punctual and rare
during the Physical therapy undergraduate course. This is a reality that needs
to be reformulated, as it can become a favorable environment for deconstructing
doubts and prejudices, in addition to preparing for assistance.
Keywords: Physical Therapy Specialty; human
rights; sexual and gender minorities; higher education.
O acesso à saúde é estabelecido e determinado por vários
documentos nacionais e internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos
Humanos [1], a Declaração de Alma-Ata [2], e a Constituição Brasileira de 1988,
que criou o Sistema Único de Saúde (SUS), configurado como uma das maiores
conquistas nacionais [3]. No Brasil, apesar de tais conquistas, a garantia do
direito à saúde ainda é marcada por muitos desafios que precisam ser
problematizados no âmbito das práticas e da educação em saúde, de modo que a
integralidade, equidade e justiça de fato se operacionalizem no cotidiano dos
serviços.
Dentro do escopo da integralidade, um dos princípios
doutrinários do SUS está a assistência à população em suas necessidades
específicas. Como exemplo, cita-se a assistência à população de Lésbicas, Gays,
Bissexuais e Transgêneros (LGBT+), que engloba o combate a todas as formas de
violência contra esse grupo, enfrentamento da LGBTfobia,
reconhecimento e respeito ao uso do nome social, além de assistência
multiprofissional às necessidades de saúde [4,6].
Há várias normatizações que orientam a assistência a
indivíduos LGBT+, como os Princípios de Yogyakarta, um amplo espectro de normas
de direitos humanos, com aplicação a questões de orientação sexual e identidade
de gênero [5], a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSI LGBT+), a qual operacionaliza as
estratégias e metas nas esferas do governo brasileiro [6], além de vários
decretos, leis e programas. Entretanto, nem sempre essa assistência se dá na
forma ideal. O Brasil ainda é um dos campeões em assassinatos de pessoas LGBT+,
violência de gênero e preconceito [7], o que traz à tona a necessidade de maior
problematização sobre a temática.
Nesse cenário, a Fisioterapia tem ofertado inúmeras
contribuições, tanto no plano individual quanto coletivo, por meio de ações de
promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e reabilitação, priorizando
a melhora da qualidade de vida, sem discriminação de qualquer forma ou
pretexto, segundo os princípios do sistema de saúde vigente no Brasil [8].
Assim, é esperado que os profissionais já sejam formados no sentido de contribuir
para a consolidação das conquistas sociais e legais que legitimam o acesso
integral à saúde, especialmente aqueles relacionados à população LGBT+, assunto
que precisa ser debatido ao longo da trajetória universitária dos futuros
fisioterapeutas.
Sabe-se
que a formação de um profissional ético,
humanizado
e atento às demandas da sociedade vai ao encontro do compromisso
social da
profissão, o que demanda o fortalecimento do papel social e
político dos
profissionais rumo a um maior protagonismo na construção
de novos paradigmas de
atenção em saúde, incluindo a integralidade em
ações para a saúde da população
LGBT+ [9].
Considerando
a relevância de tais discussões no cenário dos
direitos humanos, o presente estudo foi projetado com o objetivo de
discutir o
papel da formação acadêmica em Fisioterapia no
atendimento às demandas em saúde
da população LGBT+. Trata-se de uma estratégia
para dar visibilidade à temática
e assim contribuir para novas estratégias de enfrentamento e
melhoria das condições
de atenção à saúde a essa
população, com ênfase nas
contribuições que a
Fisioterapia tem a ofertar neste contexto.
A
pesquisa foi realizada conforme as Resoluções 466/12 e
510/16, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), as quais
regulamentam
nacionalmente as pesquisas envolvendo seres humanos. Em atendimento
às
recomendações, o estudo somente teve início
após aprovação por Comitê de Ética
em Pesquisa (CEP), sob parecer número 3.766.237.
Trata-se de um estudo exploratório do tipo quantitativo e
analítico-descritivo, realizado com estudantes do curso de Fisioterapia da
Universidade do Estado do Pará (UEPA), regularmente matriculados do 2º ao 5º
ano nos campi de Belém e Santarém, durante o período em que foi realizada a
pesquisa.
