Fisioter Bras 2021;2292):168-179
ARTIGO
ORIGINAL
Propósito
de vida, dor e cognição de idosos domiciliados de uma cidade do interior do
Amazonas
Purpose of life, pain and
cognition of elderly householders in a city inside Amazonas
Yandra
Alves Prestes*, Ecilene Santos da Silva*, Higor Gregore Alencar Oliveira*, Marildo da Silva Pereira*, Hércules Lázaro Morais Campos**
*Discente
do curso de Fisioterapia do Instituto de Saúde e Biotecnologia da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM) Coari/AM, **Docente do curso de Fisioterapia do
Instituto de Saúde e Biotecnologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM),
Coari/AM
Recebido
em 5 de dezembro de 2020; aceito em 12 de fevereiro de 2021.
Correspondência: Yandra Alves
Prestes, Universidade Federal do Amazonas, Estrada Coari/ Mamiá,
305, 69460-000 Coari AM, Brasil
Yandra Alves Prestes:
yprestess18@hotmail.com
Ecilene Santos da Silva:
ecilenesantos@hotmail.com
Higor Gregore
Alencar Oliveira: mister.gregore@gmail.com
Marildo da Silva Pereira:
marildo11_tj@hotmail.com
Hércules Lázaro Morais Campos: herculeslmc@hotmail.com
Resumo
Introdução: O envelhecimento é um processo natural
e universal inerente ao desenvolvimento, caracterizado por um declínio
fisiológico. Objetivos: Caracterizar e analisar o propósito de vida, dor
e cognição dos idosos domiciliados da cidade de Coari/AM. Métodos:
Estudo de corte transversal descritivo realizado com idosos, acima de 60 anos.
Avaliou-se a função cognitiva pelo Mini-Exame
de Estado Mental, Informant Questionnaire on Cognitive Decline in the Elderly (IQCODE), Teste de Fluência Verbal,
Reconhecimento de Figuras, Teste de Trilha, e Escala de Depressão Geriátrica,
para dor a Escala Numérica da dor e Escala de Faces, e Escala de Satisfação
Global e CAPS19 para o propósito de vida. Resultados: 50 idosos, sendo
80% (40) mulheres, com idade entre 60 a 69 anos 48%
(24). Segundo o MEEM 70% (35) dos idosos têm grave declínio cognitivo, pelo GDS
42% (21) são depressivos. Caracterizou-se a dor 31 (62%) de moderada a insuportável,
sendo a coluna 28% (19) e o joelho 24% (12) os locais mais frequentes. Contudo,
72% (36) dos idosos estão satisfeitos com a vida. Conclusão: Há um grave
déficit cognitivo associado à baixa escolaridade, altas prevalências de dor, e
ainda assim têm boa perspectiva de vida.
Palavras-chave: saúde do idoso; dor; cognição;
satisfação pessoal; visita domiciliar.
Abstract
Introduction: Aging is a
natural and universal process inherent in development, characterized by a
physiological decline. Objectives: To characterize and analyze the
purpose of life, pain, and cognition of the elderly living in the city of Coari/AM. Methods: Descriptive cross-sectional study
conducted with elderly over 60 years. Cognitive function was assessed by the
Mini Mental State Examination Questionnaire on the Cognitive Decline in the
Elderly (IQCODE), Verbal Fluency Test, Figure Recognition, Track Test, and
Geriatric Depression Scale for Numerical Scale Pain. Pain and Face Scale, and
Global Satisfaction Scale and CAPS19 for life purpose. Results: 50
elderly, 80% (40) women, aged 60 to 69 years 48% (24). According to MMSE 70%
(35) of the elderly have severe cognitive decline, by GDS 42% (21) are
depressive. Moderate to unbearable pain 31 (62%) was characterized, with spine
28% (19) and knee 24% (12) being the most frequent sites. However, 72% (36) of
the elderly are satisfied with life. Conclusion: There is a severe
cognitive deficit associated with low education, high prevalence of pain, and
yet have a good life perspective.
Keywords: health of the elderly; pain;
cognition; personal satisfaction; house calls.
O envelhecimento é um processo natural e universal inerente
ao desenvolvimento, caracterizado por um declínio fisiológico, implicando na
diminuição gradual da probabilidade de sobrevivência do organismo [1,2]. Tendo
em vista que cada sistema do organismo tem seu próprio ritmo de envelhecimento,
as condições de saúde física e mental pré-estabelecidas por determinantes
biológicos e ambientais interferem diretamente ao longo de toda a vida. O
envelhecimento também é um processo sociológico, na medida em que cada
sociedade estabelece a idade início da velhice, a qual marca a mudança em
status e em papeis sociais e ainda se relaciona com mudanças na identidade e na
percepção da idade das pessoas [1].