A coleta de dados ocorreu por meio da aplicação de um
questionário semiestruturado com aplicação online, por meio do uso da
plataforma Google Forms. O instrumento continha
informações sobre dados pessoais, inclusão da temática na formação acadêmica,
conhecimento dos dispositivos éticos e legais sobre direito à saúde e preparo
pessoal e acadêmico frente à temática. No questionário, foram utilizadas
perguntas abertas e fechadas, e em algumas delas, utilizou-se o modelo de
escala do tipo Likert, que especifica o nível de
concordância do participante com uma determinada afirmação.
O estudo foi dividido em três etapas. Na primeira fase,
após a aprovação no CEP, foi realizado um levantamento do quantitativo de
alunos matriculados, quando foi disponibilizado o acesso aos participantes por
parte da coordenação do curso. Durante essa fase, também foi realizado o acesso
ao Projeto Pedagógico do Curso (PPC). Na segunda etapa, foi feito o convite
para participação na pesquisa segundo os critérios de inclusão e exclusão, e
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), seguida do
preenchimento do questionário online. A última etapa incluiu a organização,
tabulação, análise e descrição dos resultados, realizado com uso do programa
Microsoft Excel 2019®.
A amostra foi composta de 177 participantes com mais de 18
anos, com média de idade de 20,9 (± 2,1), sendo 66,1% pertencentes ao campus
Belém e 33,9% ao campus Santarém. Os dados sociodemográficos podem ser
observados na Tabela I.
Tabela
I - Características
sociodemográficas dos participantes
Fonte: Dados da pesquisa, 2021.
Quando questionados se conteúdos relacionados aos direitos
da população LGBT+ são abordados na graduação em Fisioterapia, 84,2%
responderam Raramente ou Nunca. Dentre os que responderam afirmativamente
(15,8%), 44,8% responderam que tais assuntos foram abordados no 1º ano de
curso, 23% no 2º ano, 18,2% no 3º ano, 11,9% no 4º ano e 2,1% no último ano de
graduação. A Figura 1 relaciona em quais eixos e disciplinas esses conteúdos
foram abordados.
Fonte:
Dados da pesquisa, 2021.
Figura
1 – Eixos e
disciplinas que abordaram a saúde LGBT+ no curso de Fisioterapia
Investigou-se também o grau de conhecimento dos estudantes
sobre os seguintes temas: Princípios de Yogiakarta,
Política Nacional de Saúde Integral LGBT+, Cirurgia de Redesignação Sexual
(CRS), Processo Transsexualizador, Nome Social e LGBTfobia (Figura 2).
Fonte: Dados da pesquisa, 2021.
Figura
2 – Conhecimento dos
estudantes do curso de Fisioterapia sobre temas pertinentes a saúde LGBT+
No que concerne à percepção dos participantes, apesar dos
avanços ocorridos nos últimos anos, os direitos da população LGBT+ ainda são
desrespeitados em alguns cenários, sendo necessário o aumento de ações
educativas e medidas punitivas sobre o tema. Ademais, foi citada a fraca
representatividade dessa parcela da população em órgãos governamentais, fato
que enfraquece a formulação de políticas públicas, perpetuando assim as
dificuldades enfrentadas na assistência universal e integral a esses
indivíduos.
Conforme demonstrado na Tabela II, 19,8% dos estudantes
afirmaram ter conhecimento de ações desenvolvidas por órgãos governamentais em
defesa da população LGBT+, e a ação mais citada pelos participantes foi a
adoção do nome social.
Tabela
II – Conhecimento de
ações desenvolvidas por órgãos governamentais em defesa da população LGBT+
Fonte: Dados da pesquisa, 2021.
Do total de estudantes, 86,4% concordaram que o curso de
graduação em Fisioterapia tem uma abordagem voltada a uma formação tecnicista,
com pouca ênfase em temas sociais. Além disso, 96% concordaram que a discussão
sobre a saúde da população LGBT+ ainda é muito escassa na formação acadêmica, e
98,3% concordaram que a Fisioterapia precisa ampliar o debate sobre os direitos
da população LGBT+, como estratégia de enfrentamento ao preconceito e
discriminação.