Segundo Lopes et al. [3], o Brasil está em um processo
acelerado de envelhecimento da população, havendo um novo modelo da pirâmide de
envelhecimento da população. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) [4] até 2060 o percentual de pessoas com mais de 65 anos
passará dos atuais 9,2% para 25,5%. Ou seja, 1 em cada 4 brasileiros será
idoso. Com esse aumento da população idosa no país, é inevitável o aumento de
índices de doenças crônicas degenerativas. Dentre elas, as demências ocupam
papel de destaque, pois são progressivas e incapacitantes, implicando no
déficit cognitivo e físico que interferem na vida cotidiana e social do idoso e
seus familiares, criando dependências e altos gastos com cuidados domiciliares
[3], bem como impactando diretamente no propósito de vida dos idosos.
Além da demência, a dor também é outra constante
preocupação com os idosos. No estudo de Bettiol et
al. [5],
admite-se que 25% a 80% dos indivíduos com mais de 60 anos de
idade apresentem dor, sendo vista por muitos como um fator normal do
envelhecimento. Com isto, estima-se que 80% a 85% dos indivíduos
com mais de 65 anos
apresentem, pelo menos, um problema significativo de saúde
predispondo-os à dor
[5] e impactando no propósito de vida dos idosos domiciliados. No Brasil, ainda
são escassas as pesquisas sobre fatores preditores de dor em idosos, sobretudo
estudos epidemiológicos realizados com amostras representativas da população,
capazes de comparações com estudos internacionais [6].
Como agora o foco é a dor, o principal domínio afetado se
refere ao sentimento de direção e metas de vida, ou seja, o propósito de vida.
Apresenta-se diretamente relacionado a uma visão mais positiva de vida, a
percepção de satisfação, crescimento pessoal, felicidade, autoestima, motivação
e apresentar diariamente atividades [6]. De acordo com a Classificação
Internacional de Funcionalidade (CIF), estas alterações das funções cognitivas
se relacionam diretamente com a restrição da participação social desse idoso, o
que pode favorecer situações de isolamento e depressão [7]. Quanto a dor,
Campos et al. [7] afirmam que dor crônica em pacientes idosos é um
problema crescente em todo o mundo e está associado com resultados negativos
para a saúde, como evitar atividades, depressão e isolamento social [8].
Portanto, devido à lacuna de estudos que descrevam a
relação do propósito de vida, a preservação da cognição e o comportamento
frente à dor com uma velhice feliz, este estudo avaliou e caracterizou o
propósito de vida, dor e cognição em idosos domiciliados da cidade de Coari/AM.
Trata-se de um estudo de corte transversal descritivo de
avaliação e caracterização do propósito de vida, dor e cognição em idosos
residentes da cidade de Coari/AM com atendimento domiciliado. A coleta de dados
foi realizada no período de março a junho de 2018, com duração de um mês após a
aprovação do protocolo 08021219.1.0000.5020 no Comitê de Ética em pesquisa da
Universidade Federal do Amazonas.
Foram incluídos no estudo idosos que foram abordados em
seus domicílios, acima de 60 anos, que residem na cidade de Coari/AM, de ambos
os sexos, não institucionalizados que apresentam dor ou insatisfação, com
capacidade de responder a avaliação cognitiva e funcional, podendo estes em
algum momento contar com o auxílio de um cuidador ou familiar durante a
avaliação. As entrevistas individuais dos participantes foram realizadas em
domicílio, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE).
A amostra se deu de forma aleatória até que se completassem
no mínimo 50 idosos de acordo com o cálculo amostral. Para a caracterização
deste estudo, os idosos foram submetidos a testes específicos de cognição, dor
e propósito de vida descrita abaixo (Organograma 1).