Nas respostas obtidas, observou-se que a abordagem do tema
na graduação ainda é realizada de forma bastante incipiente e pontual. Em
grande medida, o contato com o tema ocorre por meio de experiências pessoais ou
debates realizados por ligas acadêmicas, centros acadêmicos e outras atividades
extracurriculares. Outrossim, os participantes descreveram que, em se tratando
do meio acadêmico, há pouco debate acerca das políticas públicas voltadas a
saúde LGBT+. Alguns participantes acrescentaram que o curso de Fisioterapia tem
buscado se distanciar de uma formação puramente tecnicista, trazendo à tona uma
abordagem mais psicossocial e humanizada, porém a ênfase na temática ainda é
bastante rara em relação a outros conteúdos acadêmicos.
Do total de participantes, 98,3% concordam que a introdução
de conteúdos voltados aos direitos da população LGBT+ é importante para
sensibilizar os futuros profissionais, entretanto, 77,4% relataram que o curso
não oferece condições para que o aluno se sinta preparado para atuar
profissionalmente no atendimento às demandas em saúde da população LGBT+.
Dentre os participantes, apenas 41,2% dos acadêmicos se sentem preparados para
atender ao público LGBT+
No que tange à compreensão de conceitos como gênero,
identidade de gênero e orientação sexual, 87% dos alunos relataram ter
conhecimento sobre o significado das expressões. A Figura 3 apresenta um
demonstrativo dos conteúdos relacionados ao tema e que haviam sido contemplados
até aquele momento na formação em Fisioterapia.
Fonte: Dados da pesquisa, 2021.
Figura
3 – Conteúdos da
temática abordados ao longo do curso de graduação em Fisioterapia
Os participantes foram indagados acerca de situações de LGBTfobia ocorridos dentro da universidade. Do total, 22%
dos estudantes afirmaram que já haviam presenciado essa situação, conforme a
Tabela III.
Tabela
III – Situações de LGBTfobia dentro da universidade
Fonte: Dados da pesquisa, 2021.
Marinho [10] faz uma reflexão sobre a qualificação dos
profissionais de saúde, no âmbito da formação acadêmica, para o atendimento à
população LGBT+, segundo os princípios do SUS e da PNSI LGBT+. A autora relata
que apesar de existirem avanços, ainda são muito recorrentes os episódios de
preconceito e discriminação nos serviços de saúde, o que pode ser justificado
pelo desconhecimento e despreparo dos profissionais para lidar com as
necessidades dessa população, particularmente no que tange ao reconhecimento da
diversidade e dos direitos sexuais. Vale dizer que, na presente pesquisa, mais de
80% dos participantes declararam que não houve inclusão de temáticas
relacionadas à saúde da população LGBT+ durante a formação acadêmica.
Como retrato da escassa abordagem de tais assuntos na
formação em saúde, exemplifica-se o estudo de Tavares et al. [11], no
qual foi avaliado o nível de conhecimento de 202 estudantes da área da saúde
acerca da PNSI LGBT+. Do total, 43 participantes eram estudantes de
Fisioterapia. Dentre os achados, observou-se que apenas 29% relataram conhecer
a política, e 57% destes, adquiriram esse conhecimento por meio de fontes
externas à academia, à semelhança do presente estudo, já que apenas 8,5% dos
participantes declararam ter um conhecimento bom ou excelente sobre a política.
Cabe também destacar que, no mesmo estudo, os autores
investigaram a inserção de temáticas relacionadas à saúde da população LGBT+,
84% dos participantes afirmaram que tais temáticas não haviam sido abordadas,
resultado que também corrobora os dados da pesquisa, haja vista que a maioria dos
participantes respondeu negativamente a esse questionamento.
Gomes [12], ao realizar um estudo em instituições de ensino
superior públicas do estado do Rio Grande do Norte, também analisou a inserção
das temáticas de gênero, sexo e orientação sexual na formação em saúde,
incluindo a Fisioterapia. Com a participação de 483 estudantes, a pesquisa
constatou a abordagem de alguns temas direcionados à saúde LGBT+, observando a
maior presença de conteúdos relacionados à saúde das pessoas transexuais e travestis,
do que aqueles relacionados à PNSI LGBT+. Conforme demonstrado nos resultados,
temáticas incluindo relações de gênero e uso do nome social e processo transsexualizador foram mencionados com maior frequência
pelos participantes. Ademais, os estudantes que haviam tido acesso e
participação em movimentos sociais e se autodeclaram como LGBT+ demonstraram
mais familiaridade com a temática.