Organograma
1 - Testes de
avaliação do estudo
Os escores dos testes cognitivos do MEEM [9] para um
indivíduo com cognição normal são ≤ 18 pontos, ≤
9 para analfabetos, ≤ 27 para indivíduos com > 11 anos de
escolaridade, ≤ 22 para indivíduos com 1 a 11 anos de escolaridade. No
IQCODE [10], o escore total abaixo de 3,4 pontos indica presença da
deterioração do funcionamento cognitivo, ou seja, quanto maior pontuação
(máximo 5 pontos), maior a deterioração do funcionamento cognitivo do paciente
[10]. O TFV [11] apresenta escore de < 9 pontos para analfabetos, < 12
para indivíduos com 1-7 anos de escolaridade e < 13 para aqueles com ≥
8 anos de escolaridade [10]. No TRF [12], o escore > 7 no teste apresenta
declínio de memória. O TT [13] tem o escore determinado pelo tempo, em
segundos, que o indivíduo realiza o teste, quanto menos tempo utilizar indica
comprometimento cognitivo, sendo que a pontuação < 2 apresenta declínio
cognitivo e > 3 indica deficiência de associação.
A presença de depressão avaliada pelo GDS caracteriza o
indivíduo que totalizar ≥ 5 pontos com presença de sintomas depressivos
intensos [14]. Para a avaliação da dor, a Escala Numérica da Dor [15] propõe
uma classificação em que 0 corresponde “Sem Dor” e a 10 “Dor Máxima” (Dor de
intensidade máxima imaginável) [15] e a Escala de Faces [16] classifica a
intensidade da dor de acordo com as expressões faciais, registrando o número
equivalente à face selecionada pelo idoso. Por
fim, a avaliação do propósito de vida realizada mediante questionários de
Satisfação Global com a Vida e Satisfação Referenciada a Domínios apresenta o
escore final de 1 a 5 pontos, de acordo com a média das respostas às 10
perguntas [17].
Para o procedimento de análise de dados deste estudo foi
utilizado o aplicativo Statistical Package for the Social Science
(SPSS), versão 20.0. Neste foram avaliadas as frequências descritivas de todos
os dados de caracterização dos idosos, cognitiva, dor e propósito de vida.
Os 50 idosos visitados em domicílio apresentaram grave
comprometimento cognitivo, presença de dor de moderada a intensa que impacta
diretamente em como veem e lidam com a velhice.
A maioria dos idosos deste estudo são mulheres 40 (80%),
possuem baixa escolaridade e relatam ter visão ruim. Pelo MEEM, 35 (70%)
apresentaram grave declínio cognitivo, associado com a baixa escolaridade 37
(74%). As demais varáveis sociodemográficas e cognitivas estão descritas na
tabela I.
Tabela
I – Caracterização
da amostra de idosos domiciliares de uma cidade do interior do Amazonas (n =
50)
MEEM = Mini Exame do Estado
Mental); IQCODE = Informant Questionnaire
on Cognitive Decline in the elderly); TRF = Teste de
Reconhecimento de Figuras); GDS = Escala de Depressão Geriátrica)
Ao caracterizar o comportamento da dor dos idosos de Coari,
31 (62%) classificaram sentir dor moderada a insuportável embora apenas 10
(20%) relataram usar medicamentos para o alívio de dor. As demais
características referentes à dor estão descritas na tabela II.
Tabela
II – Caracterização
da dor em idosos domiciliares de uma cidade do interior do Amazonas por meio da
escala numérica e escala de faces (n = 50)
Sobre o propósito de vida dos idosos domiciliados, 36 (72%)
estão satisfeitos com a vida, porém 30 (60%) estão insatisfeitos com sua saúde
e 31 (62%) estão insatisfeitos com sua memória.
Segundo a CASP19 (Controle, Autonomia, Autorrealização e
Prazer), 33 (66%) dos idosos sentem-se impedidos pela idade e saúde para
realizar as coisas que querem, e 23 (36%) dos idosos relatam não ter controle
do que acontece consigo mesmo.
Quanto ao propósito de vida, 50 (100) sentem que já fizeram
tudo na vida e 26 (52%) relatam não fazer metas, pois é perda de tempo para os mesmos. Os demais dados sobre propósito de vida estão na
tabela III.
Tabela
III – Caracterização
do propósito de vida dos idosos domiciliares de uma cidade do interior do
Amazonas (n=50)
Propósito de vida = CASP (Controle, Autonomia,
Autorrealização e Prazer)
A maioria dos idosos deste estudo são mulheres entre 60 e
69 anos de idade, analfabetas ou com baixa escolaridade. Os idosos domiciliados
de Coari apresentam um grave déficit cognitivo, além de apresentarem frequentes
queixas de dor, moram com alguém, apresentam sinais depressivos expressivos,
relatam dificuldades de memória recente e tardia, queixas importantes de visão,
não usam nenhum dispositivo de auxílio à marcha e relatam serem felizes.
Fatores associados à depressão [19] confirmam que idosos
com déficits visuais estão mais propensos a desenvolver quadros depressivos,
uma vez que esta fragilidade pode alterar a independência funcional, requerendo
mais assistência nas atividades básicas de vida diária. Viu-se que idosos
brasileiros que moram acompanhados apresentam maiores incapacidades físicas e
dificuldades nas atividades básicas da vida diárias [20]. Além disso, é
provável que idosos vivendo sem companhia tenham melhores condições econômicas
e não necessitem dar apoio material ou de cuidado a outros membros da família
[21].
Os idosos apresentaram extrema dificuldade todas as vezes
que foram solicitados a realizar testes de avaliação de habilidades, leitura,
linguagem, escrita, comunicação e atenção. Segundo estudos [22,23], a relação
entre escolaridade e desempenho cognitivo pode ser explicada pela hipótese de
que a escolaridade é um fator protetor contra o envelhecimento cognitivo
patológico. Para Vianna [23] quanto mais os idosos realizarem atividades como a
leitura, raciocínio, planejamento e memória maior será a preservação de suas
funções cognitivas na velhice. Estudos revelam que perdas de memória são as
queixas mais frequentes entre os idosos [24]. Autores afirmam que os idosos que
apresentam déficit cognitivo decorrente das alterações do sistema nervoso são
predispostos à desenvolverem doenças crônicas [25].
A dor dos idosos é de moderada à insuportável, porém não
são incapacitantes para a realização das atividades do dia a dia. A prevalência
de dor crônica está mais frequente em mulheres idosas
[6,26], e as regiões de maior prevalência da dor são as articulações do joelho
(21,5%) e coluna (21,73%) [6,8]. A dor nos membros inferiores pode gerar
transtornos na marcha e quedas com possibilidades de fraturas, acarretando
significante incapacidade nos idosos [6] e as lombalgias em idosos deprimidos
são uma das causas mais comuns de incapacidades decorrentes de afecções do
aparelho locomotor. Porém neste estudo, com idosos domiciliados do interior
do Amazonas não foram observados nenhum tipo de alteração quanto a marcha ou
sistema locomotor.
O propósito de vida dos idosos domiciliados do interior do
Amazonas apresenta-se acima da média nacional, apresentando satisfação com a
vida, autoestima, objetivos que pretendem alcançar, direção e sentido da vida,
motivação para viver, possuindo uma visão positiva da vida, percepção de
felicidade e perspectiva de vida. A determinação do grau de satisfação com a
vida em geral entre idosos, sugere que os fatores associados à satisfação com a
vida na velhice, de alguma maneira, estão relacionados à sensação de conforto e
bem-estar, independentemente de indicadores de renda ou de estrato social [27].
Por fim, para os idosos deste estudo, o fato de ser idoso,
a boa condição de saúde e a falta de dinheiro reflete diretamente na melhor
percepção da realização pessoal, autonomia em coisas do dia a dia que gostariam
de realizar. Pesquisas internacionais apontam que idosos com baixa renda e
baixa escolaridade estão mais suscetíveis a déficits cognitivos e a
insatisfações em saúde [28]. Para Ribeiro [17], o efeito da idade no propósito
de vida pode estar associado à redução de estratégias positivas de
enfrentamento e ausência de uma rede de apoio social, favorecendo a isolamento
e diminuindo a participação ativa deste idoso em suas atividades. Estudos
revelam que os idosos com baixa renda tendem a estar menos focados em seus
objetivos ocupacionais [18].
Os idosos do interior do Amazonas apresentam um grave
déficit cognitivo associado à baixa escolaridade, altas prevalências de dor de
moderada a insuportável, em regiões de joelho e coluna, classificadas como não
incapacitantes para a participação e desempenho em suas atividades de vida
diárias. Contudo, a maioria destes idosos apresentam satisfação com a vida,
possuindo bem-estar psicológico referente a direção e sentido da vida,
motivação para viver, positividade e, principalmente, perspectiva de vida e
preservação da felicidade.
As limitações encontradas neste estudo remetem ao n amostral
de participantes, principalmente devido aos conflitos de horários e quantidades
de avaliadores, visto que os idosos foram selecionados de modo aleatório, e nem
sempre estavam dispostos a avaliação.