Ao analisar os achados do estudo, observa-se que a formação
acadêmica pode e deve ser enriquecida por experiências individuais, as quais
facilitam não só o acesso a informações, mas também atitudes diferenciadas em
relação ao tema, favorecendo a superação das lacunas existentes nos componentes
curriculares. Entretanto, é necessário que as atividades acadêmicas possam
também estimular a reflexão e problematização de assuntos relacionados à saúde
da população LGBT+ e sua relação com as políticas públicas. Vale dizer que no
presente estudo, somente 19,8% conheciam ações governamentais realizadas em
defesa dessa população, o que indica a necessidade de fortalecer e ampliar o
debate sobre a relação do tema com os direitos humanos, incluindo o direito à
saúde.
Ferreira et al. [13] realizaram uma análise do
acesso e da atenção integral na rede do SUS, na perspectiva da diversidade do
gênero. Em relação à população lésbica, as barreiras encontram-se no acesso aos
serviços de saúde e no atendimento ginecológico; para os homens gays,
apontam-se fragilidades ao acesso para aqueles com comportamentos afeminados.
No que tange às travestis, a equidade do cuidado, por meio de ambulatórios
específicos, foi apontada com uma estratégia essencial a ser abordada; e, para
as pessoas transsexuais, o uso do nome social revelou-se como primordial na
rotina dos serviços de saúde. Além disso, pessoas transgêneros sofrem
discriminação e constrangimento em função do desconhecimento e desrespeito de
seus direitos, o que aumenta sua condição de vulnerabilidade, neste caso,
resultado de concepções heteronormativas e morais, fundadas em estigma e
preconceito.
Como consequência desse cenário de desrespeito aos direitos
humanos, a população LGBT+ experencia grandes obstáculos ao acesso em saúde
[14]. Pesquisas destacam repercussões negativas na saúde mental, como taxas de
suicídio mais elevadas [15], e também na saúde física,
sendo maiores as chances de desenvolverem doenças cardiovasculares, câncer,
diabetes e outras comprometimentos [16,17].
Ross e Setchell [18] realizaram
um estudo com 108 pessoas com o objetivo de identificar as experiências da
população LGBT+ em consultas fisioterapêuticas. Como resultado, os autores
descreveram comportamentos de discriminação e falta de conhecimento sobre
questões de saúde de pessoas transgêneros, com prejuízos na qualidade do
atendimento prestado e da assistência, deixando-os incomodados. Além de várias
situações constrangedoras relatadas, o medo da discriminação também foi
relatado pelos autores, já que muitos pacientes tinham receio de expor suas
queixas por medo de represálias, mesmo quando fossem relevantes.
Entrevistas realizadas em um estudo que contou com a
participação de 15 transsexuais de Campo Grande/MS revelaram as percepções
dos participantes a respeito da atuação dos profissionais dos estabelecimentos
de saúde em relação ao acolhimento [19]. Do total de participantes, 11
relataram episódios de desconhecimento, despreparo e não utilização do nome
social, apesar de seu uso estar previsto na esfera da administração pública
federal, de acordo com o decreto Nº 8.727, de 2016 [20], além de ser descrito
na Carta dos Direitos dos Usuários de Saúde [21] e na Portaria Nº 2.836, de
2011, [22], que instituiu a PNSI LGBT+ [6].
Em comparação aos resultados da presente pesquisa, o
conhecimento e adoção do nome social foi bastante evidente, pois 56,6% dos
estudantes relatam ter um conhecimento bom ou excelente sobre o tema, porém,
apenas 17% declararam que o assunto havia sido abordado ao longo da graduação,
o que representa um quantitativo insuficiente, em se tratando de um direito
assegurado no ordenamento jurídico brasileiro.
De modo geral, o acesso à saúde pela população trans no
Brasil ainda é um desafio a ser superado. Rocon et
al. [23], por meio de uma revisão integrativa, constataram inúmeros
desafios ao acesso da população transgênero ao SUS, destacando-se a discriminação,
a patologização da transexualidade, a falta de
qualificação dos profissionais, o acolhimento inadequado, a escassez de
recursos para o financiamento de políticas e programas voltados ao combate à
discriminação homofóbica e trans-travestifóbica, além
da ausência de serviços específicos, tal como o processo transsexualizador.
Cabe mencionar que, na presente pesquisa, somente 19,8% dos participantes
conheciam as ações governamentais que têm sido desenvolvidas em atendimento às
necessidades em saúde da população LGBT+, fato que produz um cenário de invizibilização das medidas de enfrentamento para os
problemas enfrentados.
Nesse cenário, torna-se imprescindível a identificação e
reflexão acerca dos preconceitos e discriminações enfrentados pela população
LGBT+ nas instituições e nos serviços de saúde. O Dossiê Saúde das Mulheres
Lésbicas – Promoção da Equidade e da Integralidade [24] apresenta dados que
evidenciam as desigualdades de acesso aos serviços de saúde pelas mulheres
lésbicas e bissexuais. Com relação às mulheres que procuram serviços de saúde,
cerca de 40% não revelam sua orientação sexual, e das que revelam, 28%
afirmaram preferir maior rapidez no atendimento médico e 17% relataram que os
médicos deixam de solicitar exames que para elas são considerados necessários,
evidenciando um “tabu” que ainda persiste no que tange à orientação sexual de
mulheres em consultas ginecológicas. Além disso, patologias como o câncer de
mama e de colo de útero são agravadas devido à baixa utilização dos serviços de
saúde por essas mulheres. Entre os fatores associados que geram o adoecimento,
nota-se o uso abusivo de drogas ilícitas, tabaco, álcool e o grande sofrimento
psíquico [25]. De modo geral, tais evidências sugerem que a desinformação e o
preconceito podem ocasionar, como um de seus desdobramentos, a dificuldade de
acesso a bens e serviços em saúde.
Em relação às travestis e aos transexuais, Costa et al.
[26] discutem a grande dificuldade na utilização dos banheiros públicos que
levam, consequentemente, a frequentes problemas urinários. Ademais, muitos
indivíduos sentem-se receosos e constrangidos em procurar os serviços públicos,
por conta da não utilização do nome social pelos profissionais. Há também casos
em que esta população sofre complicações em decorrência de procedimentos e
cirurgias, além do uso indiscriminado de hormônios e aplicação de silicone
industrial, muitas vezes clandestinamente.
No que concerne à formação em saúde, a educação sexual
mostra-se ordenada em um modelo cisgênero,
heteronormativo e organicista, promovendo uma visão reducionista e simplista da
sexualidade e identidade de gênero, com ênfase em aspectos reprodutivos e
patológicos [27]. A inserção de tais assuntos na formação em saúde objetiva a
oferta de conhecimentos, sensibilização para a mudança de atitudes,
desenvolvimento de habilidades para assistir o indivíduo em suas necessidades
de saúde, além de promover o atendimento integral, a humanização em saúde e a
garantia dos direitos humanos [28].
Os achados obtidos com a presente pesquisa demonstraram que
é preciso aprofundar as discussões sobre a formação do fisioterapeuta e o seu
papel social e político na construção de novos paradigmas de atenção em saúde,
incluindo a integralidade em suas ações [9]. O fato de mais de 90% dos
participantes terem afirmado que a abordagem dessas temáticas ao longo da
formação acadêmica precisa ser ampliada, demonstra que há uma sensibilização
para com a temática. Cabe ressaltar que, apesar de reconhecerem a importância
da inclusão de temáticas voltadas à saúde da população LGBT+, 41,2% dos
participantes não se sentiam preparados para atender a essa população.
O PPC do curso de Fisioterapia da UEPA [29] foi reformulado
em 2016 e, desde então, adota as metodologias ativas como estratégia
metodológica da formação em saúde. Alguns temas sobre saúde LGBT+ estão
previstos no PPC, como a sexualidade, identidade sexual e políticas públicas de
saúde à atenção integral ao homem e mulher, incluindo a perspectiva de gênero,
sexualidade e raça. Nessa conjuntura, os variados temas podem ser abordados por
meio de discussões em grupos, os chamados Módulos Tutoriais, e das atividades
teórico-práticas, por meio do eixo de Habilidades Profissionais, que engloba
assuntos como ética, ciências humanas e sociais, semiologia, recursos
fisioterapêuticos, dentre outros, e o eixo Morfofuncional, responsável pela
abordagem da perspectiva biológica do ser humano.
Como foi possível constatar, a inclusão de tais temáticas
de saúde LGBT+ foi mais acentuada nos primeiros anos do curso, particularmente
nas Habilidades Profissionais e nos Módulos Tutoriais, com 51% e 26%
respectivamente, demonstrando que tais eixos são propícios para debates e
problematizações frente à temática. No entanto, merece destaque o fato de que a
inclusão de tais temáticas tende a diminuir, à medida que o curso avança. Tal
resultado precisa ser melhor compreendido, haja vista
que as últimas séries representam uma oportunidade de maior integração com os
serviços, e, portanto, com os usuários.
Cabe salientar que a intervenção fisioterapêutica tem
importante papel na equipe multiprofissional, incluindo diversas ações,
realizadas em diferentes cenários da atenção em saúde. Em pacientes que
realizaram a CRS, por exemplo, as complicações mais comuns descritas na
literatura são: estenose vaginal e uretral, prolapso vaginal, disfunções
sexuais e fraqueza da parede vaginal [30], condições que podem ser tratadas por
meio da fisioterapia pélvica e objetivam reestabelecer a funcionalidade da
região [31]. É necessário atentar-se também para queixas que o/a paciente pode
ter a longo prazo, como dispareunia, queixas urinárias decorrentes da cirurgia,
complicações do uso de hormônios por um período prolongado, dentre outros [32].
Entretanto, se o profissional não estiver sensibilizado para o impacto de tais
condições na qualidade de vida dos usuários, sua capacidade de atenção a esse
público estará limitada.
Estudos e pesquisas demonstraram que o campo de atenção e
cuidado à saúde da população LGBT+ é vasto, o que demanda a mudança urgente nos
paradigmas da formação em saúde. Certamente, o investimento em campanhas
educativas, a qualificação da rede de serviços e o enfrentamento do
preconceito, discriminação, violência e exclusão ainda constituem barreiras à
integralidade e à humanização das práticas em saúde [33,34]. Trata-se de um
espaço rico em desafios e possibilidades, no qual a Fisioterapia pode oferecer
importantes contribuições, particularmente no que concerne ao direito à saúde,
com o respeito e a seriedade que o tema requer.
A população LGBT+ possui especificidades e necessidades
diversas em saúde, e a Fisioterapia, como área integrante da equipe
multiprofissional, está inclusa nesse cenário, podendo contribuir de forma
significativa na assistência e suporte a essas demandas. O desrespeito ao nome
social, a LGBTfobia nos serviços de saúde e a patologização da transexualidade são algumas das barreiras
enfrentadas por esta população, afetando diretamente o acesso universal,
integral e equânime no âmbito da assistência em saúde. Tais problemas precisam
ser interpretados como desafios à efetivação dos princípios do SUS e à defesa
dos direitos humanos.
Os achados do estudo apontaram que os conteúdos acadêmicos
relacionados à saúde da população LGBT+ são escassos na formação em
Fisioterapia, ainda que algumas atividades curriculares promovam reflexões
sobre o assunto, as quais ocorrem de modo incipiente e pontual, sem
aprofundamentos e problematizações. Ademais, observou-se que as atividades
acadêmicas adotam um modelo cisgênero e
heteronormativo, promovendo uma visão simplista da diversidade sexual e de
gênero, demonstrando uma realidade que precisa ser reformulada. Nesse aspecto,
práticas pedagógicas centradas nos estudantes, como as metodologias ativas,
podem propiciar um ambiente favorável à desconstrução de estigmas, dúvidas,
mitos e preconceitos, além da aquisição de conhecimentos e habilidades para a
atenção em saúde.
O SUS possui a potência necessária para promover a
cidadania da população LGBT+, na medida em que efetivar a universalidade do
acesso, a integralidade da atenção, escuta e acolhimento, além da equidade,
considerando as demandas próprias de saúde desta população. Outrossim, é
primordial que os profissionais também sejam sensibilizados e capacitados para
promover ações mais inclusivas e acolhedoras nos espaços de atenção à saúde, de
modo a fazer valer na prática o atendimento às necessidades da população LGBT+.
Pretende-se que os achados do presente estudo possam
impulsionar novas reflexões e debates sobre a temática ao longo da formação
profissional. É necessária e urgente uma maior atenção por parte das
instituições de ensino superior no que tange à temática, não só no
enfrentamento e superação de atitudes discriminatórias contra a população
LGBT+, mas também, no fortalecimento do respeito e garantia dos direitos
humanos para esta população.
Financiamento
Toda
a pesquisa foi realizada com financiamento próprio dos autores.